quarta-feira, 27 de julho de 2011

COMENTÁRIO ESPICHADO – 6

Constantino

“Pelos frutos conhecereis a árvore” (Mt 7,16)

A terceira rama forte do cristianismo foi plantada e adubada por Constantino.

Começo dizendo que todo sistema se adapta, no correr do tempo, ao molde da alma a que serve. Com o sistema religioso não é diferente.

Em Alexandria, centro da vida religiosa egípcia, Ptolomeu I ergueu um grande templo, o Serapeum, no qual era venerada uma trindade de deuses: Serápis (novo nome de Osíris-Apis) Ísis e Hórus. Os três não eram encarados como deuses separados, e sim como três aspectos de um mesmo deus. Serápis era identificado com o Zeus grego, com o Júpiter romano e com o deus-sol persa. Essa veneração se disseminou por todos os lugares onde houvesse influência helênica, alcançando o norte da Índia e a China Ocidental.

Nesse tempo, a idéia da imortalidade, uma imortalidade de compensações e consolo, era aceita com avidez num mundo em que a vida comum era uma desgraça incontornável. Pois é, meio lá, meio cá. Serápis era conhecido como o “salvador da alma”. Os hinos religiosos da época diziam que “após a morte, ainda estaremos protegidos por sua providência”. Ísis era a que atraía mais devotos. Suas imagens de Rainha dos Céus, com o infante Hórus nos braços, dominavam os templos dedicados a ela. Velas eram mantidas acesas diante dela, ela recebia oferendas votivas, e sacerdotes celibatários de cabeça raspada cuidavam do seu altar.
A ascensão do Império Romano abriu as portas da Europa Ocidental para esse culto crescente. Os templos de Serápis-Ísis-Hórus, as cantorias dos sacerdotes e a esperança de uma vida imortal seguiram os estandartes romanos até a Escócia.

Agora, observe bem o seguinte. Esses cultos aliciavam de escravos a cidadãos porque eram religiões pessoais, direcionadas à salvação pessoal e à imortalidade da alma. Antes deles, as religiões mais antigas não eram pessoais, eram sociais. A divindade à moda antiga era, em primeiro lugar, um deus da cidade ou do Estado; o indivíduo vinha em segundo plano. Sacrifícios e preces eram atividades públicas, e não privadas, diziam respeito às necessidades coletivas do mundo em que se vivia, e não às agruras de cada alma. A novidade daquele momento, foi que, primeiramente, os gregos e depois os romanos despojaram a religião de sua função política e social. Guiada pela tradição egípcia, a religião passara para outro mundo e, literalmente, para o outro mundo.

Não sei se vocês sabem, mas a religião dos hebreus, no início, não abrangia o pós-morte. Era tudo para aqui mesmo. Foi só no exílio da Babilônia (587-537 AC) que, ao contato com o Mitraísmo persa, os judeus foram picados pela vespa da imortalidade. Até, então, para o judeu piedoso, ser imortal era fazer-se sobreviver nos filhos dos seus filhos até a terceira e quarta geração. A maior glória era ter o próprio nome unido ao sagrado e impronunciável Nome de Javé, e por aqui mesmo, e bendito seja o seu Nome! Contemporâneos de Jesus, só os fariseus acreditavam na vida eterna. Os saduceus não esperavam nenhuma vida para além da morte. E ninguém achava que isso fosse o fim do mundo.

Em Roma, os Césares haviam aprendido dos egípcios que podiam ser deuses; em seus templos praticava-se uma veneração política fria e oficial em que o devoto queimava incenso para demonstrar lealdade. Porém, era ao templo de Ísis, a querida Rainha dos Céus, que o sujeito recorria, com seu fardo de problemas pessoais, pra obter conselho, consolo e alívio. Naquele meio, honrar os deuses era uma coisa, acreditar neles era outra. Honrar não exigia pensamento, crer, sim.

