domingo, 18 de setembro de 2011

DIVÃ 15

Todo mundo, algum dia, já chamou alguém de “recalcado”. “Sujeito recalcado” – a gente xinga, sem a menor noção do que está falando. Esse termo ficou pop e quando um termo fica pop a fama sobe à cabeça, e ele sai por aí fazendo bobagem. Recalque, na verdade, é um mecanismo de defesa.

O que é recalcar? Recalcar significa excluir um impulso, uma idéia ou um afeto da consciência. (Ta. Entendeu nada, né.) Primeiro, o que significa afeto e idéia? (Já vi que isso vai longe).

Idéia é toda representação de qualquer coisa do mundo, que se encontre dentro de você.

Olhe uma cadeira à sua frente. Aquela cadeira não está dentro de você. Dentro de você está a idéia daquela cadeira ou, melhor, a idéia do que seja uma cadeira. Quando você ouve “cadeira”, muita cadeira pode passar por aí dentro: cadeira elétrica, cadeira da mesa, de balanço, de rodas, de dentista, do barbeiro, do papai... Sem falar do trono do rei, do banheiro... Pode aumentar a lista. Tudo isso é cadeira. Quanta cadeira! Esse montão de cadeiras está aí, nalgum depósito dentro de você. Já pensou se ocupasse espaço!

Afeto é aquilo que afeta. Afeto é a quantidade de investimento que você coloca em cada idéia. Imagine a cadeira do papai, sobretudo, depois que o papai se foi. Ela vai estar sumamente investida de afeto. “Sai daí! É a cadeira do papai!” A cadeira do dentista também está sumamente investida de afeto. Ugh! Credo!

Entendeu esse “papo-cabeça” de idéia e afeto? Isso é muito importante para definir o recalque. Lembra também que o mecanismo de defesa manipula só a percepção da realidade, né? Então vamos lá.
O recalque é manipulação da percepção de um episódio interno. Vamos dizer de outra forma. Recalcar é escolher (aí dentro de você) entre os diversos caminhos, aquele que pode ser pensado e sentido, sem que isso seja considerado uma afronta à idéia que você tem de você mesmo e à idéia que você acha que os outros têm de você.

Lembra da esposa que ganhou no aniversário um ferro de passar roupa? Ela achou o presente uma belezinha! De certa forma, ela recalcou os sentimentos a respeito do episódio e encontrou um caminho para dar conta da raiva e não precisar usar o ferro fora da tábua de passar roupa. Haveria outro caminho? Haveria. Mas aquele, naquele momento, para aquela senhora, foi a melhor opção. Para isso, algo foi recalcado. Uma idéia foi recalcada. A de acertar a fuça do marido.

Mas a gente só falou do recalque da idéia. E o afeto, pra onde foi?

Muita coisa, né!

DIVÃ 14

Você chegou ao mundo com uma caixa de ferramentas pequena e muito vazia. Na sua estréia, havia apenas uma ferramenta pronta: a boca. Foi o fato de você sugar tudo o que tocasse nela que lhe garantiu a sobrevivência. Não fosse isso...

Durante a vida, não só essa caixa foi sendo aumentada como também outras ferramentas foram adicionadas. Desde a chupeta, você aprendeu a lidar com brinquedos e com coisas, a andar, a falar, entrou na escola, foi pulando de estágio em estágio e, enfim, conseguiu que a caixa de ferramenta ficasse maior, com muitas outras ferramentas adquiridas ao longo da vida. Você conseguiu que a vida fosse boa mestra. Ou não. Depende. O fato é que você não sucumbiu. Está aqui. E promete.

Mas não foi fácil. O mundo não é um quarto de bebê. A vida é exigente e a gente tem de aprender a lidar com todas as exigências do mundo interno e do mundo externo. E pra isso, a gente manipula percepções, faz vista grossa, finge que não escutou, deixa pra lá... Essa percepção manipulada pode ser tanto de um episódio do seu mundo interno (pensamentos, sentimentos, impulsos, afetos) ou de episódios do mundo externo (as exigências do outro, do mundo).

O Evangelho diz que “Ninguém pode servir a dois senhores”. Mas é justamente isso que os mecanismos de defesa tentam. Eles tentam (pelo menos, tentam) servir a todos os senhores, os que estão dentro e os andam por aí, fora de você. Todos são ávidos de satisfação e de manipulação. E você está aí, no meio disso tudo, driblando a força dos impulsos internos e a dura realidade externa. Isso é uma façanha de herói. Ser gente não é pra qualquer um, não.

Os mecanismos de defesa fazem parte da sua caixa de ferramentas. Não basta ter uma caixa cheia. É preciso saber como usar cada ferramenta. Para abrir portas? A chave do chaveiro. Para trocar pneus? A chave de roda. Tenta fazer o serviço de uma com outra, só pra ver! Sem falar na chave de cadeia, chave de braço e até na chave na mão de São Pedro, que é tudo, menos chave.

Você entendeu do que estamos conversando? Não é de significado, é de metáfora. Coisa de humanos. Humanos, ta! Porque esse produto “metáfora” anda escaaasso no mercado, ultimamente.

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível.

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível.

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo-nada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível.

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora.


Essa é do menino Gil. Aquele que era músico, depois virou ministro... Deixa pra lá.

sábado, 17 de setembro de 2011

DIVÃ 13

A diferença entre a expectativa e a esperança está no prazo: a expetativa tem prazo, a esperança, não.

Há uma grande esperança de que a fome na África seja resolvida nos próximos 50 anos. Existe uma esperança (num milagre!) de que aconteçam ações governamentais no sentido de fazer com nesses próximos 50 anos não haja mais crianças morrendo de inanição. 50 anos é muito ou pouco tempo? Depende. Se for expectativa, é uma eternidade. Se for esperança, não. Na esperança, o tempo é outro.

Olhe pra você. Existe alguma expectativa séria de que alguém com quem, de alguma forma, você pretenda viver pelo resto de seus dias, ou nem tanto, corrija de maneira “ortopédica” algum desvio incongruente às idéias que você tem a respeito dele? Vamos melhorar essa frase. Você espera que o outro deixe de beber, pare de fumar, abandone algum vício difamatório, mude os contornos do jeito de ser? Caramba! Se for assim, você tem um problemão!

Porque, não importa quem, ele e você enfrentam resistências acobertadas por mecanismos de defesa que agem em surdina. Quando você tenta alcançá-las, suas defesas recrudescem. Quando você acha que enfrentou, a situação vazou, pelo vão dos dedos.

Os mecanismos de defesa são ferramentas do Eu, para se livrar da angústia. Mas, ao mesmo tempo, são parasitas do Eu. Cada um deles lida com um tipo de realidade: a realidade interna e a realidade externa. A manipulação da percepção, que você já ouviu falar, incide nos dois lados desse balão do Eu: no ar quente interno e no ar frio externo. É o equilíbrio entre o ar quente de dentro e o ar frio de fora que faz o balão subir. Muito ar quente, o balão sobe. Muito ar frio, o balão desce. São duas realidades operando na interface da lona do balão. Que nesse caso, já disse, é o pobre coitado do Eu, a quem são concedidas honras de piloto, mas que, na verdade, não passa de um subalterno tentando agradar a gregos e baianos.

