quarta-feira, 27 de julho de 2011

COMENTÁRIO ESPICHADO – 9

Algumas pendências

O valor de um texto não é o de ter resolvido um problema, mas o de tê-lo encontrado e formulado.

Foi isso que me fez correr atrás desse texto corajoso, em busca de uma teologia escondida sob camadas e mais camadas de tinta da superficialidade oficial. É do ofício do pesquisador produzir cortes com o instrumento de que dispõe: a palavra. Rara e fugaz, ela é de imediato seguida pela costura significante.

É nessa dialética de corte e costura que se elabora o pensamento, qualquer um, inclusive o pensamento teológico. Manter o tecido de qualquer prática teórica é privilégio de poucos que realmente fazem um pensamento avançar.

Desde o corte inaugural, circuncidante, dado pelo velho Abraão, o pensamento teológico judaico-cristão se debate entre ser oficial, burocrático, institucional ou ser uma espécie de feiticeiro, uma ocasião de surpresa, daquilo que desconcerta, arrisca e ousa, e com isso avança e produz sempre um novo saber.

Ao longo dessa falação, que se arrasta por longos 8 capítulos e nem eu esperava que fosse tão longe, algumas questões foram pipocando, aqui e ali, e, então, resolvi juntar tudo numa inter-falação que desse conta dessas pendências. Vou tentar respondê-las em três itens, com os quais pretendo resolver três equívocos, sem deixar de ter em mente que, nesse caso, pretender já é uma baita pretensão.

As questões são:
1. Fé e representações imaginárias;
2. Jesus e Cristo;
3. Teologia e devoção.


1. A questão fé e representações imaginárias

Parece que é esse o item onde os leitores mais derrubaram obstáculos no salto. Alguns inclusive me perguntaram se não se tratava de mais uma desconstrução da fé. Assim como Nietzsche havia desconstruído o pensamento, este senhor velhinho, o escritor do livro, não estaria também ele desmontando tudo o que outros levaram 4 milênios para construir?

Posso perguntar: que problema existe em deixar as coisas um pouco soltas? Que medo é esse? Pra quê existir manual-de-instrução pra tudo? Até pra crer?

Observe o seguinte: tudo o que vem sendo tratado (nos outros 7 capítulos) só diz respeito à Igreja Latina, vulgarmente, chamada de Católica. Nem a Igreja Grega nem a Igreja da Reforma têm essa obsessão com a ortodoxia, tanto e quanto e como a Igreja Latina. A Igreja Latina permaneceu no formato no Concílio de Nicéia (325 DC), que foi reformatado no Concílio de Trento (1545-1563 DC) e congelado pela Contra-Reforma e pela Companhia de Jesus. Os dominicanos, aqueles da Inquisição (séc. 13...), e os jesuítas, aqueles da expansão (séc. 16...), tomaram a si o encargo de delimitar a mensagem da fé numa única representação: a que fosse favorável a quem mandava e palatável a todos os outros.

Mas peraí: o que jesuítas e dominicanos se tornaram hoje é outra história. Imagino até que tenham certa vergonha dos maus caminhos que andaram no passado. É que mesmo com a melhor das intenções, eles cometeram desvios imperdoáveis. E que ninguém venha dizer que isso fazia parte do contexto histórico. Francisco de Assis e os franciscanos são contemporâneos dos dominicanos e não cometeram as mesmas atrocidades. Nenhum dos franciscanos presidiu a Sagrada Inquisição; pelo contrário, eles foram até vítimas. Teresa D’Ávila, João da Cruz e os carmelitas são contemporâneos e conterrâneos dos jesuítas, e foram por outro caminho de evangelização.

O que está em jogo para ser desmontado ou, se preferir, desconstruído são as representações imaginárias herdadas de uma era de despotismo clerical e que se tornaram herança maldita da qual a Igreja Latina não consegue se libertar. Com o início desse milênio, todo mundo esperou que as mudanças operadas pelas altas esferas do poder religioso oficial caminhassem para uma abertura (abertura!). Ledo engano! Elas só seguiram o modus operandi de sempre: mexeram para não mudar. E quando se pensava que a coisa não tinha mais aonde piorar, aí que piorou de vez.

