quarta-feira, 27 de julho de 2011

COMENTÁRIO ESPICHADO – 4

Quando é que tudo nasce?

O que viestes ver no deserto? (Mt 11,7)


Não deixa de ser, no mínimo, curioso, que durante o reinado de César Augusto, o primeiro dos imperadores romanos, tenha nascido na Judéia o Cristo do cristianismo, Jesus. Em seu nome nasceria uma religião destinada a ser tornar a religião oficial de todo o Império Romano.

Ele apareceu na Galiléia, durante o reinado de Tibério César. Era um profeta que pregava à maneira dos profetas judeus antigos. Teria aproximadamente 35 anos quando fez sua entrada na História. De resto, tudo é sombra. Ignoramos profundamente como vivia antes de começar a pregar. O que temos são as notícias dos evangelhos. Mas daqui a pouco veremos que os evangelhos não são relatos jornalísticos e não dão noticias. Eles já são interpretações de um fato que se perdeu.

Seria preciso reencontrar esse fato. Mas como?

Assim como a personalidade de Gautama Buda foi distorcida e obscurecida pela rígida, gorda e sorridente figura agachada, pelo ídolo dourado do budismo posterior, podemos perceber que a personalidade enérgica de Jesus foi desvirtuada pela arte cristã, na qual uma reverência equivoca impôs a ele um tanto de surrealismo e convencionalismo. Quem era Jesus? Jesus era um pregador miserável (no sentido de pobre-pobre de marré-de-ci), que perambulava pelas terras ressecadas e poeirentas da Judéia, sustentado por doações ocasionais de comida e algum insípido bem estar.

No entanto, olhe por aí, ele é sempre representado como um homem limpo, penteado e apresentável, em vestes, por vezes, de um branco impecável, ereto e imóvel, como se deslizasse pelo ar. Só isso já faz com que ele pareça irreal e pouco convincente. Com essa imagem fica difícil identificar o âmago da história em meio às invenções ornamentais e tolas da devoção ingênua, senão, ignorante. Ta bom, ta bom! Retiro o “ignorante”.

O fato é que se você pensar na História Universal como uma enorme tela de radar, o acontecimento histórico “Jesus de Nazaré” não passa de um bip no canto da tela. O que ampliou esse bip foi o que veio depois.

Quer um exemplo?

Jerusalém tinha 45 mil habitantes. Mas no festival da Páscoa a cidade alcançava a cifra de 250 mil, astronômica para o primeiro século da Era Comum. Algo mais ou menos comparável a...? Aparecida (do Norte) na festa da Santa. É sim. Exatamente os mesmos tamanhos, as mesmas cifras, as mesmas intenções (do religioso ao comercial e vice-versa), exatamente a mesma feiúra. Porque, vem cá (tirando a Santa), ô lugar feio! Jerusalém era um pouco pior. Imagine Aparecida sem rede de esgoto...

Continuando a analogia, se você quiser dar um tiro em alguém (do tipo: ô vem cá, não vou com a sua cara!), não existe data melhor do que 12 do10 às 12 horas. No meio daquele povaréu, daquele espreme-espreme, daquele buzinaço, daquele foguetório, um tirinho não vai chamar a menor atenção. Vai ser só um barulhinho a mais.

Volte pra Jerusalém. Você acha que justo na véspera do grande festival da Páscoa, exatamente na hora em que os cordeiros começavam a ser mortos no Templo, na euforia e no rebuliço daquele vai-e-vem, que fazia Pilatos e tropas invadirem Jerusalém... um sujeito condenado, que saísse carregando a trave da crucifixão por exíguos 600 metros, numa época em que crucifixões eram comuns, você acha que aquilo chamaria alguma atenção do grande público? Nada! A não ser alguns acompanhantes, nem a soldadesca prestou atenção. Foram lá, resmungaram, bateram uns pregos, testemunharam três infelizes se estrebucharem até a morte, e voltaram, execrando o fato de terem de fazer aquilo, justo naquele dia, véspera de festa! Só isso.

O que fez aquilo ali adquirir status de acontecimento mítico capaz de mobilizar parte do Oriente e o Ocidente inteiro, foi o que veio depois. Foi o que fizeram do bip.

Vejamos.

As palavras de Jesus foram sementes que caíram na terra e morreram. Previsão dele, aliás. Semente que não morre, não brota. Daquelas palavras-semente nada sabemos. A exegese bíblica aponta determinadas possíveis palavras que tenham saído da boca dele. Não passa de conjetura. Do texto original, para sempre perdido, só conhecemos o resultado. O resultado visível é que dele nasceram três rebentos, que o tempo e as condições históricas transformaram em três árvores frondosas; 1) o cristianismo dos evangelhos; 2) o cristianismo de Paulo; 3) o cristianismo de Constantino.