É importantíssimo conhecer esses mecanismos que conduzem o dirigível à revelia do piloto. Tudo o que não se pode nessa vida é dirigir na neblina. Se for um balão, vá lá. Mas se você dirigir sua vida como se fosse um carro, de repente, entrar numa neblina densa, é uma situação horrorosa. Você perde de vista a estrada, não sabe pra onde ir, não sabe onde parar, não pode ir em frente, não pode parar. Os 270 carros do último desastre-monstro dão ideia dessa absoluta impotência. A neblina é um branco escuro. A vida também.

SE EXISTE VIDA EM OUTRO PLANETA?

Se existe vida em outro planeta? Ah, decerto! Não é possível que o Divino tenha resolvido habitar apenas este lugar perdido na galáxia.

É claro que não é fácil imaginar como isso seria. Qualquer pensamento que a gente tenha, e que não seja sobre a gente, só será possível se o resultado for a gente mesmo. Dá pra pensar em Deus? Dá. Mas desde que você coloque rosto, pé, mão, roupa e até barba nele. Deus é Deus. Mas a cara dele é a sua. Se os carneiros tivessem deus, Deus teria lã. Se os cavalos tivessem deus, teria rabo. Se os papagaios tivessem deus, ele seria uma beleza de colorido!

Só será possível imaginar a vida de outro lugar, se ela tiver a cara daqui. Até os monstros de desenho animado japonês tem patas, braços, cabeça, olhos... tudo mais ou menos como existe por aqui. Ta certo que eles misturam morcego e gafanhoto com cachorro, mas é tudo feito por aqui mesmo, à nossa imagem e semelhança.

Fico imaginando como seria a vida em Mercúrio, Venus, Marte...

Mercúrio é a 25 de março do Céu. Quando Deus precisa de um corte de tecido pra Nossa Senhora, pergunta aonde ele vai? Quando Deus inventa de fazer um puxadinho no Céu e precisa de material, pergunta aonde ele vai? Quando ele precisa de peça de reposição pra consertar o universo, pergunta aonde vai? E muamba, onde...? Ouvi dizer que ele preferia falar árabe. Proximidade de língua, entende? Ta difícil pra ele aprender coreano. Mas ele aprende. É esforçado. Sem falar na facilidade de viajar e fazer cursos de aperfeiçoamento de língua no país de origem. Ele aprendeu até chinês! Coreano, ta ali, ó... O problema em Mercúrio são os “trombadinhas”. Tirando isso, é até um lugar legal. Meio quente, mas legal.

Vênus é um salão de beleza cheio de peruas. Muito charme, elegância e secadores barulhentos. Vênus é um planeta perfumado. É lá que as anjas vão pra arrumar os cachos louros. O problema é que só há tintura loura, porque ainda não se admite anja morena. O requerimento já foi feito ao Supremo, mas ainda não foi deferido. Vênus é pura fofoca.

Marte, ugh! Marte é o setor militar do Céu. É de lá que partem as ordens pra organizar o caos. Deus detesta caos. Ele tem TOC. É por isso que ele controla Marte. Em Marte, tem sempre gente querendo dar um golpe e assumir o controle do Alto Comando. Marte é um planeta perigoso: um povo nervoso e de cara feia. Deus passa por lá quase todo dia. Mas nunca dorme lá.

Júpiter é a universidade do Céu: cheio de doutores, mestres, docentes e alunos. Deus é o reitor-magnífico da “Universal University”. Em Júpiter, vive aquele povo empoado, mal vestido e com barba por fazer, que freqüenta os saguões das Universidades, sempre com ares de donos da verdade absoluta, até quando proclamam que a verdade absoluta não existe. Ela, não. Mas eles, sim.

Saturno é a pista de dança do Céu. Todos os sucessos de todos os tempos. Já pensou! De Mozart a Zezé de Camargo e Luciano, passando por tudo quanto já foi rei, até pelo rei-não-sei-de-quê, esse que ta aí. Saturno é muito divertido, muito alegre, muito gay. Aqueles anéis... Haja dedo!

Urano é a igreja do Céu. Pensa que não? Uai! Essas coisas têm pra todo canto. Terra pra ser boa tem de dar de tudo. Tem papa em Urano? Tem, sim senhor. E tem bispo? Tem, sim senhor. E tem padre? Tem sim. E tem pastor? Não. Urano é católico: um planeta muito esquisito.

Netuno é uma mistura de Piscinão de Ramos com Martim de Sá: dá de tudo. Prédios com cara de caixa de papelão, criançada rolando na areia, mulherada de biquíni verde-menta fosforescente, muita farofa, e os marmanjos mamando cerveja e criando barriga. Também tem gente bonita, mas é rara. Netuno é onde a alegria mora. Netuno é pop.

Plutão é casinha de fundo do quintal do Céu. Muita tranqueira, máquina de costura velha, geladeira sem motor, peça de carro, cadeira quebrada, mesa sem perna, sapato usado, gaiola vazia amassada, e muita, muita poeira cósmica. Plutão merecia era uma boa faxina.

E a Terra? A Terra é a feira de domingo do Céu. Alguns lugares da Terra é o começo da feira. Outros, o meio. Outros, a Xepa. Tem peixe, alface, couve, tomate, laranja, pudim de pão, carne, ovo, biscoito, fruta, frango, doce, legume, melão, melancia, o homem que toca vilão, a criança que toca pandeiro, a velha pedinte, o cachorro chutado, e, é claro, pastel. Pastel! A Terra é a feira de domingo do Céu.

Deus compra muamba em Mercúrio, delibera em Marte, visita anjas em Vênus, exerce livre docência em Júpiter, dá umas espiadas em Saturno, foge da missa de Urano, freqüenta a praia de Netuno disfarçado de golfinho, e não passa nem perto de Plutão.

Mas o que ele gosta mesmo é da feira da Terra. Deus não troca um pastel da Terra por nada do universo. Com a vantagem dele poder comer. Gente, Deus não tem triglicérides!
Se você vir um sujeito passeando na feira de domingo, de carrinho vazio, como se estivesse num resort, chegue perto e sinta o perfume que emana dele. É. A gente conhece Deus pelo perfume. Deus tem cheiro de chuva. Melhor. Tem cheiro de manhã depois da chuva. Melhor. Tem cheiro de manhã depois da chuva no meio de um laranjal em flor.

Se existe vida em outro planeta? Ah, decerto! Só não existe floração de laranjeira. Isso, só aqui.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

divã 12

Quem vai à missa, reza: “Eu pecador me confesso a Deus, porque pequei muitas vezes, por pensamentos e palavras, atos e omissões...”

Caramba, pegaram tudo! Não sobrou nada! Que é isso minha gente! Nem pensamento pode! Nem pecar em pensamento, pode!

