domingo, 31 de julho de 2011

COMENTÁRIO ESPICHADO – 10

A Bíblia (2)


“Todo escriba que se torna discípulo do Reino dos Céus é como um pai que tira do seu baú coisas novas e velhas” (Mt 13,52).


Na minha terra, linda terra, havia um rosário iluminado que despencava da frente da matriz nos meses de outubro e um painel iluminado que fazia fundo ao presépio nos meses de dezembro. Foram-se. Como muita coisa se foi. E isso me deu idéias para conversar hoje.

Quando a gente abre algum livro de teologia ou bíblia, o livro em questão, seja ele qual for, não é nem a energia nem a luz. Somente a fiação. E não cabe à fiação questionar a eletricidade. Apenas conduzir. Seria infantilidade confundir fiação e eletricidade. A maior dádiva do mundo adulto é não precisar abandonar o que faz parte do mundo da criança, mas saber que aquilo faz parte só do mundo da criança. O mundo adulto é outro.

Quando se abre um desses livros, sempre surgem duas questões que, a princípio, nem faziam parte da intenção do autor: se Deus existe e se a bíblia é inspirada por Ele.

A resposta básica é: 1) Deus existe, 2) a bíblia é inspirada por ele. A questão não é se, a questão é como: como ele existe, e como a bíblia é inspirada por ele.

Minha guru máster me disse outro dia que, na verdade, a teologia talvez seja “um grande comentário espichado da vida”. Uai? Não é que é! Tanto que eu já cheguei ao capítulo 10º, gastei falatório até não poder, e o mais curioso é que tem gente que lê! Na teologia tudo cabe, tudo se ajeita, tudo comporta, tudo conduz para que a vida, dificinha!, se torne mais viável.

A mesma guru máster já havia dito que um texto em cartaz há mais de 4000 anos precisava, pelo menos, ser conhecido. E é esse texto “em cartaz” que nos intriga. Esse texto é um conjunto de 73 livros (na conta católica) ou 66 (na conta protestante) reunidos num único livro. Um livro que contém uma biblioteca. Daí o nome, bíblia, que significa “livros”, em grego. Bíblia... biblioteca. Simples!

Esses textos não são literalmente a palavra de Deus nem são infalíveis. Ééééé...? Como assim?

Caso, primeiro, ele exista, segundo, ele tenha feito, Deus não ditou o texto, não usou secretários, taquígrafos datilógrafos, amanuenses ou digitadores, pra coisa ficar moderna, para poder dizer o que queria que a homarada e a mulherada do mundo escutasse. Esses “livros” (alguns são, praticamente, bilhetes) denotam cada etapa da vida de um povo – o povo de Israel e o povo cristão. São os povos do livro, melhor, os povos da biblioteca. Nessa antiga coleção, aqueles que acreditaram cristalizaram a sua fé. Essa coleção, aos poucos foi se tornando a fonte que realimentava a comunidade, isso, porque era possível a cada um reencontrar ali a sua própria escuridão e a sua própria clareza, como se fosse ele quem tivesse escrito. O processo foi o mesmo para o AT e para o NT, para a primeira e a segunda aliança.

E o processo era assim. Apresentava-se uma problemática humana ou um questionamento social, do tipo, por que aquela criança nasceu com aquele defeito físico, ou por que o trabalho pesa tanto e alguns se beneficiam mais que os outros? Numa palavra, por que o mundo é como é, por que a vida acaba, por que a gente vive, por que a gente morre, porque periquito tem bico torto? (Tira a última.)

Eram questões difíceis para o século XX AC, tempo de Abraão. Continuam sendo questões difíceis para o século XXI DC, nosso tempo. Quarenta séculos nos separam e ainda estamos com as mesmas encafifações, que nos deixam sempre com a mesma cara de Ó.