Nascia, então, uma nova concepção do sujeito. Ele não era mais bucha-de-canhão para o engrandecimento dos impérios. Ele era (vejam bem!) alguém (vê se pode?) que podia querer algo (aonde isso vai dar?). Ele agora tinha deuses para ampará-lo na descoberta da sua essência mais íntima, que era o seu desejo. Ora, ora! E de desejo em desejo, ele foi desejando mais do que a simples vida estaria à altura de conceder. Ele não queria só viver, o que ele não queria mais era morrer. Desejou contornar a morte, e se não fosse pedir demais, viver para sempre. Bom, né!

O derivado torto disso foi a ascese, no nosso caso, a ascese cristã. No Oriente, bem antes de Buda, já homens e mulheres desprezavam os prazeres, abraçavam os sofrimentos e abriam mão da propriedade para fugir das perturbações e complicações da vida. Eles almejavam a solidão. Para esse tipo de gente, o mundo era pouco. A ascese cristã pegou carona nessa onda. E forjou um cristianismo, quase, antagônico ao pensamento do Fundador, porque esse, sim, comia e bebia e não perdia nenhuma festança e, inclusive, era mal visto por causa disso. Esse cristianismo ascético era deformado, mas era balsâmico. Deixou de ser profético para ser terapêutico.

É que o mundo havia mudado, e muito, e muito rápido.

Ao longo dos três primeiros séculos da era cristã cristalizou-se uma tendência quase mundial de repúdio à vida normal e de busca por uma “salvação” que acabasse com os tormentos recorrentes. Já não existia mais a antiga sensação de ordem estabelecida nem a antiga confiança no sacerdote, no templo, na lei e nos costumes. Num tempo de escravidão inescapável, de crueldade, ansiedade e medo, esbanjamento, ostentação e comodismo egoísta, grassava uma epidemia de desgosto e insegurança mental, uma busca angustiante de paz, que implicava renúncia e sofrimento voluntário.

Os cristãos embarcaram nessa, de cabeça.

Foram eles os que mais abandonaram e desprezaram as formas externas dos cultos oficiais para se apegarem à religião da retidão e do conforto interior. Nem preciso dizer que, com isso, se fizeram mal vistos: poderiam atrair a ira dos deuses ofendidos pelo desprezo. Aí, veio o incêndio de Roma (64 DC), e Nero tinha o bode expiatório no tamanho exato para carregar a culpa. Os cristãos. E daí em diante, ser cristão era ser candidato à crucifixão, a virar churrasco ou farelo de leão. Aliás, a palavra “candidato” vem daí, mesmo. “Candidati” eram os vestiam a “cândida”, ou seja, a roupa branca com a qual enfrentavam o martírio. Essa você não sabia!

De repente, só o discurso cristão não supria as lacunas de um sujeito dividido entre o seu desejo e o seu medo. Numa angústia que não tinha fim, os crentes foram lançando mão de outros apetrechos religiosos, em cujas promessas instantâneas eles encontravam mais eficácia e consolo do que nas palavras da bem-aventurança cristã. Lembrem-se, eles não tinham nada a que se agarrar: nem uma medalhinha de Nossa Senhora à moda católica, nem uma Bíblia pra por debaixo do braço à moda protestante. Nada. O cristianismo do início ainda não havia sido fetichizado. Santos e andores e padres cantores só viriam depois.

Já dissemos que as comunidades cristãs começaram a ser dilaceradas por disputas teológicas complexas. É que quando religiões florescem lado a lado, elas tendem a adotar peculiaridades externas uma da outra. Depreciando a essência do ensinamento de Jesus, o cristianismo nascente adotou práticas da vizinhança religiosa. Adotou das crenças alexandrinas e mitraicas não apenas aspectos formais como a tonsura do sacerdote, a oferenda votiva, os altares, as velas, os cantos e as imagens, mas também tomou de empréstimo expressões de devoção e idéias teológicas. Todos esses cultos floresciam lado a lado, cada um deles disputava adeptos, e ocorriam constantes idas e vindas de convertidos entre eles.

E surgiram grupos. Os arianos afirmavam que Jesus era divino, mas distinto e inferior ao Pai. Os sabelos afirmavam que Jesus era meramente um aspecto do Pai, e que Deus era Jesus e Pai ao mesmo tempo, assim como um homem pode ser padeiro e pai ao mesmo tempo. Os trinitários propunham uma doutrina mais sutil, na qual Deus era um e também três, Pai e Filho e Espírito Santo: essência, existência e consistência.

