quarta-feira, 27 de julho de 2011

RESENHA COMENTADA – 2

De onde vieram essas idéias?

A melhor definição de signo é a de que signo é aquilo está no lugar de algo para alguém. Veja: se você está com sede, a simples menção da latinha de refrigerante não mata a sede e não tem sentido nenhum, se mencionada só pra você. Passa, no entanto, a ter todo sentido, se houver alguém na jogada. “Você teria uma latinha de refrigerante aí?” Para falar algo é preciso que haja alguém, depois de você e antes do algo.

Os grupos e as culturas sempre expressaram, coletivamente, o que pensavam, imaginavam, temiam ou julgavam valioso. Pra isso é que foram criadas a música, escultura, pintura, construções, vestimentas. Mas, não há dúvida, a forma privilegiada dos grupos expressarem aquilo que pensavam e sentiam foi a fala. A fala esteve presente (minto, está presente), em toda expressão de um grupo humano. Sim, apenas nos grupos humanos. Os animais emitem sons convencionais, mas isso não significa que eles falem. Os animais, por exemplo, não mentem, não contam piadas, não dizem uma coisa com duplo-sentido, não comemoram datas festivas, não sopram velinha de bolo nem enfeitam as ruas quando o time ganha. Os animais são o que são, só isso, e acabou. Pra eles, o mundo é tudo e é mudo.

Para nós, não. O mundo não é tudo nem é mudo. Não é tudo, porque a gente sempre inventa uma necessidade a mais. (Dono de loja sabe disso!) E não é mudo, porque nós colocamos palavras nele. (Ou você nunca conversou com o seu cachorrinho? Tem quem converse com planta!) É daí que surge toda clareza e toda confusão. A fala humana é um emaranhado de comunicações trançadas onde nada é só o que parece ser. Na fala, os valores emocionais nadam como peixes, conotações e segundos sentidos voam como pássaros e a gente só se entende (sabe Deus como!) por acaso ou pelo acordo tácito (em boca fechada não entra mosca!) de ignorar tudo o que saia do campo consensual. Como se diz no mundo jurídico: o que não está nos autos não existe no mundo. É assim mesmo que fazemos. Se não está ali, eu não quero ver; se eu não quero ver, não está ali. Melhor: o que eu não quero ver, não existe. Nem que seja um pouquinho só, todos vivemos no Castelo de Caras. De mentirinha.

Eu estudei lógica. E já naquela época achava aquilo uma bobagem. Essa história de lógica formal serve apenas para mostrar como não se dá o nosso pensamento. Ele é tudo, menos lógico. Gostaríamos que fosse, apostamos nisso e gastamos uma energia federal pra conseguir que ele seja lógico. – “Seja objetivo”, é a exigência. – Mas isso é impossível. Se a feijoada não cair direito, se alguém esbarrar na unha encravada ou se o gerente do banco telefonar um pouco mais sério, (cabrum!) evapora-se toda pretensão de lógica e objetividade. Não que lógica e objetividade não existam. Decerto, até existem. Mas, o que acontece é que a fala (humana) diz sempre mais e sempre menos do que pretende dizer. Aí, a lógica emperra e derrapa. Né!

Até aqui, tudo tranqüilo? Que bom! Porque a partir daqui, as coisas começam a não ficar tranqüilas.

Falar sem se fazer entender

Ao longo dos séculos, o grupo cultural cristão ocidental (ou seja, os cristãos do lado de cá) construiu sua própria linguagem: leis, confissões, textos, rituais, imagens, mosteiros, igrejas... Através das figuras e das cores, os cristãos deram forma àquilo que não cabia nas palavras: esperança, expectativa, imaginação, medo, alegria, dúvida. Uma imagem fala mais do que mil palavras. Certo? Hãhã. Errado. Uma imagem só fala quando existem as tais mil palavras escorando atrás dela, dando suporte, nas quais ela consegue ser apreendida e se expressar. Veja: quando a gente se esquece de algo, não é a imagem, mas da palavra (como se chama aquele algo) que a gente esquece. “Como é que fala mesmo?...” Quando a gente não encontra a palavra exata, a gente põe outra no lugar, mas sempre fica faltando ou sobrando um pedaço, como um triângulo guardado dentro de um quadrado. Euclides da Cunha dizia que não existem sinônimos: cada palavra serve só naquele lugar e, naquele lugar, outra palavra não cabe.