Os filósofos gregos do século VI AC teriam outras respostas, porque as perguntas seriam outras. Os gregos não se sentiam tão intrincados com as questões existenciais. Para eles, a vida e o mundo funcionavam de um modo diferente do modo como funcionavam para os judeus. Pra começo de conversa, os gregos não tinham nenhuma obrigação de encontrar sentido no mundo: eles não eram nenhum povo eleito e por isso não se sentiam responsáveis em dar qualquer resposta que justificasse ou esclarecesse o fato de Deus ter escolhido um povo entre outros povos e nem por isso a vida desse povo ter sido mais fácil, justo, por causa disso. Pelo contrário! A tal escolha, justo por causa dela, só complicou as coisas.

O que fizeram os judeus? Eles pensaram, pensaram, pensaram... A biblioteca chamada bíblia reflete a mania desse povo pensar. Eles pensavam, conversavam, discutiam (não havia TV!), e discutiam, conversavam, pensavam... E aí alguém ia lá e escrevia. Esse processo durava, geralmente, cem, duzentos anos. Eles não tinham pressa. Quem tem certeza, não precisa ter pressa nem faz concessões. (Boa essa, é do Freud.) Dessa forma, foi-se constituindo um pensamento, muito diferente dos pensamentos da mesma época ou das outras épocas. Geralmente, existe um pensador ou filósofo. Ele pensa, escarafuncha, ensina, escreve. Outros vão lá e pensam sobre o que ele pensou. E aí se diz: Platão falou isso, Lacan falou aquilo, Agostinho incrementou esse pensamento, Kant complicou tudo para ir mais fundo, Nietzsche desmanchou tudo para...

Com o pensamento bíblico foi diferente. Surgiu das bases, como se fosse um mutirão de idéias, de tal forma que, quem escreveu sequer pode se dizer o dono do pensamento, porque, realmente, não é dele. O fato de levar seu nome – Livro de Isaías, Evangelho de Marcos, Carta de Paulo – não significa que tenha sido ele quem descobriu, elaborou e escreveu. Ele apenas descreveu. Até o mais personalista dos escritores, Paulo, escreveu o que ouviu, e nem tudo o que leva o nome dele é dele. Há cartas dele que foram escritas por outros.

Duas variáveis são as mais importantes de serem retidas.

Primeira. O povo que escreveu essa biblioteca chamada bíblia não teve a si mesmo como referência nem o mundo nem os quatro elementos nem nada que estivesse na moda ou lançasse tendência na época. A referência foi (complicado isso!) Deus. (Hmmm...) Acho que não tenho mais nada a acrescentar. É que eles tiveram a o.u.s.a.d.i.a de trazer para a esfera público-social algo que pertenceu sempre ao foro íntimo-pessoal. Não é que os outros povos da antiguidade não acreditassem em Deus. Acreditavam num punhado, inclusive. Mas foi a proposta de estabelecer essa crença em forma de “aliança” que fez daquele povo um experimento único na História. Parece que a coisa pegou. Está aí até hoje!

Segunda. O pensamento contido na bíblia é feito de palavras: um oceano de palavras. Palavras são organismos vivos. O fato de a bíblia cristã ter permanecido tanto tempo trancada dentro de uma língua morta, talvez, e só talvez, explique a razão dela ter se afastado tanto do solo concreto da existência humana, justamente, de onde ela brotou. A única forma de manter essa biblioteca viva (e não estou falando da biblioteca de Hogworts) é mantê-la falante. Isso significa emprestar conceitos novos para que as antigas palavras mantenham a eloqüência que têm. Se a repetição se instaurar, se-sempre-se-falar-na-mesma-batidinha-de-sempre, e se alguns tomarem posse desse tesouro, brandindo-o inescrupulosamente como espada em defesa de interesses só seus, ninguém vai querer escutar. O que será uma lástima, porque esse tesouro oculta riquezas desconhecidas. Ninguém é dono dessa biblioteca, quando muito curador. A quem se apossar dela ou se pronunciar em seu nome, apliquem-se os rigores da lei: é roubo, estelionato e falsidade ideológica. Crime.

*

Essa é a luz e a energia. O restante é fiação. No entanto, sem fiação, e sem fiação bem feita, qualquer curto-circuito apaga tudo.

A razão de qualquer livro, escrito ou curso que vise clarificar a crença, não é questionar a fé individual de cada um. Seria a fiação questionando a eletricidade. A razão de qualquer tentativa é a de indicar por quais caminhos e vicissitudes a luz chegou até cada um. Não se questiona a eletricidade, menos ainda a luz, mas a fiação. Não se questiona a crença, mas as crendices.