Assistimos hoje a um triste divórcio entre religião e vida.

Se for preciso desconstruir, vamos nessa, mas não o núcleo da tradição. Tradição é um corpo vivo. Só morre quando nada mais nele é mudado. O modo como se vivencia o núcleo da tradição é totalmente mutável e precisa ser, e deve ser, ou estagna, apodrece, morre, e não interessa mais a ninguém, a não ser a quem se esconda atrás de fachadas arcaicas e defasadas. É esse o escopo do livro que venho comentando. No meu ver, importantíssimo. O autor é um erudito de línguas antigas, de 85 anos, com mais de 30 obras publicadas, e jesuíta, veja bem. Parece até que tomaram jeito!


2. A questão Jesus e Cristo

Como salientei, não há desconstrução da fé, não há desconstrução de Cristo. O que existe é um medo apavorante de afastar-se do bem-sucedido pensamento acomodado, porém, morto e apodrecido. O Cristo continua no mesmo lugar onde Paulo o colocou. É que, antes de Paulo ter inventado Cristo, só tínhamos Jesus. E tudo corria bem. Paulo introduziu Cristo e todas as querelas futuras nasceram daí. Um grande teólogo do passado disse que nenhuma fratura eclesial aconteceu por causa dos evangelhos; todas se deram a partir das cartas paulinas. Eu admiro profundamente Paulo por aquilo que foi. Mas tenho grandes reservas no modo como ele apresentou o cristianismo “dele”.

Perguntem, perguntem... Mas e os evangelhos? Eles também falam de Cristo! Sim, falam, porque todos eles são posteriores a Paulo. Paulo inicia sua carreira de escritor provavelmente em 54 (data da primeira carta) e morre em 64. O evangelho de Marcos (o primeiro da cronologia) só vai aparecer em 70, depois da destruição de Jerusalém. Portanto, os evangelhos foram influenciados por Paulo e não o inverso. Lucas, inclusive, foi discípulo de Paulo.

Com essas representações imaginárias, a Igreja foi superlotando os seus átrios e obscurecendo a figura de Jesus de Nazaré ao longo dos séculos. Era preciso a figura de um Cristo Pantocrator Todo-poderoso, ao gosto medieval. Só ela teria a força de levar, por exemplo, às cruzadas. E já que falei delas, houve duas de uma morbidez estonteante: a primeira, pregada por um louco mistificado, que levou milhares de camponeses da Europa para morrer sem armas numa luta suicida. E houve a das crianças (daí vem a palavra infantaria = infantil), onde morreram 4000 crianças absolutamente ao desamparo e aos horrores do vale-tudo da guerra. A figura de “Jesus de Nazaré” não teria apelo suficiente para soprar a brasa dessas barbaridades. Desmontar as ofertas de consumo das representações da Igreja Latina (a Grega não cometeu esses desatinos), não é desmontar Cristo. Pelo contrário! É resgatar Jesus.

Essa relação Jesus e Cristo é intrincada. Talvez, seja o ponto mais complicado do núcleo da fé cristã.

No Concílio de Nicéia (325 DC), ficou definido que as duas pessoas – Jesus e Cristo – seriam uma só. Minto. Em Nicéia, ficou definido que só haveria uma pessoa: Jesus Cristo, em duas naturezas: humana e divina, Jesus e Cristo. Complicado, não falei! Mais ou menos como se fosse queijo e goiabada. O queijo com a função de representar a natureza humana e a goiabada com a nobre função de representar a natureza divina. (Alguém me ajude, por favor!)

Os concílios seguintes ratificaram o Concílio de Nicéia. Constantinopla (481 DC) o consolidou. Ou seja, aquele menino que nasceu na província Romana da Síria, num lugar esquecido e infeliz chamado Judéia, mais precisamente, Galiléia, chamado Yeshuá bem Yoseph, filho de um operário da construção civil e ele mesmo operário como o pai – tcham – depois de Nicéia, adivinhem o que aconteceu? Foi declarado Deus. (Alguém me ajude, por favor!)

