quarta-feira, 27 de julho de 2011

COMENTÁRIO ESPICHADO – 5

Paulo de Tarso

“Sejam meus imitadores, como eu o sou de Cristo” (1Cor 11,1)


A segunda forma de cristianismo é o cristianismo by Paulo de Tarso.

Voltemos no tempo. Quando as hordas arianas irromperam nas civilizações antigas, passou a ser inevitável que os velhos deuses e templos e sacerdotes sofressem modificações, adaptações ou desaparecessem. Os povos agricultores das civilizações morenas haviam modelado suas vidas e seus pensamentos numa rotina ao redor do templo. Os rituais religiosos, o medo de uma perturbação da rotina, sacrifícios e mistérios dominavam suas mentes. Era uma religião do fato e do feito.

Quando os povos arianos de pele clara e olhos azuis desceram do norte, trouxeram enormes diferenças. Pra começar, eram muito propensos à oralidade, ou seja, faladores, contadores de histórias. Seus bardos cantavam e recitavam nas festas tudo o que a memória ia construindo, porque a memória também constrói. Não mais o feito nem o fato, era o símbolo e a imaginação. Era o momento da palavra. O centro da vida se deslocou do templo para a casa do líder, onde aconteciam banquetes, recitações, jogos e discussões. Havia uma espécie de comunismo patriarcal na tribo. O chefe cuidava do gado e das pastagens de acordo com o interesse de todos; as florestas e rios eram território selvagem.

Esse estilo de vida, naturalmente, fez a passagem entre o sistema fetichista primitivo e o que viria depois, entre o fato e a palavra.

O fetiche é o sistema de causa e efeito predominante no pensamento primitivo. Alguém come planta venenosa e morre: verdadeiro ou falso? Alguém come o coração do inimigo morto e fica forte: verdadeiro ou falso? Numa mente primitiva, o sistema de causa e efeito processa as duas possibilidades acima como verdadeiras. Por quê? Porque, para o fetichista, tudo é urgente. A marca desse sistema de pensamento é a urgência: urgência para obter a caça, para não ficar sem o alimento, para evitar qualquer ameaça, para que a chuva caia na hora certa, para que a semente não apodreça na terra, para que o barco retorne, enfim, urgência para que os cuidados com a vida sejam tomados a tempo. Esse sistema caracterizava a religião do fato e do feito. Tudo era fato, e tudo era feito para dar conta das necessidades básicas do fato. Ainda hoje existe muita coisa parecida, porque a perda da saúde, do amor ou do emprego são fatos que pedem soluções de urgência. E soluções de urgência são oferecidas a granel nos supermercados credenciados. Mas, lá, isso evoluiu. Cá, veremos.

Com o passar do tempo, os povos foram se tornando maduros, e novas necessidades foram aparecendo e se impondo. Uma delas era a de dar conta com uma novidade que irrompia, sabe-se lá de onde, e ameaçava tanto quanto qualquer ameaça real. Era a angústia: não mais daquela da tremedeira diante da fera que ameaça do lado de fora, mas daquela do suor frio diante da fera que ameaça por dentro. A marca do humano é a fragilidade. Angustia sinaliza fragilidade. E vice-versa.

Com a percepção dos perigos de toda ordem e o surgimento da angústia reciclada, a religião do fato deu lugar à religião do credo. Antes, bastava queimar vítimas ao deus protetor, e pronto. Depois, isso não bastou mais. O homem quis entender aquilo que fazia, quis crer naquilo que fazia e, para tanto, precisou ser instruído. A instrução e a leitura nasceram desse desejo inquieto de entender as causas e aprofundar os efeitos. É que o homem já era outro homem. Comer o coração do inimigo não tornava ninguém mais forte, e isso o homem já sabia. O fetiche não respondia mais, isso ele também sabia. Quem sabe, os deuses não existissem de fato, disso ele já desconfiava. Só não sabia o que colocar no lugar pra preencher o vazio.

Foi aí que aconteceu algo completamente novo.

A alma do homem, sob o império romano, nos dois primeiros séculos da era cristã, cabia exatamente dentro do parágrafo acima: estava fragilizada, atormentada, frustrada e vazia. A vida era uma luta sem trégua nem vitória nem louros. O divertimento se fazia com sangue: homens e feras, homens e homens, eram trucidados e lutavam até a morte. Não é à-toa que os anfiteatros sejam as mais características ruínas romanas. É que a vida era levada nesse tom. Então, quando o desconforto dos corações se manifestou numa profunda inquietação religiosa, apareceu um novo discurso. O cristianismo surgiu na hora que o mundo precisava dele.