Também não cabe ao texto ou curso fazer a luz iluminar a casa de cada um. Cada um deve ser suficiente para fazer ou deixar de fazer isso, por si mesmo. A razão de um texto é ocasionar o maravilhoso. “Ah! Então foi assim!”. É. Foi assim. Conectada a fiação, a luz se acende, a gente entende tudo e tudo fica mais claro. “Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei adulto, deixei o que era próprio de criança” (1Cor 13,11).

É preciso crescer. Não se pode continuar olhando o rosário iluminado da matriz, o painel do presépio, ou qualquer outro efeito luminoso, do modo como era visto quando éramos crianças. Isso é mais fácil, sem dúvida. Mas é perigoso. Se o adulto se mantém criança, facilmente, se perde na multidão e agarra a mão do primeiro que apareça com promessas de lugar seguro. Isso é perigoso! Por isso, é preciso crescer. É constrangedor vê gente grandona pensando e agindo como criança, e o que é pior, com medo de crescer.

Crescer não significa jogar fora aquilo que constituiu a identidade que abriga o ser. Crescer é outra conversa. Crescer é transformar o jeito de ser da criança no jeito de ser do adulto, o jeito de ver da criança no jeito de ver do adulto. Troquem esses verbos por outros, como entender, captar, vivenciar, maravilhar-se... Vão trocando... Sobretudo o último verbo: maravilhar-se. Quando o adulto se maravilha, algum alvará de licença é dado à criança que há nele, para que ela se manifeste também, mas como adulto.

Abrir a bíblia é ocasião de maravilhamento. É a história de um povo que se encontra ali. Mas é também a sua história, contada ali, em detalhes, para que você se reencontre enquanto lê. É o álbum de fotos da sua família que você encontra ali, com todas as fotos, para que você se reconheça enquanto olha. Estão ali todas as fotos: as de estúdio, sem graça, e as quadradinhas, de antigamente, já quase sem cor, onde você rola na praia à milanesa. Lindo, né! Também são bilhetes e cartas que lhe foram escritos, durante todas as vidas de todos os que passaram por aqui antes de você, para que você possa encontrar um caminho seguro. Precisa, né!

Se acaso, algum dia, a vida lhe der a chance de ir a minha terra, em outubro ou em dezembro, não precisa procurar: você não vai encontrar nem o rosário iluminado nem o painel do presépio (com a corujinha no galho da árvore, bem no canto, de olho arregalado, olhando pra você). As crianças de hoje não sabem do quê a gente sabia antes. Antes? Antes de alguém ter cortado a fiação e desligado a luz. É que, alguém, por lá, confundiu fiação com eletricidade. E pensou que a fiação pudesse ser dispensada. Foi pena! As crianças de lá têm menos coisas para ver e os adultos, menos histórias para contar.

Não se preocupe quando essa fiação lhe parecer confusa. É provável que o Grande Eletricista também tenha de refazer a fiação dele e religar a sua luz, inúmeras vezes. É provável que ele saiba onde os fios se encontrem desencapados e o curto-circuito possa acontecer. Não se preocupe se, às vezes, as coisas lhe pareçam confusas. Quanto mais escura for a noite, mais luminosa será a aurora.

“Agora, vemos como num espelho e de maneira confusa. Mas depois veremos face a face. Agora, o meu conhecimento é limitado. Depois, conhecerei como sou conhecido” (1Cor 13,12).

Um comentário:

  1. Renato, é muito interessante a maneira como escreve, se a gente começa quer terminar... deve escrever um livro, não um só... ehehe porque não vai caber, mas vários... muito oportuna esta comparação com a eletricidade, fiação... o Grande Eletricista. ele ilumina nossa escuridão, nos faz ver o caminho quando este se torna turvo, nos abre os olhos iluminando nossa vida... é o GRANDE, é a ESPERANÇA... "e a LUZ se fez... e tudo ficou bom"... muito bom. obrigada pela sua partilha... abraço Ir. Lúcia Inês

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