De acordo com o pensamento grego, não havia nenhum problema. Os gregos estavam acostumados a toparem com seus deuses nas esquinas, vestidos como homens comuns ou até como animais. Zeus se travestiu de cisne e o Espírito Santo virou pomba. Ficou tudo ali, na mesma forma aviária.

Já pelo pensamento judaico (estão lembrados que é a fonte de tudo, né?) essa de humano e divino num ser só é muito difícil de engolir. A grande ruptura com o judaísmo se deu em Nicéia. A partir dali, realmente, o cristianismo foi “outra” coisa.

Então, quer dizer você está falando que Jesus não é Deus? Não. Só estou afirmando que – primeiro – durante 300 anos antes de Nicéia essa dúvida ficou pendente e as pessoas conviveram muito bem e obrigado com ela; – segundo – para que a mensagem do evangelho surtisse efeito, essa figura da divindade acoplada à humanidade poderia ser dispensada. Se Jesus for Deus ou não for, sinceramente, eu abro mão de convicções delirantes e me permito guardar essa surpresa para lá, caso eu chegue... lá! Gosto muito desse sujeito e o admiro demais, a ponto de evitar fazer dele um fantoche de interesses políticos coloniais.

Acho que nunca ninguém se deu conta, mas o monoteísmo, como foi implantado, é uma das grandes causas da intolerância. A intolerância é o pior dos comportamentos. E a pior de todas as intolerâncias sempre foi a religiosa. (Alguém me ajude, por favor!)


3. A questão teologia e devoção

Até aqui, estive falando do núcleo da teoria. Agora, vamos às rebarbas do pensamento.

Esse equívoco – teologia e devoção – não deveria existir, mas existe, e não apenas nas igrejas cristãs. Existe também no islã, no budismo, no confucionismo. No budismo, essa dicotomia fica salientada na distância entre a pregação de Buda e as imagens que fizeram dele (gordo, bonachão, risonho, bisonho): um imaginário que entulhou a percepção ocidental a respeito de um trem muito sério como é o budismo.

Apenas nas religiões animistas inexiste a cisão teologia-devoção, porque no animismo não existe nem uma coisa nem outra. Nas religiões afro, polinésias, celtas, etc., não existe algo que se possa chamar nem de teologia sistematizada nem de devoção do espírito. O que existe é apenas uma prática incumbida de aplacar a divindade para alcançar benefícios e proteção. Pronto.

Teologia e devoção não existiam também nas religiões do Estado, como, por exemplo, a religião politeísta romana do culto aos deuses protetores de Roma e ao imperador. Para haver devoção é preciso haver indivíduo. Naquelas religiões, o indivíduo não contava porque não existia, existia apenas o Estado: Roma. Os indivíduos, como tudo, aliás, eram SPQR – Senatus Populusque Romanorum – pertencentes ao senado e ao povo de Roma. SPQR era tatuado no braço dos soldados, e essa tatuagem se chamava sacramentum. Daí, a palavra “sacramento”: a tatuagem de Deus na alma do crente. Mas essa já é outra história. Veja bem, no Estado romano existia o povo, o que não existia era o sujeito.

O judaísmo e o cristianismo deram uma enorme colaboração para o surgimento do sujeito ocidental. Numa e noutra, não bastava acreditar, era preciso entender o que se acreditava, e para isso era preciso ser instruído na crença, e para tanto era preciso saber ler, numa palavra, instruir-se. Libertar-se. Você tem noção de como o Império Romano acolheu essa idéia? Qual império você conhece que gosta de gente instruída e lida e culta e livre?

Daí, as perseguições. É uma bobagem sem tamanho pensar que um império inteiro tenha se voltado contra um grupo de joão-ninguém só porque esse grupo não queimava incenso ao imperador e, dessa forma, ameaçava o Estado de incorrer na ira de deuses ofendidos. Bobagem! O Império Romano era bastante sofisticado pra não acreditar nisso. Só pra citar um exemplo, ele nunca interferiu nos cultos locais. Quando Pôncio Pilatos introduziu estandartes romanos no Templo de Jerusalém, a chiadeira dos judeus chegou até Tibério e Pilatos foi repreendido publicamente. O culto aos deuses do império e ao imperador era simplesmente uma das formas de manter coeso o Estado, e de ter cidadãos devotados a morrer por ele.