Mas o que é “Cristianismo”?

Perguntinha complicada. O “cristianismo” que aparece nos evangelhos deve ser escrito entre aspas; na verdade, só recebe esse nome para efeito pedagógico. Nos evangelhos, não há o quê já se possa chamar de “cristianismo”. Cristianismo, como tal, um sistema de pensamento articulado e coerente consigo mesmo, é criação de um homem: Paulo de Tarso. Foi ele quem assumiu a tarefa de botar ordem na casa e coerência no pensamento. Claro, que foi a coerência dele, o jeito dele, o evangelho segundo Paulo. Até aí, nada demais, porque os outros fizeram a mesma coisa. Acontece que o quê Paulo fez não foi apenas narrar a sua versão fatos a partir da experiência que teve na estrada de Damasco. Ele fez mais.

Paulo, judeu-romano que se expressava em grego, trouxe para o caldo cristão ingredientes das culturas por onde havia transitado. Entre outras coisas, familiarizou os discípulos com a idéia de que Jesus, como Osíris, foi um deus que morreu e ressuscitou, e irá voltar para dar aos homens a tão sonhada imortalidade. Isso, ele ficou devendo aos egípcios. Em breve, a nascente comunidade cristã seria dilacerada por disputas teológicas complexas em torno da relação entre o Deus Jesus, redentor, e o Deus Pai, criador de tudo, como veremos no próximo capítulo. Esse dilaceramento era antagônico aos ensinamentos de Jesus. E Paulo, infelizmente, concorreu bastante para essa discrepância. Um dos grandes conhecedores de Paulo afirma que todos os desentendimentos da ninhada cristã se deram por causa da doutrina paulina, nenhum por conta do cristianismo dos evangelhos. É que Paulo é intramuros e os evangelhos são extramuros.

O ensinamento de Jesus, nos evangelhos, é transparente, e parece assinalar uma nova fase na condução ética e espiritual da espécie humana. Jesus não falou para uma determinada ecclesia, falou para todos. Sua insistência no Deus Pai universal e na irmandade implícita de todos os homens, e conseqüentemente na sacralidade de toda pessoa humana – cada uma, um templo vivo de Deus – teria um efeito incomensurável sobre a subseqüente vida social e política da humanidade. Com esse ensino em expansão, apareceu no mundo um novo respeito pelo homem enquanto homem.

Paulo, judeu-romano que se expressava em grego, ainda era fruto do mundo antigo que desabrochou no novo. Mesmo assim ou talvez por isso mesmo, no meio de todas as correntes cristãs, brotando que nem capim, foi ele quem prevaleceu porque, decerto, foi ele quem, entre todas, mais de perto alcançou a essência do pensamento e do ensinamento de Jesus. Mesmo sem tê-lo conhecido e mesmo derrapando um pouco na proposta. Mesmo assim, o sujeito foi um fenômeno. Paulo percorreu o seu mundo, a pé, numa média estimada de 30 km/dia, incansavelmente, ininterruptamente, sem a menor consideração por si mesmo, pelo próprio presente e pelo próprio futuro. É um espanto! Paulo redesenhou a imagem que o homem mediterrâneo tinha de si; depois dele, o centro da Terra se deslocou de Roma para o leste, na direção do árido Oriente Médio. Voltou, porque a política exigia. Mas voltou outro. Pelo menos, com outra cara.

Países formados por grandes planícies ou cortados por grandes rios, como o Nilo ou o Eufrates, tendem a se unificar sob uma lei comum. As cidades do Egito ou da Suméria eram administradas por um único sistema de governo. Os povos gregos, ao contrário, isolados em ilhas ou vales de montanhas, mantiveram uma tendência oposta. Quando os gregos passaram a fazer parte da História, já apareceram divididos em pequenos Estados que não exibiam nenhum sinal de coalizão. Eram diferentes até mesmo em matéria de raça. Os maiores Estados gregos eram equivalentes aos menores condados ingleses; nenhuma cidade alcançou a marca de 350 mil habitantes. Existiam interesses e simpatias em comum, mas não havia coalizões.

