sexta-feira, 15 de julho de 2011

GENTE

Você nasceu cheio de gente do lado de fora. Mas sozinho do lado de dentro. Do lado de fora, havia bisavôs, bisavós, avôs, avós, pai e mãe, tias e tios, primos de montão... Gente demais! E, lá dentro, só você, sozinho, sem nada nem ninguém. Pra dizer a verdade, nem você vivia lá dentro. É que gente precisa de gente pra virar gente. Enquanto houver muita gente do lado de fora, mas nenhuma gente do lado de dentro, ninguém pode dizer que é gente. É só um projeto de gente. O que já é alguma coisa quando se trata de gente. Mas é só um projeto. Gente, mesmo, vem depois, bem depois.

A verdade é essa. Você nasce cheio de gente do lado de fora. E sozinho do lado de dentro.

Mas aí aconteceu uma revolução silenciosa.

Pouco a pouco, dia-a-dia, mês a mês, você, que havia nascido sozinho do lado de dentro, começa a perceber que há outros vocês do lado de fora. Começa a escutar vozes. E, quando elas falam, você percebe que toda aquela gente do lado de fora, também está sozinha. É!. Porque muita gente do lado de fora carrega pouca gente do lado de dentro. E essa gentarada toda, fica lá, só esperando o momento de ser convidada a passar pro lado de dentro.

Não é curioso? Pouco a pouco, quem estava meio-sozinho do lado de fora, começa a fazer companhia a quem chegou sozinho-inteiro do lado de dentro. E é assim, fazendo companhia um ao outro, que quem estava sozinho dos dois lados pôde ver que não havia sido feito pra ficar sozinho, de nenhum dos lados nem de jeito algum. E é assim que vem sendo. E é assim que tem dado certo.

Os anos passam e já não é mais tão clara a fronteira entre a solidão que existe no lado de dentro e a solidão que vigora do lado de fora. A fronteira existe, é claro! O que não é claro é onde ela começa e onde termina se do lado de dentro ou do lado de fora. Com o tempo, você passa de um lado pro outro pulando sobre as pontes, brincando sobre os montes, rindo-se das portas... que não se fecham mais. Pontes existem, montes existem, portas existem. Ninguém tirou nada do lugar. No entanto, ficou tão mais fácil (detesto essa palavra) pra quem estava dos dois lados atravessar de um lado pro outro, que, quando passa, já nem vê mais quando, como nem com quem passou. Só vê que passou. Os anos passam, as fronteiras caem e mais pontes se estiram. E você passa. (Olha lá você passando!) E assim vai sendo. E assim tem dado certo.

Solidão? Ah, claro! Sempre existirá dos dois lados. Melhor. Será sempre sua companheira. Você nasceu só, vive só (já experimentou narrar uma dor de ouvido?) e quando se for, irá só. Algum problema nisso?

Preste atenção, porque aí acontece outra revolução silenciosa.

Um dia, você se descobre sozinho, de novo. Sobretudo, quando visita o lado de fora. É que quem estava lá, já não está mais. Quem morava lá, não mora mais. Quem nos esperava lá, não nos espera mais.

Como assim? Pra onde foi? Por que foi? Por que o deixou? Você não sabe. Só o que sabe é que, agora, quando quiser se encontrar com eles, de novo, não cruzará mais a fronteira onde antes havia pontes, montes, portas e rios. Para você encontrar quem quiser achar, a porta terá de ser fechada, agora, por dentro. Algum problema nisso?

Essa hora é crítica.

Nessa hora, quem nasceu cheio de gente do lado de fora, se demorar muito para des-nascer, não vai ter ninguém que fique junto, como quando chegou. Um a um, eles foram embora. Uns disseram adeus, outros nem se despediram. Uns demoraram pra ir, outros saíram tão cedo que quase não chegaram. Uns deixaram a terra arada à espera da semente, que nem sempre veio. Alguns não deixaram marca alguma, nem pra dizer que passou por aqui. Rostos, vozes, conversas, abraços, encontros, desencontros, palavras, gestos, acenos, cortes, cicatrizes... O mandrião do batismo, amarelado do tempo, num canto. O vestido de noiva, desbotado da vida, no outro. As fotos, as fotos, as fotos. Onde é que ficou aquela do encontro? Que encontro? Pois é, que encontro? Foram tantos os que não aconteceram que, no fim, você até...

Esqueceu.

Um a um, eles vão embora. E você vai ficar, de novo, como no início, cruelmente, só. Algum problema nisso?

Não ouvirá mais o barulho dos risos e das cascatas que anunciavam a proximidade de fronteiras invisíveis. As pontes caíram, as portas se fecharam. Cadê o barulho dos cabides? Só ficaram as vozes. Os rostos se foram. Só ficaram as vozes, dentro de você. Elas cantam, contam, conversam, choram, riem... Já não há mais ninguém dos que estavam aqui quando você chegou.

Essa hora é crítica.

Mas...

Mas é só do lado de fora que não há ninguém. Do lado de dentro, estão todos aí. As portas se fecham pro lado de fora para proteger quem ficou no lado de dentro.

A verdade é essa. Você nasce cheio de gente do lado de fora. Você des-nasce, ainda mais cheio, do lado de dentro. Que bom que seja assim! Porque assim tem dado certo.


(Apêndice para católicos, crentes e simpatizantes.)


Voltar não deve ser complicado.

Imagino que não deva haver perguntas nem questionários: se você fez isso, se fez aquilo, se deixou de fazer... O que é que isso importa, naquela hora? No fim das contas, o que é que, naquela hora, importa?

Se houver uma só pergunta, a única que realmente terá de ser feita, ela será mais ou menos assim (com voz de cinema): Bom filho, quem veio dentro de você? Se a desgraçada resposta for (com voz de dublagem): Ninguém! Então, é provável que lhe seja apontada uma tapera de beira de estrada e você se estremeça ante a voz (de cinema, de novo): Pra quem não trouxe ninguém, e é tão vazio de si, qualquer coisa serve.

Mas, se ao contrário, a resposta for outra, e se for possível dizer (com voz de apresentador de Oscar): Tanta gente e tantos, que nem sei contar! Então, olhe, ali, aquela mansão. No Alphaville do Céu. Pois é, a mesma voz, retumbante, vai balançar a chaves e dizer: Quem trouxe tanta gente consigo, na certa, vai precisar de uma casa bem grande! Não acham?

Um comentário:

  1. "Você nasce cheio de gente do lado de fora. E sozinho do lado de dentro."... que frase linda!
    E como as pessoas temem repeti-la, porque este preconceito com a solidão? De repente, ser sozinho tornou-se uma doença contagiosa e incurável?
    Esse é um dos meus textos preferidos até hoje.
    [até hoje, porque a produção é intensa!!]
    Que maravilha, Renato!! Seu blog é meu jardim, é um dos lugares onde venho e encontro paz, brisa fresca, grama verde e as mais diversas flores...em forma de posts incríveis!!!

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