O despontar de uma nova crença, melhor, um novo modo de crer em que as pessoas precisavam ler para saber, conhecer para entender, desestabilizou o status vigente do Império Romano. Quer dizer que, então, havia gente querendo entender aquilo que acreditava? Onde é que ia dar isso!

Pense bem, a Igreja Latina não fez diferente. Aliás, fez o mesmo, sobretudo, no que tange à proibição da leitura da Bíblia, após Concílio de Trento (1545-1563 DC). Santa Teresinha de Lisieux, declarada Doutora da Igreja, não tinha sequer um exemplar completo da Bíblia, porque era proibido, e ela se queixava disso. Era como se as autoridades dissessem: Afinal, pra quê ler? Pra quê entender? Nós entendemos por vocês. Vocês só precisam rezar, ficar bonzinhos e fazer doações. Eita sô! Foi preciso esperar a segunda metade do século XX, 400 anos!, para que as portas da Escritura fossem de novo abertas ao grande público fiel.
Foi patrocinando um retrocesso ao modus operandi anterior ao cristianismo, porém, dentro dele mesmo, que a Igreja Latina manteve sua hegemonia. Se o povo não entendia o que acreditava era porque não sabia ler. Não sabia ler, porque o início da Idade Média coincidiu (coincidiu só?) com o fechamento de todas as academias filosóficas e isso fez descarregar o caminhão de cimento da oficialidade religiosa sobre a cultura ocidental. O que fez, então, o povo se não conseguia mais entender sua própria crença? Criou uma crença paralela devocional feita de santos, milagres, magia e medo. Uai?

Uma das urgências do Concílio Vaticano II (1963-1965) foi a de calafetar o fosso que existia entre devoção e teologia. Infelizmente, de lá para cá, esse fosso só tem aumentado. As novas técnicas de abordagem dos “novos católicos” tornaram, praticamente, intransponível a cisão entre religião e mundo.

Vou dar um exemplo.

Para quem se interessar, eu tenho uma entrevista de um professor de liturgia do Colégio Santo Anselmo, dos beneditinos, de Roma, sobre o perigo que se abriu com o disparate da aprovação da volta à missa em latim, no rito tridentino. A idéia seria a de proporcionar formas diferentes de celebração a quem preferisse essa celebração ao invés da missa do rito do Vaticano II. E eu que pensava que preferência era só uma questão de sabor de sorvete! Missa também virou sabor! Chocolate ou morango?

Não se trata apenas de trocar de língua: rezar missa em latim ou em qualquer outra língua. Não é esse o problema. Não há o menor perigo em substituir uma língua por outra (inglês, espanhol, italiano, latim), desde que não se mexa na estrutura do rito. No entanto, o que está sendo proposto é a paridade entre um rito do século XVI, quando se pensava nas coordenadas do século XVI, e um rito do século XX, quando as coordenadas de pensamento são completamente diferentes. A missa do Concílio de Trento (século XVI) foi moldada para um determinado espírito de época. A missa do Concílio Vaticano II (século XX) foi moldada por outro espírito de época. 4 séculos as separam. Dizer que são a mesma coisa é o mesmo que dizer que o homem não mudou nada nos últimos 4 séculos. Só pra lembrar, 400 anos atrás, acreditava-se em dragão, não havia anestesia nem antibióticos nem talheres. Acho que mudamos um pouquinho, né.