E vieram as perseguições. A perseguição de Diocleciano foi a mais agressiva, mas fracassou, e foi a última tentativa de eliminar a crescente comunidade cristã. O fracasso se deu porque a imensa base do triângulo social, os pobres e os escravos, havia se tornado cristã, tributária da necessidade de encontrar qualquer coisa que justificasse e desse sentido a uma vida sem sentido. Ao mesmo tempo, também muitos oficiais haviam passado para as fileiras cristãs. Em 313 DC, o novo único governante do mundo romano apenas selou o que já vinha acontecendo de fato. Dentro de poucos anos, o cristianismo se estabeleceu como religião oficial do império e as religiões adversárias desapareceram ou foram absorvidas com extraordinária rapidez. Em 390, Teodósio, o Grande, ordenou que a estátua de Júpiter Serápis fosse destruída em Alexandria. Do século V em diante, os únicos sacerdotes ou templos do Império Romano eram sacerdotes e templos cristãos.

Mas, peraí, volta um pouco, que essa história carece de maiores detalhes.

Constantino I, o Grande, imperador do Império Romano, deu liberdade aos cristãos, em 313 DC. Em 319, fez do cristianismo a religião oficial do Império Romano. Em 325, convocou e presidiu o primeiro concílio ecumênico da igreja cristã, definiu a base da ortodoxia doutrinal para os próximos milênios e ainda teve tempo de cometer um punhado de barbaridades. Era pagão. Há quem sustente que nunca foi batizado. Aqueles que gostam de pintar tudo cor-de-rosa garantem que ele pediu o batismo na hora da morte, mas não há o menor motivo pra pensar nisso. O fato é que um sujeito, general de exército, imperador romano e pagão, foi quem definiu a fé cristã. Só isso deveria por muita gente pra pensar. Se a gente pensar que Moisés, nascido e naturalizado egípcio, com nome e RG egípcio, definiu a fé judaica, não fica nem longe nem tão ruim assim. Como essas coisas acontecem é um mistério. A resposta usual simplista diz que é obra do Espírito Santo. Mas, assim, o Espírito Santo fica parecendo caixa de brinquedo de criança: cabe tudo lá dentro.

O cristianismo de Constantino, a terceira perna do tripé cristão, foi um condensado teológico (tão firme quanto aglomerado de madeira) que apareceu só no século IV, 300 anos depois da primeira geração cristã e, sem dúvida, a anos luz da experiência original. Afinal, como se deu isso?

Até o século IV, as primeiras levas de cristãos alternaram períodos de perseguição com períodos de relativa paz. O maior período de paz se deu no século II, na gestão dos cinco chamados “bons imperadores”, em cujo início o Evangelho de João foi escrito. A maior e mais sangrenta perseguição, a de Diocleciano, se deu, por estranha coincidência, justamente, pouco antes dos acontecimentos que geraram o “cristianismo de Constantino”. Diocleciano morreu em 311 DC, e o sucessor soube capitalizar a força irreprimível que os outros quiseram sufocar.

Conta a lenda que Constantino teve uma visão: enxergou no céu uma cruz com os dizeres “IN HOC SIGNO VINCES” – “com esse sinal vencerás”. Botou a cruz nos estandartes do exército, partiu para a guerra e derrotou Magêncio, pretendente ao trono. Por causa disso, Constantino nunca mais subiria ao altar de Júpiter para oferecer sacrifícios pelas vitórias, encaminhar-se-ia para conceder liberdade aos cristãos e, praticamente, dividiria o poder com eles.