Pensar pode! Mas e quando pensar não pode? E quando nem pensar pode? Aí fica complicado. “Diiivéras” complicado, como se diz na minha terra.

Pra evitar pensar no que eu não quero ou não posso ou não devo (nem) pensar, existem alguns mecanismos de defesa. Trem bão, sô! E funciona? Funcionar... funciona. Mas, falha. É que nem cachorro do vizinho: “Amigo, amigo”, e ele não pega. Um dia...

E o que é isso: mecanismo de defesa?

1) MECANISMO DE DEFESA É UMA MANIPULAÇÃO DA PERCEPÇÃO, PARA PROTEGER VOCÊ DA ANSIEDADE DIANTE DO PERIGO.

2) MAS NÃO SÓ DA ANSIEDADE. A FUNÇÃO DO MECANISMO DE DEFESA É MANTER VOCÊ IMPERMEÁVEL À SENSAÇÃO DE DESAMPARO DIANTE DO PERIGO.

Ufa! Já viu que essa conversa é longa, né.

Pra começar, observe os termos: manipulação da percepção. Ninguém manipula a realidade. Não há como manipular a realidade, até porque ninguém sabe direito o que ela é. O que a gente manipula é a percepção da realidade, só a percepção. Mas, Ô... manipula mesmo e o tempo todo!

Imagine que a esposa, no aniversário dela, esperando um anel da Vivara, ganhe de presente do marido um ferro de passar roupa, novinho! (Silêncio sobre a Terra.) Opção 1: ela arrebenta a cabeça dele com o ferro. Opção 2: ela diz pra si mesma: Que bom! O outro aparelho já estava velho, mesmo! E vai, feliz que só, passar a roupa que lhe cabe nessa vida.

Ela manipulou algo dentro de si. Mas não foi a realidade: a do ferro que veio no lugar no anel. A realidade continua lá, bunitinha, no mesmo lugar. O que ela manipulou foi a percepção da realidade, foi o jeito de enxergar e de carregar um peso que desanca qualquer um.

O real é sempre o mesmo. Mas, e se você não aguentar com ele? E se você não conseguir nem olhar pra ele? E se você não puder nem pensar nele?

O paciente de câncer, depois da cirurgia, precisa realmente acreditar “que jogou aquilo fora, que acabou o problema, que ele está novo em folha, e sai pra lá urucubaca!” Se o sujeito sabe ou não que não é bem assim, não faz diferença. Naquele momento, faz toda diferença, pensar daquela forma, raciocinar aquele jeito, resolver assim. E se não resolver? Ah, isso a gente vê depois!

Tem coisa que é difícil de pensar. Pensar, dói. “Por pensamentos e palavras, atos e omissões.” Mas pensar, pode! Pelo menos, isso, pode! A questão é se você permite. Por falar nisso, você permite? Você deixa você pensar naquilo que você pode pensar? Ou, quem sabe, ainda sejamos crianças, que acreditam no pensamento mágico, do tipo, quando a gente tinha de bater na boca se falasse o nome “da doença feia”? Aquilo era mágico; se falasse, pegava. Nas horas de angústia, quando regredimos e infantilizamos, o pensamento mágico pode nos escorar e nos manter em pé. Pode. Mas é um equilíbrio frágil, frágil demais.

A questão é o que fazer com o pensamento que não para de pensar. Ô bichinho! Parece cupim!

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

DIVÃ 11

Falei, ali atrás, da “bela alma”, e esqueci-me de dizer que tudo se resume ao que uma amiga diz: “Todo hábito de freira esconde um espartilho vermelho”. A “bela alma” tenta esconder demônios preocupantes. Mas eles existem. E aí, quando ela vem para a análise, e a análise desperta esses demônios adormecidos, meu Deus, o que fazer?! Não era melhor que continuassem adormecidos? Depende. Depende de como o sujeito pretende que seja esse “adormecer”: uma porque demônio não dorme; outra, porque você não dorme; terceira, porque se o hábito de freira for branco, o espartilho vermelho vai aparecer. Ah, se vai!

Falo isso, porque, geralmente, na análise como na vida, não existe “bandido”. Só “mocinho”. Cada um traz no embornal a certeza de que ele é bom e o resto do mundo nem tanto assim. Lembro-me do papai quando dizia: Todo mundo é muito bonzinho, mas as minhas galinhas tão sumindo todas!

Então, o que a análise faz? Ela questiona o mocinho embutido no bandido. Será que a gente é mesmo assim tão mocinho quanto almeja parecer? Não será mais inteligente considerar que todo mocinho esconda um bandido, todo hábito de freira um espartilho vermelho?

Mas é tão complicado questionar o “mocinho”! Desvendar o espartilho sob o hábito, então, nem se fale!

Um sujeito, certa vez, me pediu que eu não lhe devolvesse apenas o que ele dissesse, que não só regurgitasse aquilo que ele havia falado, segundo ele, “que nem criança regurgita queijinho!” E completou: Se for para ficar apenas no “Ah! Que ruim que aconteceu isso com você”, então vamos pro bar, beber. No lugar do analista, dizia ele, se espera que o analista não fique perdido na cortina de fumaça do paciente! O analista tem de dizer “sim” se for sim, “não” se for não, e, às vezes, “siiimmm” e, às vezes, “nãããooo”!

Falo isso, porque não é raro o sujeito pegar a barda de se esconder atrás dos sintomas. “É a minha psoríase”, “é a minha depressão”, “é a minha ansiedade”, “é a minha enxaqueca”... Mas esses são os seus sintomas, falo sempre pro dono deles. Cadê você? Quem é você? O que o traz aqui? O que faz você viver? E o que o impede? Por que você não voa com asas que tem? Que dependência é essa de que o outro vá para você poder ir? Que dependência é essa de que o outro queira pra você poder querer? Por que se esconder tanto atrás de uma imagem se você nem sabe direito como ela é?

Entende?

domingo, 11 de setembro de 2011

DIVÃ 10

Outra produção artística de resistência à análise é a performance intelectual do analisando. Assim como a “bela alma” traz radiografias e exames clínicos “exigidos” pelo saber médico, e os expõe como testemunhas de um sofrimento atroz, aquele que funciona num registro intelectual traz diplomas dos cursos exigidos por “outro saber”, e ainda que o papel não esteja ali, em mãos, a verdade, a verdade dele, está.

Está no interno do sujeito que chega para dizer, não nessas palavras, mas nesse sentido, que ele gostaria de fazer análise para entender melhor o que o professor do curso tal lhe disse, ou aquilo que ele mesmo pratica. Porque ele leu ali e acolá algo sobre terapia e análise, ou viu no Fantástico... Ah, como é que eu ia me esquecendo da perola negra do Fantástico! Como se não bastasse o final de domingo ser o que é, tem o Fantástico pra tornar o indizível ainda pior, e fazer isso se reproduzir durante a próxima semana, na pergunta que não quer calar: Você viu no Fantástico?