Um pensamento mais simplista, ingênuo, diria que o sacrifício de Cristo é o mesmo. Sim, o sacrifício de Cristo é o mesmo, e pode ser celebrado em qualquer barracão desde que a matéria, a forma e a intenção sejam preservadas. Não é esse o problema. A questão é o transtorno que essas duas formas, antagônicas na estrutura e no escopo, vão criar na estrutura de pensamento do homem do terceiro milênio, se forem colocadas lado a lado, e se tanto o fiel como o celebrante puderem, simplesmente, escolher entre uma e outra, repito, como se fossem sorvete. “Não estou com vontade, hoje, de celebrar a missa do Vaticano II. Ficou tão sem graça! Vamos celebrar à moda tridentina?” Daqui a pouco vai ter gente se vestindo à moda do século XVI pra ir à igreja. Acha difícil! Como disse o professor, na entrevista, o papa, supremo legislador, poderia legislar sobre a pertinência de uma forma ou outra, mas jamais dizer que duas formas antagônicas sejam igualmente válidas. Parece que a Igreja Latina tem vocação suicida.

Pelo menos, parece que ela definitivamente não conhece o mundo onde atua.

Esta longa digressão serviu apenas para mostrar como teologia e devoção conseguiram se tornar paralelas que não se encontram nem no infinito. Não era pra ser assim, mas foi isso o que aconteceu. Ainda fico triste quando ouço notícias de certas exegeses executadas no sermão de domingo. O povo se alimenta de comida estragada e bebe água salobra. Ainda fico triste. Um dia, quem sabe, não ficarei mais.

A pergunta do livro, a única pertinente, que eu gostaria de sustentar é essa: HAVERIA COMO SER DIFERENTE, SE A OFICIALIDADE TIVESSE TOMADO OUTRO CAMINHO? POR QUE MANTER O MODELO ATUAL QUE SÓ AUMENTOU A IGNORÂNCIA? OU SERÁ, JUSTAMENTE, ESSA A RAZÃO?

Quero dar três exemplos para mostrar como funciona a dicotomia teologia/devoção. Os exemplos são NS Aparecida, São Jorge e o papa, como protótipos de até onde a devoção pode se afastar da teologia e as duas podem se isolar do mundo.

1) NS APARECIDA
Respeito demais essa devoção. Faz parte da minha identidade mineira. Não encontro grandes obstáculos para enxertá-la no tronco da teologia cristã. Maria é a mais bela filha de Sião, aquela que, ao contrário de Tomé, acreditou para ver: creu, por isso viu. A devoção à Maria surgiu no século IV DC e, de lá pra cá, nunca deixou de crescer e de amadurecer. Ela está inserida na árvore teológica que remonta às grandes e fortes mulheres bíblicas: Sarah, Miriam, Débora, Ruth, sobretudo, Ester. Além disso, o fato de uma Virgem negra emergir das águas e das agruras da vida na época da selvageria da escravidão negra, não deixa de ser um sinal eloqüente num universo simbólico a ser povoado de sentido. Nesse caso, devoção, teologia e mundo se dão as mãos e caminham juntas.

2) SÃO JORGE
Um amigo da baixada fluminense precisa fazer malabarismos para encaixar esse santo dentro da teologia cristã. Na baixada fluminense, imaginem, isso é vital. Já pensou dizer que São Jorge não existiu! É pecado! Contudo, não há nenhum registro histórico da existência de São Jorge. Além do mais, essa história esdrúxula de matar dragão não cola, né! No entanto, o sujeito sozinho é padroeiro da Capadócia, da Inglaterra, da Rússia e da nação Corintiana.

Agora me dia, onde encaixar São Jorge na teologia cristã? Só com muito malabarismo e com rede protetora por baixo. Se algum teólogo disser que “isso é invencionice” o advogado de defesa do santo terá de ficar quieto e fazer de conta que nem abriu a boca. Nesse caso, a cisão entre teologia, devoção e mundo criou um abismo quase intransponível, a menos que o equilibrista não tenha medo de altura.

3) DEVOÇÃO AO SANTO PADRE
Essa é de matar! No seminário, na década de setenta, ainda éramos incentivados a ter devoção ao santo padre o papa. Faça-me o favor! Respeitar o papa, vá lá. Mas devoção ao papa é um resíduo arcaico dos faraós do Egito e do imperador romano em sua pretensão à divindade. Isso não é só abissal: isso nem é devoção. E teologia? Ara!