É lenda. A História é outra. Por causa do seu gigantismo, do enorme gasto com a defesa das fronteiras e, é claro, da corrupção interna, o Império Romano se via a cada dia pior das pernas. Numa situação dessas, qualquer império, seja romano, seja americano, se une a quem possa sustentá-lo em pé. (Os USA não encheram o ditador do Egito de dinheiro?) No caso do Império Romano, havia uma força humana irreprimível e (naquela época) incorruptível, crescendo dentro das fronteiras, sendo combatida e se avolumando, sendo morta e brotando por todo canto. “O sangue dos mártires é semente de novos cristãos”, foi o que disse Tertuliano no frisson do momento. Constantino, que de lerdo não tinha nada, viu aquilo ali e, se não podia vencer o inimigo, uniu-se a ele. Ao invés de barbarizar o cristianismo, deu-lhe reconhecimento, oficialidade, garantias, e o colocou para trabalhar a favor do império.

Aí aconteceu um fato tão indescritível, que fica difícil qualquer avaliação. Já disse que em 313 DC, Constantino concedeu liberdade de culto aos cristãos. Seis anos depois, em 319, fez do cristianismo a religião oficial do Estado. Em 325 convocou e presidiu o primeiro concílio da cristandade: o Concílio de Nicéia.

Agora, vem comigo.

Em 325, fazia (só!) 14 anos que Diocleciano havia morrido. Portanto, há apenas 14 anos antes, os cristãos eram perseguidos, torturados, mortos. De repente, um pouco mais de três copas do mundo depois, eles já eram religião oficial do império, já tinham seu primeiro concílio convocado, presidido e pago pelo imperador. Sim, porque Constantino pagou o deslocamento dos padres conciliares, sua estadia, etc. Era de pirar o cabeção de qualquer um! Imagine a fila de gente chegando para as sessões inaugurais do concílio: gente sem olho, sem braço, sem perna, mutilada de toda ordem, com rancores e azedumes e, sobretudo, com um medo tremendo de aquela fosse mais uma armadilha para cortar cabeças e deixar a igreja acéfala. Pode colocar sua imaginação pra funcionar, porque a lista de horrores era grande. Nem o papa foi a Nicéia.

Qual era a do imperador? A localização de Nicéia, por si só, responde à pergunta. A cidade ficava na Anatólia, hoje Turquia, longe do Ocidente, longe de tudo e, sobretudo, longe de Roma. Como disse, nem o papa Silvestre I participou; em seu lugar, enviou apenas cinco corajosos representantes. Atanásio estimou em 300 o número dos participantes, portanto, nada mais do que seria hoje o sínodo de uma igreja particular. Quase nada em termos de universalidade. Constantino, desta vez, usou uma tática inédita no Império Romano: não mais dividiu para governar, ele reuniu para governar. Nicéia foi sua mesa de negociações e seu palanque.

E foi um palanque reconhecido. Para a propaganda oficial, o I Concílio de Nicéia foi responsável por duas coisas: declarar que Jesus era Deus e definir a data da Páscoa. Mas o que fez Nicéia aparecer no mapa-mundi foram as determinações jurídicas tomadas para retirar a Igreja do gueto e torná-la visível e universal. Vem cá, porque essa era a intenção do imperador: um Deus, uma igreja, um império. Ele conseguiu. Mas não foi fácil.

Em Nicéia, dois sujeitos entraram vencedores de Constantino: Eusébio e Atanásio. Constantino saiu vencedor, Atanásio levou o prêmio de consolação e Eusébio saiu com nada. Eusébio tinha cara de pombinha de pé de santo. Vira casacas, quando viu que a maioria pendia pro lado do imperador e que quem ficasse contra não teria aposentadoria de servidor público com adicionais garantidos, passou pro lado do poder e garantiu o seu. Até escreveu uma “História Eclesiástica” cheia de impropriedades, só para garantir posteridade. Mas quem passou mesmo à posteridade foi Atanásio. Quem vai à igreja, todo domingo, professa o credo escrito por ele. E menciona um tal de Pôncio Pilatos, como única referência histórica para lembrar que Jesus, um dia, realmente, existiu.

Não é complicado perceber porque foi que Nicéia aconteceu. Foi uma questão política. Complicado é entender o que foi que Nicéia entendeu. Deus é um ou Deus é três? É um em três ou é três em um? Jesus é Deus ou Jesus é só Jesus? Se Jesus nasceu em berço humano, então, Deus nasceu de berço humano? Como é que Deus é? Vocês imaginam que as pessoas daquela época discutiam essas coisas nas ruas, e com o mesmo ardor com que hoje se discute futebol? É que o mundo judaico e o mundo grego eram vizinhos. Muito vizinhos. Clareia um pouco a questão se a gente pensar que cristianismo nasceu de mãe judia e mamou em ama grega.