Mas, afinal, por que isso não teria valor? Claro que tem. Ô se tem! Contudo, não deixa de ser perigoso, pelos embustes que esconde. Quem dessa maneira resiste ao que vem buscar na análise, também não deixa de ser outra “bela alma”, só que, desta vez, escondida atrás de outros biombos, plenamente, justificada no interesse da salvação das almas! A primeira “bela alma”, quando chega, traz queixas. Essa segunda produz teorias. Ambas se embalam no ritmo da resistência. A primeira, pelo menos do ponto de vista analítico, quando chega, é mais transparente. A segunda... só Deus sabe!

Lá pelos meados da história da psicanálise, houve um desvio de percurso interessante (quando eu não sei o que dizer, chamo de “interessante”), quando foi imposto a quem quisesse ser analista um tróço chamado “análise didática”. Como será que isso funciona? Tem gente atrás de um vidro vendo o que o analista e o paciente fazem na sala? Ou o paciente procura o analista e gera questões artificiais para que o analista responda a elas e o postulante aprenda como se faz? Ou o analista mantém o ar professoral diante do analisando, faltando apenas à ocasião a lousa e o giz? Pra concluir, pergunto: aquilo que ambos constroem na relação analítica é de mentirinha?

Porque se for, qual é a tua, Cigano Igor?! Parece atuação de ator canastrão que passa cristal japonês na pálpebra enquanto a câmera não fecha nele, para chorar um sentimento que não tem e, às vezes, num olho só.

Isso, isso mesmo, falei uma palavra-chave: chorar. Numa sessão de análise, chora-se, ri-se, esbanja-se sentimento, a granel, e sem embalagem prévia. Se uma análise não for assim, se os sentimentos já chegarem à sessão embalados, industrialmente, e com a receita no pacote, igual bolo de caixinha, isso aí pode ser tudo, pode ser até didático, mas não é análise.

Análise custa. Dá trabalho. Envolve. Machuca. Cura. Tira tudo do lugar para colocar depois, num outro, diferente da prateleira em que os sentimentos chegaram quando o sujeito entrou pela primeira vez pela porta do analista. Analista não tem folga nem férias nem feriado nem final de semana. Eu estou aqui, agora, escrevendo, nesse domingão. Mas quem diz que eu deixo de pensar naqueles que durante a semana regrediram, estancaram o processo, produziram anomalias em sentimentos e ação ou, simplesmente, manifestaram desânimo frente à falta do progresso imaginado. Isso custa, dá trabalho, envolve, tira tudo do lugar. Dói, machuca e cura.

No fim, quando aquele que chegou aos pedaços é devolvido a si mesmo, de novo, inteiro, tudo faz sentido. Tudo vale a pena se a alma não é pequena, né! Só não pode fazer de conta. Nem o analista finge que atende nem o paciente finge que é atendido. Ambos estão ali. Cada um paga seu preço. Não é barato nem pode ser. Mas vale cada investimento.

sábado, 10 de setembro de 2011

DIVÃ 9

Minha avó (Deus a tenha!) era uma “bela alma”. Ô, se era! Zeladora do Apostolado da Oração (quem não souber o que é isso, nem perca tempo de perguntar), altareira (quem não souber... nem...), dedicadíssima a assuntos religiosos. Mas cheia de achaques, doenças e dores. A lembrança mais forte da infância era vê-la com fatias finas de batata crua coladas à testa por causa das incessantes dores de cabeça. Que só batata tirava! Imagine. E as vertigens!

Então, um dia, uma sobrinha, solteirona e avançada nos 40 e tanto, arrumou um namoradinho de 23 anos. “Que horror, que descabeçamento!”, gritou o coro da moralidade Pereira Dias. No meio da tsunami familiar, minha avó a chamou de lado e disse as seguintes palavras, uma-a-uma: “Deixa elas, que elas estão é com inveja. Ocê vai ver: os mocinho são bem mais melhor!”

Se me contassem eu diria que era mentira. Mas eu escutei, com esses ouvidos que a terra há de comer. E eu pensei, naquele dia: “Caramba, olha aí, a avó misseira dando conselhos de alcova!” Se ela tinha experiência? E precisa? Passarinho entrou na escola pra aprender a fazer ninho?

Contudo, continuou ela com as rodelas de batata coladas à testa para aliviar as dores de cabeça. Aquele conselho, pouco vitoriano e por demais vitorioso, deixou vazar daquela cabecinha rodelada... cousas! Não vazou porque não fizesse parte dela. Vazou porque era parte integrante da vida, inerente aos desejos camuflados sob todas as rodelas de batata crua, tapando sabe-se lá o quê, que a vida, madrasta como ela só, talvez, não lhe soubesse nem pudesse proporcionar, a tempo.

Imagine minha avó num divã analítico, toureando o pobre analista para quem ela jamais, j.a.m.a.i.s, admitiria que pensava aquilo: que “os mocinho eram bem mais melhor!” Ah! Mais nem que a vaca tussa, ela ia se dignar admitir essa afronta a si mesma e à sua inabalável catolicidade.

E, no entanto, será que, caso ela pudesse se dar conta dos desejos mais recônditos, não apenas para a sobrinha solteirona, mas, sobretudo, para si mesma... caso isso fosse possível, será que as batatas perderiam o status de panacéia universal e poderiam virar purê, aliás, de muito melhor emprego e usufruto?

Temo estar sendo desleal a minha avó, que me criou e só não me amamentou porque a natureza assim não o permitiu. Perdão, avó! E tomara que você tenha conhecido meu avô quando ele ainda era “bem mais mocinho”!

DIVÃ 8

Nem tudo são flores nesse caminho. Essa empreitada analítica é cheia de escorregões. Seria muito simples se o sujeito que se atirasse a esse afã, a ele se sujeitasse, cordatamente. Ara! Mas aí não seria nem sujeito nem humano. Desde quando o humano é cordato? O humano insiste, resiste, desiste. Só pra insistir de novo. Se o sujeito se deitasse no divã, placidamente, e dissesse ao analista: Pisa fundo!, é claro, nem preciso dizer, que ele não seria sujeito de nada, sequer do desejo de ser.

Há resistências à análise.

Já vou dizendo desde já que é a resistência do ar que faz o avião subir. Mas mesmo assim, e abusando da metáfora, é preciso ter teto, condições de visibilidade, ou o avião nem levanta nem pousa. Na análise, não se opera por instrumentos. Ali, ou é ao vivo e em cores, ou não é. O que se faz numa sessão de análise é muito parecido com o que se executa numa peça teatral: interpreta-se. Interpreta-se sentimentos, e constroem-se os sentimentos ao interpretá-los.

Algumas resistências pétreas embaçam o “teto” da análise, tiram as condições de visibilidade necessárias para o analista pilotar o divã e o analisando pilotar a própria vida. A impressão que fica é o paciente se acostumou tanto com a única brecha no meio do fumacê por onde ele consegue enxergar aquilo que vive, faz e é, que quando você tenta mostrar outra brecha, ele sequer a considera possível. É como se ele quase dissesse ao analista: Isso que você diz ver e que eu não vejo, não está ali.