Depois disso, e além disso, é só o cacarejar das igrejas e instituições.

Um exemplo? Observe o fenômeno “Lutero”. Ele fez o que fez porque se abraçou à segunda categoria: a do cristianismo de Paulo. Olhe bem de perto e repare que, mesmo Lutero, não pertence a Paulo inteiro. Lutero pertence a um momento bastante específico: o momento em que Paulo escreveu aos Romanos, e só àquele momento. O Paulo que escreveu aos Colossenses encontrava-se em outro momento, era outro Paulo, e desse, só para continuar no exemplo, Lutero quase nada falou. Ficou claro?

Então, guarde isso. Não apareceu na história subseqüente das igrejas cristãs nada de novo além desses três momentos inaugurais. Tudo o que veio depois, lançou raízes foi lá; e se tentou ser fiel ou acrescentar alguma coisa, foi na direção de um daqueles grandes momentos, que o esforço dessa tentativa foi direcionado. O que existe são aqueles três troncos. O resto é só enxerto.

Vejamos esses momentos.

1) O cristianismo que brota dos evangelhos se apresenta em quatro versões distintas de um mesmo original. Repito: são versões e são muito distintas. Não existe “O Evangelho de Jesus Cristo segundo Jesus Cristo”. O que existe são quatro versões canônicas e outras apócrifas, sempre segundo a percepção intuitiva de alguém, seja ele Marcos, Mateus, Lucas, João e outros. Que, a bem da verdade, não são pessoas físicas: não existe um sujeito chamado Mateus, Marcos, Lucas ou João que foi lá e escreveu. As versões que assumiram os nomes deles brotaram do experimento das comunidades cristãs. Foram elas que escreveram o que supostamente ouviram. Quando fizeram isso já estavam repetindo (a seu modo, veja bem) o que tinham ouvido de quem supostamente também teria ouvido de Jesus e legado como herança. (Ficou horrível, eu sei, mas não conseguir deixar melhor.) Imagine o seguinte: João ouviu de Jesus e pensou, foi lá e falou. A comunidade dele ouviu dele e pensou, digeriu o pensamento, foi lá, e escreveu. E daí saiu “O Evangelho de Jesus Cristo segundo João”. Isso quer dizer que, quando abrimos o Evangelho de João, não são as palavras de Jesus que encontramos, mas as palavras de Jesus filtradas por João. E da mesma forma com Mateus, Marcos, Lucas. O evangelho de João não é a biografia de Jesus, é a auto-biografia de João. Resta acreditar nele, ora, pois.

Ta muito fácil, vamos complicar um pouquinho, senão perde a graça.

Observação número 1: Dois desses primeiros herdeiros, Marcos e Lucas, não conheceram Jesus. Lucas, por exemplo, foi discípulo de Paulo, que foi discípulo de Barnabé, portanto, a terceira versão do experimento original. Parece brincadeira de telefone-sem-fio. E, no fim, acaba sendo, porque Lucas não disse as mesmas coisas que Marcos, que não disse as mesmas coisas de Mateus, que está longe de ter dito as mesmas coisas que João. É o conjunto da obra que interessa. Tenho pavor daquelas caixinhas com dizeres bíblicos, em que o sujeito tira um papelzinho aleatório para decifrar a mensagem do dia. É pior que horóscopo. Pior que periquito de realejo.

Observação número 2: Entre as palavras de Jesus e os evangelhos não existe apenas um gap de 40 anos, uma geração pelo menos, mas um fato/fator fundamental. Entre as palavras de Jesus e o que foi feito delas existe um trem que a teologia chama de a “experiência pascal”. Lembra da história da crucificação na véspera da grande festa da Páscoa? Aquilo não passaria de um desastre de avião monomotor se não fossem as notícias, boatos. Um mais um, mais outro, mais outro, foram espalhando... O quê? Não sei. Notícias truncadas. Parece que ele havia “aparecido”. Mas não era ele. Peraí, era ele, sim. Uma boataria se espalhou logo depois do sinistro. A farisaiada chiou e Pilatos até mandou lacrar o túmulo. E isso cresceu mais que massa de pão. Ganhou volume. E aquele desastre da véspera da shabat começou a ser reavaliado a partir de uma experiência inteiramente subjetiva. Só que foi um mais um, mais outro, mais outro... E ta aí. Não é que a coisa pegou? Se eles erraram, todo mundo foi pro brejo também. Se acertaram, todos acertaram, e amém.

Espero ter deixado claro que o uso catequético-litúrgico-apologético-doutrinal que se faz dos textos nada tem a ver com as suas intenções originais. Redundei: isso acontece com qualquer texto-fundador.