Na era dourada, séculos VII e VI AC, a Grécia se manteve unida graças a dois elementos culturais de altíssimo poder de determinação: os épicos e as olimpíadas. Mas até o ouro azinhavra; um e outro caíram no esquecimento. Quando Paulo despontou com sua mensagem, os povos gregos a quem se dirigiu não passavam de restos do que um dia foram. Não há a menor dúvida de que a mensagem que os gregos abraçaram era o que eles precisavam para se manterem unidos. O cristianismo foi a terceira formação cultural que os uniu, e eles agarraram essa chance com as duas mãos.

Tanto que, nascido em solo judaico, rapidinho o cristianismo se helenizou. Na virada do primeiro século da Era Comum, entre os cristãos, os judeus eram minoria. Eles nunca haviam entendido o filho rebelde que tinham gerado. O pensamento grego foi a ama de leite do espírito cristão. E assim permaneceu. Mesmo depois que a igreja cristã, nascida judia e adotada grega, se tornou latina, foi em termos gregos que ela desenvolveu sua teologia. No auge da performance do papado, no século XIII, foi de novo da Grécia que a igreja cristã bebeu o leite que a iria nutrir pelo resto de sua história. Tomás de Aquino batizou Aristóteles, mas o feitiço virou contra o feiticeiro. Aristóteles não se tornou cristão, o cristianismo é que se tornou aristotélico. Quando eu estudava filosofia, era comum ouvir “philosofia ancilla theologiae”: a filosofia é serva da teologia. Que bobagem! É, justamente, o contrário.

Paulo captou essa ferramenta e fez uso dela, mesmo se dizia o contrário, como na sua estréia no areópago de Atenas, quando quase foi vaiado pelos gregos. Ele soube o seu momento e não o deixou passar. Foi grande, e teve noção dessa grandeza: “Sejam meus imitadores, como eu o sou de Cristo” (1Cor 11,1). Né!

Na antiga Suméria, os reis selavam as telhas de barro onde corria sua fala em escrita cuneiforme. A escrita e o selo do rei podiam ir muito além do que alcançavam sua vista e sua voz, e viveriam depois de sua morte. Paulo teve esse mesmo insight e mandou ver: escreveu, escreveu, escreveu. Entre pregar, coordenar, dirigir, orientar, fomentar, tecer tendas (é claro, para viver), arrumou tempo para escrever. Escreveu até da cadeia de Roma. E quando não pode mais escrever, ditou. E quando não pode mais ditar, apenas leu e assinou o que outro havia escrito. (Navegar é preciso, viver não é preciso!) Paulo foi, talvez, o primeiro místico da linhagem cristã. Mas não foi um místico alucinado, pelo contrário, teve os pés bem no chão, e escreveu para não deixar as comunidades esquecerem que não se dispensa o bom senso até quando o assunto é o Céu.

Aliás, pé no chão foi o que ele mais teve. Paulo andou muito, falou muito, e derrapou, óbvio, muito. Ou não seria completo, nem seria Paulo.

Ele teve de organizar a comunidade e a organizou em forma de estabelecimento, instituição, status quo. Paulo inventou uma nova religião. E não foi bem isso que Jesus quis. Pelo menos, não é o que aparece em cada página dos evangelhos. Jesus era um judeu que adorava o Deus dos judeus. Ta certo que de um modo incrivelmente diferente dos judeus, mas não tão incrivelmente diferente que denotasse, de início, ruptura total. Se fosse para fazer outra religião, ficasse com a que já existia. Entre o que foi feito lá, já na segunda geração, e o que o evangelismo/catolicismo selvagem faz aqui, não há propriamente grandes diferenças. E foi nesse sentido que Paulo “traiu” Jesus: ele fez o que Jesus não faria. Não faria, e não fez.
E o que foi que Jesus não fez? Ele não instituiu. Institucionaram em nome dele. (Vamos falar sério? A instituição é a morte da proposta.) Fizeram isso e ainda, retroativamente, colocaram na boca dele o desejo de instituir. “Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam” (Mt 16,18). Vem cá, faça o favor, menos! Qualquer boa exegese limpa toda demão de tinta que foi passada sobre as palavras originais. Se depois dessa limpeza, o que surge na tela é bem diferente do original, por que continuar insistindo na mesma tinta? Um grande pintor consegue reproduzir a mesma, veja bem, a mesma Mona-lisa, aquela do Louvre, idêntica. Mas não será a Mona-lisa do Louvre: o pigmento será outro, a tela será outra, o traço será outro, e os quatro séculos que as separam conferem à original o que só quatro séculos de envelhecimento natural conseguem imprimir. Portanto, se alguém quiser fazer algo seu, não faça a Mona-lisa; aquela já existe e tem dono.