Das resistências mais embaraçadas e embaçadas ao processo de análise, a primeira a que peço a gentileza de poder nomear é a resistência da “bela alma”. E se fiz essa mesura anterior, é porque a “bela alma” assim o exige. A expressão “bela alma” foi criada no século XIX pelo psiquiatra francês Jean-Martin Charcot, para nomear as pessoas histéricas, almas refinadas, mas rebuscadas, apropriadas ao barroco rococó, acostumadas a esconderem seus irreconhecíveis desejos atrás de belas fachadas cinematográficas de irrepreensível moral e espiritualidade. “Ai, minha Nossa Senhora do Céu!” Era assim que tia Ordália reagia a cada arrepio provocado por qualquer conversa de teor um pouco mais picante.

Vou dar um exemplo ímpar. Mas tem de ficar para a próxima, porque o espaço acabooooou.

DIVÃ 7

Pois é: que ”mais” é esse?

Platão disse que a gente vivia numa caverna de pálidas sombras – ilusão permanente – e que o mundo verdadeiro não estava aqui, onde estamos, mas em outro lugar, num lugar das idéias – tópos noétos. Para Platão, o que sobrava daqui era o tudo.

O filme “Matrix” virou Platão do avesso. Para o autor, existe, sim, um mundo feito de ilusão permanente, este em que vivemos. Mas fora dele, não há o mundo das idéias platônicas perfeitas e belas, o lugar encantado onde tudo funciona (detesto essa palavra!). Para a “Matrix”, fora desse mundo de ilusões, não há nada, nada, apenas corpos mofando em cápsulas, funcionando (desta vez, vai) como baterias para o mundo de máquinas. Para a “Matrix”, o que sobra é isso. Nada. O deserto do Real.

E para mim? E para você? Que “mais” é esse? Está onde: lá, cá, em lugar nenhum? Onde?

Muitas respostas foram dadas: dos filósofos aos teólogos, dos ateus aos místicos, cada um propõe um tipo de resposta para dar conta da insaciabilidade humana, a fome, a ânsia, a hiância, a falha e a descontinuidade que nos faz cair e levantar, levantar e buscar, buscar pra cair de novo e levantar de novo e buscar outra vez.

Somos feitos da matéria dos nossos sonhos. Somos feitos de desejo. Mas não um desejo qualquer. Não se trata da vontade de tomar café na padaria do Aquarius (aliás, famosa) nem da vontade de estar ali, lá, acolá, vestir isso, comprar aquilo.
Trata-se do desejo, do poderoso desejo de algo que se esconde atrás das vontades mais prosaicas e triviais. Ali se encontra um desejo incompreensível, inatingível, inapelável, intransferível. “Estou com uma vontade de comer uma coisa, mas não sei o que é!” Pode ser tudo, qualquer coisa. E por ser tudo, e por poder ser tudo, é claro, nada é. Você pode ir ao shopping e olhar, olhar e olhar e, no fim, comprar. (Usei o último verbo uma vez só!) É provável que chegue à casa com a sensação de ter de voltar para trocar “aquela coisa” por outra porque, quase sempre, não vai ser “aquela” e quase nunca será a “outra”. Se tudo pode ser, nada é.

Não é que Spinoza, Kant e Freud atinaram com a coisa? Essa é a nossa essência. Um desejo que não conhecemos nem sabemos, propriamente, de que, do quê. Só o que sabemos é que ele existe, como um imperador solene e distante cujas ordens nos atingem de perto, como se ele estivesse, o tempo todo, aqui.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

DIVÃ 6

“Espaço garantido”.

Foi assim que alguém definiu o local da análise, e que da outra vez eu não soube dizer, porque dei de esquecer: espaço garantido. O espaço garantido para o pensamento brotar, para os sentimentos aflorarem, para haver um lugar só seu, onde o sujeito tenha lugar, um lugar que não existe em outro lugar.

Claro! Do lado de fora da porta, sua roupa aguarda você e você veste de novo a mesma velha casaca usada, mas conhecida, apertada e incômoda, mas conhecida, rasgada, quem sabe, mas conhecida. Já naquele “espaço garantido”, pra começar, você pode vestir o que quiser, o que lhe servir, o que tiver a sua cara. Ali, você pode fazer amizade com o estranho desconhecido.

Não se corta a pessoa do tamanho da roupa. Corta-se a roupa do tamanho da pessoa. É por isso que você não cabe nas suas casacas, sobretudo, naquelas que lhe mandaram vestir quando você tinha 5 anos de idade, e que, apesar de ter crescido, continua vestindo pelo resto da vida. Até que...

Até que faz análise e conhece outras roupas e outras roupagens. Passarinho troca de pena todo ano e a nova plumagem é sempre corriqueiramente igual a do ano anterior. Com você, não. Outras roupas são possíveis, viáveis, bem-vindas.

Por aí, você imagina a dureza de completar a análise de um adolescente, ou simplesmente de uma pessoa por quem é outrem quem paga as sessões. Nem preciso dizer o quanto, geralmente, esse “outro pagante” investe no que ele entende por terapia, intensamente interessado nas “boas soluções” que a análise possa trazer em termos de normatização. É que para ele a pessoa não está “funcionando bem” e precisa de reparos.

Pais de adolescentes incorrem nesse perigo. Eles trazem o filho como se leva um aparelho quebrado pro conserto. “Faça o que for possível, e agradecidíssimo!”. O problema surge na primeira curva, quando o “aparelho quebrado” começa a indicar que o “mau funcionamento” se deve ao uso indevido. Esclareço: o problema é quando o adolescente traz a problemática familiar à tona e precisamos chamar pai e mãe, os quais, é claro, não tardam em afirmar que “com eles está tudo bem!” Ora, qualquer um que pense um pouco, sabe que nunca é tão possível assim estar “tudo bem”. “Tudo bem” é a resposta que damos à pergunta “Tudo bem?”, a qualquer interlocutor, geralmente, totalmente desinteressado em qualquer resposta que seja que não seja essa.

Para uma análise trazemos nossos problemas, nossas queixas, nossas aflições. Sim, reclamamos muito de quem não está ali, porque, na verdade, está, veio conosco, faz parte da nossa vida e, naquele momento, significa um estorvo intransponível. Sim, não queremos falar daquilo ou dele ou dela. Não e não. Mas é claro que acabamos falando. Porque vamos lá, também, para encontrar o ouvido que, fora dali, não é capaz de ouvir. È vero.

Mas... vamos... por... mais. É sempre por mais. Diferentemente do joão-de-barro, nós humanos, sempre queremos mais. Que mais é esse?

terça-feira, 6 de setembro de 2011

DIVÁ 5

Isso não significa que a sua vida vai ficar boa dali pra frente. Isso? É. Isso. Essa história de conhecer você e de ser apresentado ao seu hóspede interno, ilustre desconhecido seu. Aviso incômodo: depois da análise, nada garante nada. Depois de uma análise, sua vida irá continuar praticamente a mesma. Seu trabalho, marido, esposa, filhos, cachorro, periquito, papagaio... tudo vai continuar no exato lugar onde você deixou. Análise não garante melhoria de vida. Quem garante isso são as “Organizações Tabajara”.