Para o judeu, é impensável, absolutamente impensável, ontologicamente impensável, sequer imaginar que Deus em pessoa tenha pisado essa Terra, nascido de mulher, padecido morte vergonhosa nas mãos de um procurador medíocre, no último fim de mundo empoeirado do Império Romano. O mesmo império que agora agia no sentido de proclamar deus a um sujeito que, um dia, tratou como escória. Impensável, intragável, impossível. E ponto.

Para o grego, a situação era bem outra: conhecida e comum. Os seus deuses desciam do Olimpo, assumiam formas humanas, visitavam os humanos, entravam em conúbio com eles e elas, geravam filhos, às vezes assumiam, às vezes não, mas sempre perambulavam por aqui com a destreza que só deuses podem ter. Uma farra! Festa do caqui. Afinal, eles eram mais ou menos humanos, também. Para o grego, Deus era “chapa”!

Um judeu, certa vez, apontou a lâmpada do sacrário e me perguntou o que era aquilo. Respondi. O quê! Disse-me ele. Quer dizer que vocês acreditam que Deus está dentro daquela caixa? Sim, respondi. Se eu acreditasse nisso, ele completou, teria de entrar na igreja me arrastando pelo chão, de gatinhas. Entenderam?

A situação era constrangedora. De duas, uma: ou Jesus era só Jesus, um filho de Deus como todos os outros, e essa honestidade dispensaria quaisquer malabarismos teológicos, mas morria ali mesmo um mito, talvez, o maior de todos, e uma crença feita e pronta para acalentar a nulidade humana... Ou Jesus era o Cristo, o Filho de Deus, The Only One, e nascia ali o maior dos mitos e uma crença bonita, necessária, mas necessitada, é claro, de um trapézio descomunal, porque o malabarismo teológico seria grande.

A primeira hipótese era judaica, a segunda, grega. Venceu qual? A grega, claro! E por que venceu a grega? Simples: por todas as razões elencadas desde o início desta fala. Venceu a grega, porque era a mais necessária naquele momento, a que mais respondia à angústia e ao desespero de uma época totalmente em crise, feito um corredor sem saída. Venceu a grega, porque ninguém agüentava mais viver para a grandeza de qualquer império. As pessoas queriam viver, só viver, nalgum lugar em algum outro sol, que não fosse o sol romano. Só isso, e já estava bom. (Constantino, aliás, não sacou essa.) Diante do desamparo humano, por que não um Deus feito homem, nascido homem, vivido homem, morrido homem, mas sem deixar de ser Deus? Olha só, que baita garantia para o dilema humano!

Tava ali a solução. Atanásio trouxe no bolso a proposta de um novo sistema de pensamento, feito para durar. Jesus e o Pai e o Espírito eram um Deus em três pessoas? OK. Uma ousia em três hipóstases. Saiba que, em grego, ousia era o jeito de enxergar um objeto por dentro, hipóstase era o jeito de enxergar esse mesmo objeto por fora. Olha que simples! Deus era assim: por dentro, era um, por fora, era três. Simples! (Lembra do Serapeum?)

E vieram as questões satélites. Jesus seria inteiramente Homem e inteiramente Deus? OK. Havia a questão do Theotókos: a espinhosa encarnação do Verbo e a maternidade divina de Maria. Tica esse item também. Se os dois eram um só, Maria era mãe dos dois. Como? Depois a gente vê. (Lembra de Ísis com Hórus no colo? É por ai!) Tudo certo, né! E os adoradores do sol, como ficam? Coloque-se um aro solar na cabeça dos mártires e fica tudo resolvido. OK? Mais alguma questão? Todo mundo satisfeito? Era importante que estivessem. Lembram-se: um Deus, um império, um imperador? Unanimidade era tudo em Nicéia.