Evangelismos e catolicismos selvagens fazem isso: pintam de novo a Mona Lisa. O resultado é falso, fake, fraudulento.

Foi isso o que as instituições, a partir do evento Paulo de Tarso, fizeram com a herança: já na segunda geração modificaram o patrimônio original. Mas que fique bem claro: nenhum de nós faria diferente, nem melhor nem pior. Mas a questão não é essa. A questão é se o prédio que foi construído, a partir da segunda geração, obedeceu ou não à planta original. Assim, e com todo o respeito a um sujeito que trocou a cabeça pela coerência ética, tudo indica que o que Paulo quis não foi o mesmo que Jesus. Jesus não queria “edificar”, aliás, em nenhum sentido. Bastava a liberdade, e já estava bom demais.

Jesus não queria nenhum instituto universal, nenhum estado-clerical, nenhum confronto com o poder estabelecido, nenhuma simples alternância de poder. Quando tirou a moeda da goela do peixe, o que perguntou foi: “De quem é a imagem na moeda?” Responderam: “De César.” E ele: “Então, devolvam a César o que é de César, devolvam a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21). Se a moeda carrega a impressão de César, estão fazendo o quê com isso em suas mãos? É dele, devolvam pra ele. Mas se algo dentro de vocês, em sua alma, traz a impressão do Incognoscível Outro, então, não retenham o que não lhes pertence: devolvam a quem de direito. O Sermão da Montanha (Mt 5-7) é a magna carta do novo estado de coisas. O centro dessa mudança repousa na pobreza: “Felizes os pobres em espírito” (tecla SAP: Felizes os que são pobres porque querem ser pobres) “porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3). As bem-aventuranças seguintes estão no futuro, só essa se encontra no presente. “Um rico dificilmente entrará no Reino do Céu, é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino do Céu” (Mt 19,23).

Simples como beber água. Quem dera fosse fácil, como beber água!

Alguém me questionou se a fidelidade a Cristo não se abalaria com o repensar das letras. Por quê? Se há algo a ser abalado, são apenas as representações acerca do mistério, sob as quais a fidelidade pode emergir ou desaparecer, vigorar ou se submeter. Se alguma entidade sócio-político-econômica-e-afins se autodenomina gerente desse banco, desconfie. As “letras” podem ser falsas. Toda unanimidade é suspeita e a presunção de unanimidade universal é mais suspeita ainda. “Quando uma atividade qualquer não consegue se sustentar na ética de sua prática, acaba se transformando no exercício de um poder” (J. Lacan, Escritos).
“Para quem busca a verdade, só a verdade interessa” (Al-Kindi, 870 DC).
A intenção do pensamento não é a destruir nem a de reconstruir, mas a de erguer possibilidades, justamente, ao pensamento. Haveria como construir de outra forma esse edifício da tradição cristã? Teria evitado cruzadas, inquisições, pedofilia? Teria erguido todas as obras de assistência social que aliviaram por 20 séculos seguidos a dor e a miséria humanas? Teria incentivado todas as formas de arte como fez? Como saber? É difícil conhecer o caminho antes de percorrer o caminho. E percorrer é correr risco. O que temos foi o que construímos nessa história de erros, enganos e engodos. Daria pra ser diferente? Não sei.
O que temos para hoje é isso, senhor! – diz, em monalísico sorriso, a gentil comissária de bordo.
Paulo! Uma incógnita. No século dos horrores de Tibério, Calígula e Nero, mesmo tendo incitado a obediência nos escravos, incentivado o respeito pelas autoridades (confira os nomes aí em cima!) e mandado as mulheres calarem a boca e se cobrirem de véu, Paulo foi uma luz. Ta certo que Jesus faria (e fez) diferente: curou servos-escravos, acudiu adúlteras e impediu apedrejamentos da vil virilidade, andava acompanhado de mulheres e outros seres, e não quis saber quem era dono do quê na política do mundo: “Minha realeza não é desta ordem” (Jo 18,36). Mas Jesus era Jesus.

Seja como for, caro Paulo, saiba que o fato de eu não ir muito com a sua cara não me dá o direito, sequer, de pensar que você deixou a desejar naquilo que se propôs. Exageros à parte, eu não sou digno de lamber a sola do seu pé. E espero que quando chegar aí, gentilmente, você me sorria de longe, apenas, como quem diz: To sabendo, to sabendo! E me deixe seguir para minha humilde casinha-geminada em algum conjunto residencial para classes populares, no Céu.

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