O autor do livro “Deus, um delírio” afirma que Javé, o Deus judaico, era um delinqüente psicótico, com um estranho fetiche ligado às regras menstruais e ao cheiro de carne assada. Caramba! Não é assim. Esse Javé a que ele se refere não é o Javé de-si-pra-si, mas o quê foi possível alcançar dele, por alguém ou alguns, num determinado momento da história do povo judeu. Essa imagem é auto-biográfica: ela fala mais de quem a criou, que propriamente do que foi criado a partir dela.

E tem outra. Não existe um Javé. São vários. A cada momento, há uma evolução, a revelação de uma faceta nova ainda despercebida. O Javé de Abraão é caseiro, o Javé de Moisés é vulcânico. Mesmo que alguém restringisse o foco e dissesse, por exemplo, que existe um Javé dos profetas, estaria equivocado. Cada profeta tem um Javé proporcional a sua expectativa. O Javé majestoso de Isaías é um, o Javé terno de Ezequiel é outro, o Javé decepcionado de Jeremias é outro, o Javé ressentido feito marido-traído de Oseías é outro. Não deixa de ser curioso que a palavra hebraica Elohim (usada para designar Deus) seja um vocábulo plural (Deuses). O povo mais monoteísta da Terra foi o que produziu a gama mais complexa de muitos deuses num só.

E tem outra. O conceito-cerne da aventura de Jesus de Nazaré foi o de Reino de Deus ou Reino dos Céus. E o que é esse Reino de Deus (Basiléia tou Theou) ou Reino dos Céus (Basiléia tou Ouranou)?

Sei lá.

Só sei o que não é. E não é nada do que se faz por aí, em qualquer instância de oligarquia, prestígio ou poder. Dizer que alguém é pretendente a adquirir a cidadania do “Reino de Deus” é uma coisa extremamente anti-conformista. Isso significa que o sujeito não está a fim de compactuar com nenhuma (veja bem, nenhuma!) conivência ou conveniência. (É!) Deu pra ver que o produto que se vende por aí nas boas lojas do ramo é made in Paraguay.

O conceito de Reino de Deus fica muito próximo de um conceito do AT: o conceito de Santo. Kadosh é santo, em hebraico. Quando os querubins cobriram o rosto e o corpo com as seis asas (Isaias é quem conta) e gritaram em uníssono: Kadosh, kadosh, kadosh (Santo, santo, santo) eles não estavam dizendo que Deus era, simplesmente, um Santo mais graduado que os outros, do tipo, tem santo soldado, santo capitão, santo coronel, Deus é santo general. Não. Pelo amor Dele, definitivamente, não. Kadosh significa O Outro Absoluto, ou O Absoluto Outro, O Outro do Outro. Kadosh, kadosh, kadosh (Santo, santo, santo) queria dizer: Outro, Completamente Outro, Absolutamente Outro, NADA DO QUE EXISTA POR AQUI, e assim mesmo, tudo em maiúscula; caixa alta, por favor. Kadosh significa O Quê nenhuma experiência é capaz de experimentar, nenhuma representação é suficiente para representar, palavra alguma é capaz de dizer. Isso é kadosh. Visinho disso fica o Kadish: a oração em aramaico que só pode ser recitada na presença de, pelo menos, dez homens judeus adultos, para que fique claro que é a proclamação pública da grandeza de Um Outro.

O cerne da mensagem de Jesus, o Reino de Deus, caminha por essa trilha. O Reino não está, ele é. “O Reino de Deus não vem ostensivamente. Nem se poderá dizer: está aqui ou está ali, porque o Reino de Deus já está no meio de vocês” (Lc 17,20). O Reino não tem hora nem lugar marcados, não reconhece fronteira entre sagrado e profano, não condiz com nenhuma forma de elitismo, hierarquia, plutocracia, que mais? Por que os ricos não entrarão nele (Lc 18,24)? Talvez porque também não sejam analisáveis. Bota essa na conta do Dr. Lacan.

O Deus de Jesus de Nazaré (proclamado Cristo) é... Nem sei o que dizer. Por um lado, situa-se em continuidade com o Javé judaico, o da Primeira Aliança. Por outro, é completamente diferente dele. É Abbá, “Papai”. É isso mesmo, Jesus de Nazaré, que nunca quis ser Deus (essa opção foi de Alexandre e Júlio César!) tratava Deus com a intimidade de Abbá, “Papai”. A Segunda Aliança (a Segunda Tópica judaico-cristã) não desfez nem refez a Primeira. Evoluiu a partir dela. E viva Darwin! Afinal, até Deus evolui. Como dizia papai: água parada junta bicho. E não é que junta mesmo!

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