Para fechar com chave-de-ouro, Constantino fez uma doação de 50 bíblias diretamente do erário público. Mas, para isso, era preciso que existisse uma Bíblia, coisa que ainda não existia, porque o cânon (a lista) dos livros não estava fechado. Providencie-se a votação dos livros que devam fazer parte dessa biblioteca. E foi feita. O Apocalipse passou por um voto. Está nas Atas de Nicéia. Êta Nicéia! Se eu tivesse uma filha...

Percebem?

Atrás das questões teológicas que tanto assombravam e continuariam assombrando, por mais mil anos, a demência humana, havia uma questão política. É, uai! Ninguém, por aí, acredita em Papai Noel, certo? A questão não era teológica, era política. No caso, a questão política dizia respeito ao bem estar e à estabilidade de um império capenga. Constantino estava “se lixando” pra essa questão de Três Em Um! Era só o que faltava! Ele era um general romano, gente. Constantino queria governar. Encontrou o meio. Foi lá, e fez o fim.

Os evangelhos e Paulo haviam sido as duas pernas que deram agilidade ao cristianismo. Constantino foi a terceira perna: deu estabilidade. Agilidade? Nunca mais.

A partir dali, o Império Romano caminhou a passos largos para esfacelamento. Não fazia diferença. Constantino havia consolidado a sucessão criando o sucessor. A igreja nasceu com vocação para durar infinitamente, porque seria uma monarquia sem dinastia e de base democrática. O mais alto poder, à moda romana, poderia ser exercido por qualquer um que ambicionasse exercê-lo. Outros príncipes fracos nascidos de dinastias sem carisma, aptos para governar simplesmente porque brotaram de úteros reais, não teriam vez nessa monarquia absoluta. (Pense no Charles da Camila.) Nesse novo império, para dominar, era preciso mostrar a quê veio e ter apetite. Constantino abriu um novo cenário, uma nova ordem mundial: o casamento perfeito entre o trono e o altar. Mas o dote dessas núpcias trouxe o ranço antigo da dissimulação. Os filhos nasceram com má-formação genética.

Quando começamos a perceber o quanto o Império Romano, esse grande império de fala latina e grega, naquele engatinhar do cristianismo, foi em essência um Estado de escravos, e como era pequena a minoria que podia viver com liberdade e orgulho, começamos a colher os indícios de sua decadência e de seu colapso. Não havia pensamento ativo nem estudos. Escolas e academia de ensino eram raras. O livre-arbítrio e a mente livre não seriam encontrados em lugar algum. As grandes estradas, as ruínas dos esplêndidos edifícios, a lei e o poder, o legado que o império deixou para as gerações futuras não conseguiram esconder o fato de que todo esse esplendor externo foi construído em cima de vontades contrariadas, inteligências reprimidas, desejos deformados e pervertidos. E mesmo a minoria que governava o vasto reino de subjugação e repressão e trabalho forçado sentia desconforto e infelicidade na alma.

A arte, a literatura, a ciência e a filosofia – frutos de mentes livres – definharam naquela atmosfera. Havia cópia e imitação, uma abundância de artífices, muito pedantismo servil entre homens cultos, mas o Império Romano como um todo, em quatro séculos, nunca produziu nada que se igualasse às ousadas e nobres realizações intelectuais que a pequena Atenas produziu em apenas um século de grandeza. Atenas decaiu sob o cetro romano. Alexandria não produziu mais ciência. O espírito do homem, ao que parecia, vagou de decadência em decadência naqueles dias. Dali pra frente...

Dali pra frente, mil anos de escuridão se estenderiam. E o cristianismo, herdeiro do espólio romano, não se deu conta de que seria refém de uma herança maldita. Quando o papado assumiu os mesmos títulos do império moribundo, assumiu também uma alma morta. O resto foi só desdobramento. “Pelos frutos conhecereis a árvore” (Mt 7,16). Pois é.

No fim dessa arenga, fico pensando se o que vale não é apenas o conselho do guru indonésio da Liz, de “Comer, Rezar, Amar”: Apenas feche os olhos e sorria para Deus, sorria com a boca, com a mente, e com o fígado.

Simples! Completo.

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