Mas aí, aconteceu algo assombroso com o grupo cristão ocidental. (Vamos combinar que sempre que eu falar de cristianismo será do modelo ocidental, certo? O modelo oriental faz parte de outro planeta.) Algo assombroso, eu dizia, porque aquela linguagem, que durante mil anos todos entendiam, transformou-se numa língua estranha, estrangeira, morta, incompreensível, a não ser para aqueles que fossem formatados nela.

Eu me lembro do meu avô rezando terço durante a missa, sem a menor pretensão de entender patavina daquilo que o padre resmungava de costas viradas para ele. Ouvi até dizer que havia um padre que cantava “Chiquita Bacana” durante a missa. Ôps! A missa dele, a que ele estava celebrando! Paciência, uai. Quem mandou aquele povo levar 20 séculos para se dar conta de coisas básicas como o que chamei à atenção, no início da prosa: que signo é aquilo que está no lugar de algo para alguém. Quando eu falo, a coisa não está ali, mas está, porque vai ficar, porque eu falei. Falar do que não está, numa língua em que ninguém esteja, é surreal, quase louco.

O mundo foi mudando e vai continuar mudando. Quem não mudar junto, vai cair da carroceria. E é curioso como já nos inícios eles mudaram. Veja só.
Jesus de Nazaré foi um operário da construção civil (Mateus emprega a palavra tekton para dizer que ele trabalhava no serviço braçal pesado). Quando passo perto de um canteiro de obras, penso: Se ele estivesse, seria reconhecido? Aquele Jesus produziu um discurso completamente novo e subversivo acerca da realidade: “Prestem atenção nos lírios do campo, eles não tecem...” (Mt 6,28). Ou seja: Caramba! Pra quê tanta coisa?
Porém, isso foi dito e proclamado, em aramaico do século I da nossa era, para e por um pequeno grupo de gente sem a menor pretensão expansionista, sem a menor pretensão de nada. Aliás, eles eram tão nada, tão ninguém, que jamais (ouçam, jamais), nem no maior delírio coletivo, imaginariam aonde a coisa iria chegar. Jesus mesmo achava que o mundo não passava daquela geração.

Mas passou. E nem bem a primeira geração havia envelhecido, surgiu por ali um sujeito culto, com pretensões que ninguém havia se dado conta ainda. Saulo de Tarso – Paulo, para os mais íntimos – veio com umas idéias para aquele pessoal daquele movimento primitivo, que nem Jesus, em pessoa, havia concebido. Bateu de frente com as autoridades constituídas de Jerusalém, Pedro e Tiago do lado cristão e a fariseuzada do lado judaico, e caiu na estrada. Paulo era um sujeito esquisito; o quesito esquisitice só perdia para o quesito cabeçudice. Ele quis, foi e fez. Expandiu o movimento. Nada de ficar por aí olhando lírios e pardais. “Vamos fazer disso daqui uma empresa, gente!” E a coisa apegou. Mas aí ele precisou de outra língua, outra linguagem e outros conceitos: passou a falar, pensar e escrever em grego. E mudou tudo.

Os gregos tinham idéias mais amplas de um humanismo secular e nos legaram noções como democracia, igualdade, liberdade pessoal, razão científica, liberdade intelectual, abertura de pensamento e o que hoje chamamos de “multiculturalismo”. A noção grega da vida é urbana, sofisticada, investigativa, com espaço garantido para a dúvida e o debate. Numa palavra, aberta.

Já o modo hebraico de ver o mundo é outro. Quando digo “hebraico”, não me refiro especificamente aos princípios do judaísmo. Há muitos judeus contemporâneos que são gregos, enquanto a maioria dos cristãos fundamentalistas é profundamente hebraica. “Hebraico”, no uso que faço da palavra, é um jeito menos aberto de ver o mundo, onde as referências são o tribalismo, a fé, a obediência e o respeito. O jeito hebraico se baseia no clã: patriarcal, autoritário, moralista, ritualista e instintivamente desconfiado de estranhos. O mundo é um joguete entre o bem e o mal, com Deus sempre firmemente do lado do bem, que é, claro, o “nosso” lado. Desse lado, as ações humanas são certas ou erradas, não há área cinzenta. O coletivo é mais importante do que o individual, a moralidade é mais importante do que a satisfação e qualquer promessa ou voto é inviolável. A noção de vida hebraica é fechada.

