quarta-feira, 13 de julho de 2011

A BABÁ

Havia, numa família, pai, mãe e quatro filhos. O mais novo era um menino de 1 ano e meio. Como pai mãe trabalhassem fora, no ritmo frenético de hoje, os filhos e, sobretudo, o menor, eram deixados aos cuidados da babá, moça conhecida, indicada, prendada, esperta, disposta, sorridente e feliz. Precisa mais?

No entanto, toda pessoa tem seus desejos ocultos, segredos inimagináveis, planos inconfessáveis. Justo, naquela semana, um desses desejos corroia o coração da babá. Avaliem que, na verdade, nem era grande coisa. Ela queria porque queria do jeito como as moças, geralmente, querem, participar de uma festa do bairro que se desenrolaria o dia inteiro. Coisa para não se perder de jeito algum!

E mais: era coisa ingênua! O que tem demais numa moça querer participar de uma festa com todas as outras e com todos os outros. Ela só tinha 17 anos! Quem de nós já não teve 17? Quem de nós não desejou, no mínimo, o mundo inteiro, aos 17? Quem de nós teria argumentos para dizer àquela moça que ela não podia participar da festa porque havia quatro crianças para cuidar e uma delas com 1 ano e meio?

Pois é. Aí é que residia o problema.

A festa, aniversário de bairro, caía justamente no meio da semana, justamente no dia em que os patrões viajavam para a capital, justamente no dia em que ela de maneira nenhuma podia se ausentar da casa.
E aí: como ir? E aí? Como não ir? Lembrem-se: ela só tinha 17 anos!

Foi então que ela teve uma daquelas idéias que nos visitam quando a gente tem os tais 17. Ela iria, sim, na festa. Não perderia a festa por nada desse mundo. Ela iria, sim, na festa.

Mas não falaria aos patrões, não pediria feriado, não faltaria aos compromissos. Estaria ali, na casa deles, como deveria estar e como sempre estava todos os outros dias. Ela só tinha 17 anos, mas uma coisa ela já havia aprendido da vida: palavra era palavra. Não, não faltaria ao emprego.

Mas...

Mas também não faltaria à festa. De que jeito? Ora, simples: deixaria os três maiores por conta da senhora que cuidava da casa e... Levaria os dois menores, inclusive, o menorzinho. Eles iriam adorar a festança!
Pragmática, ela pensou que era uma solução e tanto! É claro que era coisa uma ingênua. Imprudente, sim, totalmente imprudente. Porém ingênua. Era só uma moça de 17 anos querendo participar de uma festa de bairro. Mais nada!

Mas é claro que, além da senhora que cuidava da casa, ninguém mais deveria saber da resolução. Muito menos os pais das crianças. E mesmo para a senhora que cuidava da casa ela inventou, sei lá que desculpa, dizendo que voltaria logo, que era só uma festinha de criança, que ela não precisava temer nada, que nada aconteceria.

Desde que havia chegado ali, naquela casa, aquela moça nunca havia dado nenhuma ocasião de maior apreensão, numa havia se metido em nenhuma temeridade. Foi isso o que fez com que a senhora que cuidava da casa, mesmo mais velha e mais experiente, não duvidasse da palavra nem da sinceridade dela.

E assim, claro, ela foi. Tão logo a casa ficou vazia dos pais das crianças, ela tomou o primeiro ônibus com os dois menores e foi para a festa.

E passa uma hora. E passa duas. E passa três. Nada dela voltar. Já, em casa, a senhora começava a se inquietar com a demora. Vem o almoço, passa a hora do lanche e – pelo amor de Deus! – nada dela voltar. Desesperada, a senhora passa a ligar para todos os telefones que conhecia. Ninguém atendia. Mais desesperada ainda, na iminência da chegada dos pais, a senhora liga para a polícia, hospital central, todo lugar pra onde o medo a mandasse ligar.

Já era pelo final da tarde, quando os pais voltaram e, no virar da esquina, encontraram a casa rodeada de viaturas policiais e todo alarme e todo alarde que se costume despender nessas circunstâncias. Será desnecessário dizer do desespero com que eles se aproximaram da casa, a choradeira com que foram recebidos, a gritaria das duas crianças, o rebuliço da vizinhança. Será desnecessário contar da falta de palavras com que a senhora que havia ficado com o cuidado da casa e dos dois filhos maiores narrou o inenarrável, o absurdo que se pode contar a um pai e a uma mãe: seus filhos sumiram, seu filho de 1 ano e meio deve estar em algum lugar dessa cidade, sabe Deus, na mão de quem.

Vocês conseguem imaginar a potência desse desastre e a impotência que ele causou? Dá pra imaginar a dor, a culpa, o odioso remorso dos pais por terem, por assim dizer, “largado” os filhos em mãos de estranhos, a fim de cuidarem de outros interesses? É claro que sabemos que, afinal, esses “outros interesses” eram os interesses deles mesmos e da família. Mas àquela hora, aquela fatalidade imaginária – calculem – qualquer outro interesse teria o poder de derrubar por terra toda boa intenção que não fosse ter ficado ali, pessoalmente, cuidando dos filhos.

Nada justificava nada! Tudo acusava tudo! Nessa hora, quem pensa, quem calcula os atos? Não há a menor chance de se avaliar o imprevisível das conseqüências.

Isso tudo durou quanto? Uma hora? Meia hora? Dez minutos? Dez segundos? Esse tempo é impossível de ser medido. Não há relógio eletrônico capaz de aferir o tempo da angústia incapacitante. Simplesmente, não há.

Foi, então, que nesse momento o pai saiu do transe. E saiu em disparada. O pai não viu quem estava à frente. Saiu em disparada e tomou o carro. Não viu policial, não viu ambulância, não viu repórteres, não viu vizinho, não viu nada, não viu ninguém. Tomou o carro e saiu em disparada pela rua.

Cem metros à frente, no ponto de ônibus, já no lusco-fusco de começo de noite, mesmo através das lentes de óculos de míope, mesmo apesar do desespero que já ameaçava sufocá-lo, ele enxergou, descendo do ônibus, bela e faceira, revitalizada por um dia inteiro de festas e alegria, uma moça de uns 17 anos acompanhada de duas crianças pequenas, uma delas no colo, com caras felizes e bem cuidadas.

Ele parou o carro de qualquer jeito, largou tudo do jeito que pode e correu na direção delas. Tão logo chegou perto, soluçando, abraçou a pequena Lara de três anos e ouviu dela as cinco mais inesquecíveis palavras da sua vida:
- Papai! A festa tava tão boa!

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