sábado, 30 de julho de 2011

O PERU DO MENINO

O menino havia esperado o ônibus na calçada marcada com a faixa amarela e o havia tomado depois de todos os outros passageiros. A diferença é que o menino levava um peru debaixo do braço. E qualquer um que já tenha visto um peru debaixo de um braço sabe que não existe animal mais pacífico, inofensivo e sério, e que nenhum outro exercita e representa com maior propriedade o seu papel de vítima propiciatória.

O menino sentou-se numa poltrona lateral, do lado da janela. Levava o peru a alguma parte. Vendê-lo? Trocá-lo? Dá-lo? Ou nada disso. Poderia ser apenas, por mais que isso pareça estapafúrdio, para dar uma volta com ele, da mesma forma como as senhoras levam seu cãozinho favorito. Bicho é bicho, gente! Uai? Quem nunca pecou que atire a primeira pedra. Em todo caso, o menino ali estava, pacífico e compenetrado, como o peru.

Subitamente, quando já parecia ter passado o momento oportuno para levantar a bandeira do protesto, a senhora que ocupava o assento vizinho começou a dar mostras de vívido e insustentável incômodo. Logo, logo, como num processo de reações internas, levou as mãos às narinas. Em seguida, afastou-se. Procurou o cobrador com olhar carregado de ameaçadoras insinuações. Finalmente, quando a fervura interna chegou ao ponto de ebulição, liberou o estridente protesto que mais parecia um verso fabricado para literatura de alcova:
- Se não tirarem esse peru daqui, vou desmaiar!

Todos sabiam, com certeza religiosa, que aquela saudável e afetada senhora seria capaz de tudo, menos de desmaiar. Mas o protesto havia sido formulado num tom tão contundente, definitivo e irrevogável, que começaram a temer que fosse acontecer o que sempre acontece. Iam mandar o menino e o seu peru descer do ônibus.

E ele continuava ali, o rosto virado para a janela, a face quase colada no vidro, sem preocupar-se absolutamente com o que a senhora pudesse pensar, ousasse dizer, viesse fazer. Em seus braços, o peru ostentava toda a distinção de um cavalheiro arruinado, de um desses mendigos que todos rejeitam quando lembram que, dez anos antes, era um dos mais abonados comerciantes da cidade. Digno e distante, o peru parecia ser, ali, o único ser capaz de desmaiar em conseqüência de qualquer mau odor.

Então, alguém propôs em voz alta que se rateasse o preço da passagem para que o peru pudesse ocupar o lugar da mulher. Outro, menos zombeteiro, ofereceu-se para trocar o seu lugar com o da indisposta dama. Ela, porém, é que não parecia disposta a transigir. Pelo contrário! Rechaçando todas as fórmulas propostas, insistiu, com palavras de discurso cívico, não poder admitir que num veículo público animais emplumados compartilhassem da mesma categoria de atendimento que animais sem plumas.

Apesar da raivosa severidade daquela passageira patrioticamente antipática, o peru continuava digno, impoluto, impassível, imperturbável. Nunca se viu peru mais insultado, mas tampouco animal mais discreto e silenciosamente irônico.

Quando o ônibus diminuiu a marcha e, lentamente, deu a volta à praça, alguém de fora, instigado por destampado compromisso libidinoso, à passagem de formosa dama em trajes de pré-praia, e sem saber quem ia dentro do ônibus, soltou o mais sonoro e sibilante "fiu-fiu" que já se viu! Foi o que bastou.

Gelou-se inteira a comoção dos passageiros.

O peru voltou-se para a destemperada dama a seu lado e discursou em sua própria defesa do modo como lhe coube fazer: "glu,, glu, glu, glu e glu!"

Preciso dizer mais? Ela desceu no ponto seguinte. De longe ainda pôde ouvir todos os que ficaram, lá de dentro, regozijando-se com o "fiu-fiu" mais longo e oblongo de que se deu notícia mais tarde.

E o peru, agora, livre dos entraves da compostura civilizatória e da culpa católica, pode soltar todos os seus pulmões de ave selvagem que era, antes de ser domesticada, e discursar, à moda aviária e sob o aplauso dos circunstantes, tudo o que em todos os anos lhe ficou preso na garganta: "glu, glu, glu, glu e glu".

Pois é. Quem tem boca vai... Não. Quem tem dinheiro vai a Roma. Quem tem boca, grita. Demore o que demorar, um dia, grita.

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