Paulo, a quem Deus escolhera antes dele nascer (Gl 1,15), era romano, grego e judeu, não necessariamente nessa ordem. Observe que foi nessas línguas que Pilatos escreveu a tabuinha de condenação. Paulo era cosmopolita. Foi isso que permitiu a ele criar e formatar os princípios fundamentais do cristianismo, e transformar o cristianismo de seita judaica em religião universal. Mas não foi só isso. Foi, sobretudo, o fato de ele não ter feito parte do círculo íntimo de Jesus. Ele não conheceu Jesus, nunca conversou pessoalmente com Jesus, não guardou do fundador “emérito” nenhuma lembrança. Não precisa fazer muito esforço pra imaginar os primeiros discípulos recordando as conversas íntimas da última ceia: “Você se lembra que naquela noite Jesus me pediu para passar o sal?” Dá pra imaginar Paulo pensando nisso, assim? Não. Por uma única razão: ele estava fora do grupo. Judas saiu. Paulo não entrou. Slavoj Zizek diz que, dessa forma, Paulo também traiu Jesus, não se preocupando com suas particularidades, reduzindo-o brutalmente ao essencial, sem mostrar a menor ternura pela sua sabedoria, pelos seus milagres, palavras, ou por aquilo que ele fez. O ethos de Paulo, organizador e determinador, é antagônico ao ethos de Jesus. Em linguagem lacaniana, o Simbólico é a morte do Real. Nesse sentido, Paulo “suprimiu” Jesus para, no lugar, fazer surgir o Cristo.

Olhem para Paulo, leiam Paulo, mas com atenção. Cadê as parábolas (maravilhosas) de Jesus, onde foram parar os lírios do campo e os pardais, e o bom pastor, e as dracmas perdidas? Ara! Tudo isso era coisa de judeu que falava aramaico num canto perdido do mundo. Paulo mudou tudo e mudou tanto que nem Pedro entendeu mais. Vão lá ler, que está lá. A confusão foi inevitável. Em vez de um anúncio, o resultado foi uma deformação e um engano, num texto que ficou quase irreconhecível. Traduttore, traditore, não é! Todo tradutor é um traidor.

Mas, peraí. Não estou dizendo nem que Paulo confundiu nem que deformou o conteúdo da mensagem. A mensagem foi confundida e deformada pelo simples motivo de ter caído em outro mundo. (Plante uma semente de milho num lugar sem chuva pra ver o que nasce.) Mudou porque mudou, porque o mundo era outro, porque a situação havia mudado, porque Paulo não era Jesus, e porque Jesus nunca quis ser o que Paulo foi. Apesar de certos autores de uma certa literatura de beira de rua insistirem que Jesus foi “o maior líder do mundo”, “o maior professor que o mundo já teve”, ou bobagens similares, o que ele mesmo nunca quis foi ser o maior seja lá no que fosse. Já Paulo, não; ele bem que gostava de um holofotezinho. Não é à-toa que ele seja tanto soli-citado por quem também goste da mesma exposição faroleira.

Pois é, a linguagem mudou e com ela a mensagem também mudou.
E continuou mudando tanto, que hoje está praticamente irreconhecível. É que os intérpretes... ah, meu Deus! Imagine um oratório de Handel interpretado pelo coro da Abadia de Westminster: supremo! Imagine o mesmo oratório interpretado por um coro de fundo de quintal: dá até pra reconhecer que é Handel, mas...

Se o anúncio não chega nem afeta as pessoas pode ser porque as representações usadas pela Igreja em sua pregação e em sua imagem do mundo e de Deus acabem numa interpretação meia-boca de fundo de quintal ou continuem num tempo, digamos, medieval, que foi quando a Igreja se inventou. Enquanto isso, a sociedade ocidental se renova a cada instante, aperfeiçoa seus métodos e se distancia das representações daquela época à velocidade da luz. Quem pensa e sente como se estivesse na Idade Média fala também assim. E essa linguagem se tornou um “idioma estrangeiro” para quem pensa e se sente vivendo aqui, hoje, agora. O latim foi abolido naquele dia em que os altares foram virados de frente para o povo. Mas, apenas o latinório medieval foi abolido. O resto, em boa parte, continua lá.

Quando eu deixei o ministério, meu irmão me avisou que eu me instalara num lugar incômodo: eu havia deixado de ser o primeiro dos últimos para ser o último dos primeiros. Confesso que foi difícil sair da frente da sala de aula para sentar-me na última carteira. Mas, hoje, eu percebo o quanto o lugar professoral impede a visão das coisas e como, da última carteira, se enxerga tudo muito mais e melhor. Obrigado, maninho querido, por me ter alertado. Garanto-lhe que me sinto muito mais confortável, aqui, agora.

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