Análise, então...?

Dá a você um estepe de pneu, uma chave de rodas, um macaco, e ainda ensina a trocar o pneu furado, só isso. Ou melhor, tudo isso. Depende do ponto de vista.

Entende a metáfora? De tanto rodar, seus pneus ficam carecas. Mas você pode escolher. Não rode, não vá a lugar nenhum, conserve seus pneus bem guardados na garagem protegidos do sol, da chuva e da estrada. Vai ser legal ter pneus novinhos, o tempo todo, guardados, o tempo todo, num tédio de matar, o tempo todo. Mas você pode escolher. Saia, ande, percorra, dê asas aos seus pés. Vire Perseu. Gaste os pneus que a vida lhe entregou novinhos, justamente, para que você, e não outro, andasse com eles. Eles vão ficar carecas? Uai! Vão. Mas e daí? Não foi pra isso que você ganhou seus pneus? Eles vão furar? Vão. Com certeza. Muitas vezes. É pra isso que você faz análise. Para aprender a trocar pneus. Entende a metáfora?

Garanta seu estepe. Porque seus pneus vão furar.

Cada vez que a vida lhe der um tombo, cada vez que seus pneus furarem, cada vez que você tiver de estacionar à beira da estrada, cansado, sem resultados, desiludido e, o que é pior (Credo! Existe pior?) sem a menor vontade de recomeçar, encontre seu estepe. Está onde você o deixou esquecido. Apanhe suas ferramentas. Troque o pneu furado. E continue.

Porque você não nasceu pra ficar sentado, choramingoso, à beira da estrada, enquanto a vida passa. Né!

Disse, repito. Análise não vende o que não pode entregar, nem promete o que não pode garantir. Até porque, vem cá, toda garantia é do Paraguai. É ou não é? Nada e ninguém garantem coisa alguma nessa vida senão aquilo que você atribuiu ao outro, graças ao poder a ele concedido – por você mesmo – para que ele garantisse por você o que você, por conta própria e sozinho, acha que não seria capaz de garantir. Não é um paradoxo? Que palavra exótica pra coisa tão comum! Vou perguntar de novo: Não é uma bobagem?

Vai lá e faz. Vai ser sempre com você.

DIVÃ 4

O que uma sessão de análise é?

Eita perguntinha difícil!

Uma sessão de análise – ou uma terapia, a gosto do freguês – é uma situação difícil de cunhar. Uma analisanda definiu magnificamente como “local ”

É ali que você repassa a vida. Melhor. É ali que você passa a vida a limpo. Você, decerto, teve o famoso caderno de rascunho. Na minha época, havia. A gente copiava as aulas no caderno de rascunho e depois passava a limpo, em casa. O ato de passar a limpo organizava as idéias e promovia aprendizado. Simple like that!

Mas tem mais. Isso é só o começo de uma coisa difícil de ser dita, definida, sei-lá-mais-o-quê. Embora tenha gente que não goste nem compartilhe dessa idéia, quando você se deita no divã, o fluxo das idéias leva você de volta para um lugar sem lugar, uma utopia de você mesmo, pra lá, onde você realmente está quando está só com você, como, por exemplo, no sono, no sonho.

E isso provoca o quê? Isso provoca associações, diferentes associações, muitas associações. E você, que havia chegado ali, um tempo antes, pensando que só sabia pensar de um jeito, numa direção, numa enjoativa especialização de repetir as mesmas coisas, queixas e teorias vazias, de repente, se pega diferente, mais leve, mais solto, criativo, intérprete de si mesmo, redator de outras falas tão plenas, que até você se estranha perguntando: Quem é esse aí?

É você! É o você que você não conhecia. Nessas horas, dá até vontade de fazer a apresentação formal, do tipo, solene, com palavras outras que bem podem também ser essas:
- Você, esse é você!
- Prazer em conhecer você, você!

Nunca lhe passou pela cabeça a desgraça sem tamanho de passar pela vida sem conhecer realmente quem é você. Né, Você? Ara. Porque deve ser mesmo um infortúnio sem tamanho ser hospedeiro de um hóspede cuja convivência define toda a hospedaria e, no entanto, passar pela vida totalmente alheio a quem seja ele.

Ele... é você. Ta. Vamos combinar assim?

Até a próxima.

DIVÃ 3

O que uma sessão de análise não é?

Um punhado de coisas. Não é sessão de descarrego, não é sessão de conselhos, não é quarto de milagres, não é bate papo legal, não é aula e, para quem também atende outras pessoas, não é lugar de falar dos próprios pacientes, um trem que tecnicamente se chama “supervisão”. Se tiver mais alguma coisa, pode acrescentar.

Existe um componente de descarrego? Sim, existe. É o que se chama catarse, purgação, botar pra fora, vomitar o que engoliu e fez mal. Estamos aí na parada pra o que der e vier. Muitas vezes a gente sente falta de um martelo, né? Lembra-se da Rita Pavone: “Datemi um martello. Che cosa ne vuoi fare? Lo voglio dare in testa...” É isso aí. Tem dias, tem horas... que uma bom martelo na testa até parece que resolveria quase tudo.

Mas não vale a pena: o crime não compensa. Na hora da raiva, melhor mesmo é a gente conseguir dizer que vai jogar o outro pela janela, só pra não precisar fazer isso. Por isso e pra isso, também existe a sessão de terapia. Aliás, outra coisa: por enquanto, e só por enquanto, vamos chamar aquilo que fazemos ali de “terapia”. Mais à frente, vai aparecer um nome melhor, com outro conceito melhor, daquilo que as pessoas fazem numa sala (só por enquanto) de terapia.

Esse componente do descarrego é o que atrai e mantém muita gente na terapia. Fala-se, fala-se, fala-se... Afinal, não é pra falar que a gente foi ali? “A gente veio aqui pra beber ou pra conversar?” Lembra? Como, ali, não é pra beber, só pode ser pra falar. A mesma boca que beija e morde e come e canta, também fala. Santa boquinha!

DIVÃ 2

Como lhe disse, há coisas faladas que repicam no meu ouvido que nem sino desafinado de igreja de periferia. Bém, bém, bém... Uma dessas me surpreende quando o sujeito precisa enquadrar aquilo que vem fazer na minha sala dentro de algum contexto onde ele mesmo consiga caber. Óbvio! É assim que fazemos o tempo todo: sempre conferimos sentido, sempre buscamos conferir sentido. O sino desafina quando o sujeito diz, e às vezes até me agradece, dizendo assim:
- “Os conselhos que o Sr. me dá são muito bons...”
Ou
- “Eu vou voltar para bater um papo legal, porque a sua conversa é muito boa...”
Ou
- “Eu gosto de vir aqui porque sempre aprendo alguma coisa com o Sr. ...”

Obrigado. Obrigado. Obrigado. Não mereço tanto!