Pelo lado antropológico, dá pra enxergar, nessas devoções, ranços antigos de antropomorfismo. O antropomorfismo é uma etapa da construção do pensamento infantil, quando as crianças conversam com os animais, dão forma humana aos brinquedos, tratam seres animados e inanimados como se fossem da mesma matéria. E, de certa forma, são: pertencem à matéria da fantasia. Não há nenhum problema nisso. Dependendo de como estiver a constituição psíquico-emocional do sujeito, chega a ser necessário. Existem estacas de madeira que, mesmo podres, seguram a casa e não podem ser retiradas.

De modo que, se você coloca um copinho de pinga pra Santo Onofre e isso lhe traz alívio nas adversidades ou algum conforto nessa coisa emperrada que é a vida, por favor, continue. Vê se, pelo menos, coloca pinga boa! O mesmo vale, caso você coloque comida para o Buda, ou não-sei-o-quê-pra-não-sei-quem ou simplesmente acenda aquela vela votiva diante da Virgem. Tudo vale a pena se a alma não for pequena, não é!

Mas o pensador-teólogo não tem esses direitos. O teólogo tem a responsabilidade e o peso extra de responder à altura sobre aquilo que crê e aquilo que não crê. Aliás, todos não deveriam? “Estejam sempre prontos a responder, a todo aquele que pedir, qual é a razão da esperança que vocês têm” (1Pe 3,15).

O teólogo pode acreditar, aliás, acho que deve. O que ele não pode é usar sua fé como bússola para definir teologia. Seria como se o médico apalpasse o paciente tentando achar nele as dores que estão em si mesmo.

Para ser fiel, basta ao homem de fé acreditar e viver de acordo com seus princípios. Para ser fiel, o teólogo tem de acreditar, viver conforme os seus princípios e, tcham, encaixar sua crença dentro da mais antiga tradição de pensamento que remonta às origens. Ser fiel, nesse caso, é ser fiel às origens das origens, à fonte de onde brota água limpa. Se o teólogo for conhecedor das águas não pode beber, muito menos, oferecer água salobra. Para ele, ou a água é pura ou, simplesmente, não é água. Eu sei, eu sei... ficou radical demais. Água suja também é água. Mas você tomaria? Ofereceria? “A quem pedir um pão dar-se-á uma pedra? A quem pedir um peixe, dar-se-á uma cobra?” (Lc 11,11).

A espiritualidade é uma usina: pode entrar qualquer coisa, mas o que tem de sair é luz. Anda acontecendo o contrário: entrando luz e saindo cada coisa! São transformações ao contrário: o que entra é a luz do Evangelho; o que sai é alguma monstruosidade irreconhecível. A impressão é a de algo se perdeu nessa usinagem.

Duas palavras finais.

Primeira. Aquele que ouve é o senhor do discurso. Portanto, o que realmente se espera é que cada um cultive a sua própria capacidade de ouvir e entender. A começar dessas pobres e tilintantes palavras.

Segunda. O que há de mais irrefreável é a tendência ao um. De muitos se faz o um. De vários apartamentos se faz um prédio. De vários prédios, uma rua. De várias ruas, um quarteirão. De vários quarteirões, um bairro. De vários bairros, uma cidade. De várias cidades, um estado. De vários estados, um país. De vários países, um continente. De vários continentes, um planeta. De vários planetas... (...) O que há de mais irrefreável é a tendência ao um (João 17,11). Essa é a tendência universal. Portanto, as desarticulações são patologias dentro da irrefreável tendência ao um.

E assim termino, lembrando e reverenciando Dona Bilú, inesquecível catequista e mestra, da época em que as professoras usavam anel de esmeralda e cabelo de rosca. Hoje eu sei que ela não sabia direito a diferença entre o pão eucarístico e o pãozinho de Santo Antonio, mas também sei o quanto dedicou a vida inteira ao magistério e a preparar os infantes (como ela chamava) para a primeira comunhão. Um dos seus infantes é esse falador, que se mete a teólogo nas horas vagas. Ta vendo no que deu, Dona Bilú! E viva Dona Bilú!

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