Mas não é por isso que a gente vai àquela sala de poltronas verdes, divã branco e muitas plantas. Aliás, cada vez mais plantas! Tenho de extravasar ali a meu desejo de ter um sítio...

Mas, então, o que vamos fazer lá? Eu perguntei: O que vamos? Eu não perguntei: O que você vai? O que vamos significa que ambos, nós dois, estamos implicados naquele momento, com aquele momento e desde aquele momento com tudo o que significa e acontece depois dele. Ambos.

Daqui a pouco vou lhe dizer que somos “nós três”.

Você não vai a um supermercado buscar aprendizado nem a uma sala de aula buscar massa de tomate. Da mesma forma, não freqüenta aquela sala – ou qualquer outra semelhante – para se doutorar em soluções mágicas. Não estamos ali para apontar caminhos solucionatórios nem respostas aprendizeiras. Uai? Então, o que vamos fazer lá? E qual é a parte que compete a cada um nesse contrato?

O primeiro caminho para responder a uma questão é começar perguntando o que ela não é. Quando você sabe o que uma coisa não é, boa parte do caminho já foi percorrida. Praticamente, a metade.

Bem, o espaço acabou. Tive de prometer a mim mesmo que nunca passaria de 300 palavras em cada vez, senão...

DIVÃ 1

Há coisas que são ditas para mim no consultório para as quais, naquele momento, naquela circunstância, daquele jeito, eu simplesmente não consigo responder: Peraí! Não é bem assim! Ou por não ter oportunidade ou porque o tempo já acabou e não há como encompridar o assunto ou porque a pessoa está tão convencida de ser aquele o melhor jeito de abordar a questão ou porque a angústia daquele momento é tão grande que não deixa espaço para nenhuma abertura, seja como for, o fato é que, pra falar a verdade, eu acabo deixando o passarinho escapar.

E depois fico com uma raiva danada de mim mesmo!

Por isso, resolvi escrever para as pessoas que me são mais queridas: vocês. (Já aprendi a mandar e-mail CCO – com cópia oculta – de modo que, podem ficar tranqüilos que nenhum nome e e-mail aparecerão na lista, jamais.) E não será apenas para quem freqüenta a minha sala que eu vou escrever essas “cartas” ainda sem título. Aliás, gostei: “Cartas”. (Só isso, ta bom.) Outras pessoas, que não apenas freqüentadores daquela sala, me pediram que escrevesse, senão por outro motivo, que fosse pela satisfação de fazer contato. Porque entre os humanos essa é a maior satisfação. Só reservo o top da lista para uma outra satisfação, essa sim, imbatível, que é o prazer de exclamar o “Ah!” que indica que o sentido maior das coisas foi encontrar. Abaixo desse, falar com você é a melhor coisa que posso fazer na vida.

Deixo-lhe a liberdade de me pedir para não lhe enviar nada. Claro! É só me contatar pelo mesmo canal que o fiz. Simples!

Para os que quiserem manter esse canal aberto, pela encantadora via da palavra escrita, eu só tenho a dizer: Obrigado! Essa alegria não tem preço!

Algumas pessoas têm feito valer a pena muita coisa na vida: muitas horas de estudo, muito tempo de pesquisa, muito estofado de poltrona fundo... Entre elas, você faz um punhado de coisas valerem a pena. E essa é só mais uma. Obrigado.

SE EU NÃO TIVESSE FILHO...

Se eu não tivesse filho, nunca saberia o quê acontece quando o pequeno ser abaixa pela primeira vez no planeta e entra pela porta da casa e a gente não faz a menor ideia do que fazer com aquele pacote surpresa. Quem não tem filho...

Se eu não tivesse filho, jamais entenderia o que significa trocar fraldas, e amarrar a chupeta no cordão da outra, e amar aquele cheiro de banho tomado tanto quanto o que foi o cheiro do cocô, e esperar na antessala do médico antes do exame do pesinho, e ficar ali, momento a momento, lambendo a cria, como quem espera a jabuticabeira crescer. Quem nunca plantou jabuticabeira...

Se eu não tivesse filho, quando é que iria saber o que era passar a noite inteira do lado de um pequeno ser adoecido, medindo cada grau de febre, com medo de não saber o que fazer naquela hora? Pra quem não tem é mais fácil, mas...

Se eu não tivesse filho, como iria perceber o que é certo ou errado e, sobretudo, quando iria me dar conta de que certo e errado são linhas transversais imaginárias onde a gente esbarra a vida inteira e se machuca, nelas, como mosca presa em copo de vidro, por medo de viver? Quem nunca se arriscou a ter filho, como se arriscaria a viver?
Se eu não tivesse filho, não morreria de medo quando ouvisse notícias de barbaridades cometidas contra crianças, como a dos nazistas, que as jogavam vivas nos fornos crematórios só para ouvir os gritos. Se não tivesse filho, talvez, seria sensível só o bastante pra justificar a vergonha diante do que a espécie humana é capaz. Mas só isso...

Se eu não tivesse filho, não morreria de amor a cada palavra nova aprendida, a cada entonação diferente da mesma palavra tantas vezes dita, a cada jeito de se pronunciar “papai”, como se fosse sempre a primeira vez. Quem não tem, ah, então, tsss...

Se eu não tivesse filho, não caberia em mim de orgulho quando visse a cria se apresentando na mostra cultural da escola, naquele teatro mambembe com a professora de “ponto”, ou declamando aquele soneto com sono ou cantando naquele coral (improvisado, tá!) uma melodia em qualquer massacrada língua estrangeira (porque é chic, tá!). Quem não tem... Quanta coisa perde, quem não tem!

Se eu não tivesse filho, não teria vizinhos pra brigar. É. A gente só descobre vizinho inoportuno quando a cria da gente (que só é suportável pra gente) descobre a cria insuportável do vizinho inoportuno. Quem não tem filho, escapa de ter de abanar a mão pro vizinho chato. Algum ganho existe, vá lá!

Se eu não tivesse filho, não saberia o preço de material escolar, mas também desconheceria a delícia de ir atrás daquela lista e de voltar aos tempos bons do lápis de cor, giz de cera, esquadro e transferidor, livro novo, caderno encapado e aquele cheiro delicioso de escola que tudo isso tem. Porque isso é muito bom! E quem não tem, não tem.

Se eu não tivesse filho, de quantas primeiras maravilhosas oportunidades seria privado: o primeiro dente, o primeiro tombo, o primeiro corte, o primeiro esporte, a primeira escola, o primeiro ano, o primeiro diploma, a primeira comunhão, a primeira namorada, o primeiro tudo, o primeiro nada, a primeira decepção, a primeira vez que chorou por alguém, a primeira vez que fez alguém chorar, a primeira vez que eu o fiz chorar, a primeira vez que ele me fez chorar, o primeiro medo dele em me perder e meu primeiro, de perdê-lo, e assim por diante... todas as primeiras vezes inaugurais de um grande amor, desses, que só tem primeira vez, sempre. Quem não tem, fica pobre de muita primeira vez.

Se eu não tivesse filho, não estaria aqui escrevendo isso, pela simples razão de não saber o que escrever.

Se você não tivesse filho, talvez, não estaria lendo isso, pela simples razão de não saber o que ler.

Eu não tenho filhos, tenho só um, e já reputo isso de uma pobreza sem tamanho. Calcule se não tivesse nem um, nem que fosse um só. Seria de uma indigência somaliana, como a daquele país da África, em sua escancarada, insensata e despudorada miséria de tudo.

domingo, 4 de setembro de 2011

JINGLE BELL, JINGLE BELL! ACABOU O PAPEL...

Aviso aos navegantes: estamos em setembro e desde agosto há árvores de natal à venda nas boas lojas do ramo.

Mas quem ainda se recorda DO Natal? Há tanto barulho e fogos e lâmpadas coloridas e leitoas e perus abatidos, e tanto gasto acima dos recursos reais, que alguém ainda pode se perguntar se sobra o instante de se dar conta que semelhante desregramento histérico só existe para celebrar uma determinada data, de um determinado nascimento, numa determinada miserável estrebaria a poucas braças de onde nascera, mil anos antes, o rei Davi.

Mais de 1 bilhão de adeptos dizem crer que aquela criança era Deus encarnado. Mas muito poucos o celebram dessa forma, como se na realidade não acreditassem naquilo que professam. Também outros irão celebrá-lo, outros bilhões, que nunca pensaram nele, mas gostam da festança. E sobram outros milhões que, além disso, bem estariam dispostos a virar o mundo de cabeça pra baixo para que ninguém continuasse acreditando. Seria interessante indagar quantos mesmo, do fundo da alma, realmente admitem que o Natal de agora seja só uma festa abominável, mas não se atrevem a dizê-lo por puro preconceito, nem tão religioso mas social.

O mais grave de tudo é o desastre cultural que esses natais pervertidos causam abaixo da linha do equador.

Antes, quando tínhamos apenas costumes herdados da Península Ibérica, os presépios domésticos eram prodígios de imaginação familiar. Na casa da tia Assumpção, Deus Menino era maior que o boi, as casinhas penduradas nas colinas eram menores do que a Virgem, e ninguém se importava com os anacronismos: a paisagem da Judéia era completada com um trem de corda, havia um leão de pelúcia maior que a casa do recém-nascido, e um guarda de trânsito conduzindo rebanhos de cordeiros na estrada de Belém. Tudo isso “naturalmente” emoldurado por um céu de arame e papel-de-seda azul, por onde voavam pendurados em linhas de nylon pequenos aviões de brinquedo. Sobre essa panóplia brilhava uma estrela de papel dourado com uma lâmpada no centro e um rabo de seda amarela indicando aos magos o caminho do sublime encontro.

O resultado, nem preciso dizer, era feio de doer. Mas se parecia com a gente ou, sei lá, a gente se parecia com aquilo, de tal forma que um se enxergava no outro e ficava bom demais. Era... o Natal. Com barraquinhas na rua e música todo final de tarde na torre da matriz.

A desmistificação começou com a idéia de que os brinquedos não eram trazidos pelo Menino Jesus, mas por um gordo balofo que a Coca-cola consagrou como Papai Noel. A gente deitava mais cedo para que os presentes chegassem logo, ôps, para que o presente chegasse logo. Era um só, quando era! Mas o melhor de tudo é que éramos felizes ouvindo as mentiras poéticas dos adultos.

Que naturalmente acabaram. Eu não tinha mais de 7 anos quando decidiu-se que era hora de contar que os brinquedos não eram trazidos por quem quer que fosse. Foi uma desilusão só! Não porque eu acreditasse que era, de verdade, o Menino Jesus quem trazia os brinquedos, mas porque gostaria de continuar fingindo que acreditava. Além disso, por pura lógica de adulto, conclui que os outros mistérios católicos eram também inventados pelos pais para distrair os filhos e mantê-los sob as rédeas.

Caí no limbo. Perdi a inocência. Faltava pouco para que eu descobrisse que as crianças tampouco eram trazidas pelas cegonhas, algo que talvez eu ainda quisesse gostar de continuar acreditando. Resolveria muita coisa!

Tudo isso desabou nos últimos anos, mediante uma operação comercial de proporções mundiais que é ao mesmo tempo uma devastadora agressão cultural. O Menino Jesus foi destronado pelo gorducho Papai Noel dos gringos, que chegou com tudo: desde o trenó puxado por alces carregado de brinquedos até a fantástica tempestade de neve num país de Natal quente.

Na realidade, esse usurpador com nariz de cervejeiro não é ninguém mais do que são Nicolau, um santo a quem a lenda nórdica creditou ter ressuscitado crianças esquartejadas por um urso na neve, e que por isso, foi logo proclamado padroeiro das crianças. A lenda se fez institucional nas províncias germânicas do norte no final do século XVIII, justamente com a árvore e os brinquedos. De lá, passou para a Inglaterra, França, EUA e, por fim, para as províncias abaixo da linha do equador, com toda uma cultura de contrabando: a neve artificial, as lâmpadas coloridas, a comilança e a temporada de consumismo frenético da qual poucos de nós nos atrevemos a escapar.

Tudo isso acontece em torno da festa mais espantosa do ano. Uma noite barulhenta em que ninguém consegue dormir, com a casa cheia de bêbados, que se enganam de porta procurando onde urinar, ou perseguindo a mulher de outrem, que teve a sorte cruel do acaso de acabar dormindo de boca aberta na sala.

É mentira. Não é uma noite de paz e amor. É apenas a ocasião solene das pessoas que se gostam e das que não se gostam terem de se encontrar. É a noite providencial do convite ao pobre cego que ninguém convida, à prima que ficou viúva há 15 anos, à avó paralítica que ninguém se atreve a mostrar. É a alegria por decreto, o carinho por lástima, o momento de presentear porque nos presenteiam ou para que nos presenteiem. A noite de chorar em público sem precisar apresentar explicações. Vez ou outra, a festa termina em briga. Não se admire que as crianças, vendo tanta coisa esquisita que ronda o Natal, acabem supondo que o Menino Jesus não nasceu em Belém, mas nos EUA.

É o Natal! Não vou dizer que não gosto. Gosto, sim. Até gosto! Claro que não tem mais nada do que havia antes, sobretudo, a missa do galo no embalo do coral da matriz, e nem o padre que descia solene os degraus do altar, antes do início da celebração, para depositar o divino infante no berço de palha esperançoso de tão vazio desde o início de dezembro, quando o presépio era armado. Tem coisa bonita, hoje, sim. Mas o que não há mais, talvez, seja a capacidade de encontrar a beleza. Paciência! Passamos.

Aviso aos navegantes: daqui a pouco é dezembro. Quem não armar a árvore em novembro, corre o risco de passar sem ela. Quem não desarmar a árvore até fevereiro do outro ano, não desarme mais. Não dá tempo. Guarde pronta nalgum armário como andam fazendo com as lampadinhas das árvores, que apenas se desligam e ficam lá, à espera da nova temporada de esperança.