sábado, 21 de abril de 2012

TECNOÉTICA – 4

Tudo isso pode ser dito em outras palavras: é hora de mudar práticas e rever atitudes. Não adianta apenas pensar e concordar teoricamente que o mundo mudou e criou incentivos diferentes, caminhos alternativos e perigos novos. Isso não vai mudar nada se não vier acompanhado de uma mudança na forma de agir e de se posicionar diante da ética e da realidade. Mas, sobretudo, da realidade. É o real que comanda o espetáculo.

A ética, talvez, não mude. O que muda é o posicionamento diante da ética. A realidade continua a mesma. O que mudou foi a percepção da realidade. O problema é que a percepção da realidade, imposta pelo novo ambiente sociocultural em que estamos plantados, é algo ainda muito recente, nem sempre percebido e nem sempre considerado. A grande maioria simplesmente ignora o impacto real, prático e diário dessa tecnologia nas suas vidas, sobretudo, nas pequenas atitudes do dia-a-dia.

Na minha infância, o máximo da tecnologia caseira era colocar cabo na lata de óleo pra virar caneca. Agora já existe uma câmera até nas praças das pequenas cidades, mostrando para o mundo o que se passa ali. Falar em tecnologia é mais do que falar em equipamentos eletrônicos, computadores, notes, nets e a parafernália à venda em 15 prestações nas boas lojas do ramo. Querendo ou não, o ambiente tecnológico é o próprio ambiente social impregnado pela tecnologia em cada mínimo detalhe, misturado com ética e responsabilidade.

Não é mais possível crer que comportamentos que poderiam passar despercebidos e impunes até pouco tempo, irão continuar com esse salvo conduto. Ser ingênuo e inocente, hoje em dia, é desprezar os perigos embutidos em nossas ações, antes mesmo de praticá-las. Algumas práticas que eram válidas até uma década atrás, simplesmente, deixaram de ser. Algumas premissas de análise de uma década atrás, simplesmente, deixaram de existir.

ISSO NÃO SIGNIFICA JOGAR FORA TODAS AS CERTEZAS ACUMULADAS AO LONGO DA HISTÓRIA HUMANA.

Fundamental é perceber que precisamos nos esforçar para incorporar novas dúvidas aos nossos diagnósticos da realidade. É preciso ter a coragem de questionar as certezas até para atestar se elas ainda permanecem adequadas. Luz! Foi o que Deus criou no primeiro momento e o que Goethe pediu no último.

Ao mesmo tempo, é preciso buscar novos paradigmas e incorporá-los o quanto antes à vida prática.

A ética se baliza pela proximidade do outro. O outro nunca esteve tão próximo de nós. Nunca antes nossa imagem esteve tão virtualmente perto de todos os outros demais. Uma nova forma de ver impõe uma nova forma de se expor. Estamos a cada dia mais vulneráveis ao olhar do outro.

Nós já passamos pelo homo faber, pelo homo erectus, pelo homo sapiens e pelo sapiens sapiens. Terá chegado a vez do homo bytes?

Isso impõe uma nova forma de se ver e de ver o mundo. Que mundo nos espera? O que esperamos do mundo? Que ética teremos a oferecer para viver nesse mundo?

Tudo é novo demais quando o assunto é tecnologia. Tudo é velho demais quando o assunto é: Vamos mudar o que precisa ser mudado? Vamos, pelo menos, pensar?

Eu volto. E termino.

TECNOÉTICA – 3

Esses dados não são teoria. São uma realidade prática que se desdobra, todos os dias, em torno dos nossos olhos e que cria uma nova forma de ver o mundo e, consequentemente, uma forma nova de ser expor. Há um novo mundo entre as nossas rotinas e as nossas retinas.

Por falar em retina, toda transformação ética passa pela invasão do olhar: aquilo que foi chamado de tecnoética. A revolução tecnológica do olhar invadiu até a privacidade da sala de parto. Os partos, hoje, são filmados e exibidos na sala-de-visita para olhares indiscretos, impróprios e absolutamente fora de contexto. Um horror!

Quer mais?

Na noite de 31 de agosto de 1997, a princesa Diana faleceu num acidente de carro em Paris. Minutos antes, sua imagem, registrada a sua revelia, foi gravada saindo do hotel com o namorado. A câmera estava lá, registrando para a posteridade os últimos momentos da princesa. A imprensa levou a imagem para o mundo inteiro.

No dia 04 de fevereiro de 2002, Herbert Viana sofreu um acidente enquanto pilotava um ultraleve. Disso, resultou a perda da mulher. Ele sobrevoava uma praia deserta do RJ, mas alguém tirava fotos naquele final de tarde de domingo, e registrou a queda. A imprensa espalhou.

Do juiz Nicolau dos Santos Neto, a coisa fica ainda mais tenebrosa. Dois dos indícios para comprovar que ele havia enriquecido ilicitamente não foram produzidos pelos inimigos, mas por ele próprio: a foto ao lado de uma caríssima Lamborghini, feita pelo genro do juiz, e um vídeo filmado e narrado pelo próprio juiz dentro do apartamento de luxo nos EUA. Pode!

O exemplo pra lá de picante fica a cargo do príncipe Charles e sua conversa gravada com a, então, amante Camila Parker Bowles. Quem não se lembra da frase: Eu quero ser o seu tampax? Crem-dos-pai! Por que essa conversa íntima chegou até nós? E o presidente Bill Clinton que quase perdeu o cargo quando veio à tona o affair com uma estagiária da Casa Branca? A prova foi produzida pela tecnologia do DNA, quando se constatou sêmen presidencial no vestido da moça.

Lembram-se do juiz do Ceará, flagrado pelo circuito interno do supermercado quando atirou e matou um funcionário indefeso? E do juiz ladrão da FIFA, que teve conversas gravadas nas quais deliberava os resultados das partidas? E do atentado ao metrô de Londres, em 2005? As imagens da tragédia foram feitas por telefones celulares dos usuários do metrô. É a desgraça ao vivo, em cores, real time. Só faltou o cheiro.

O que esses exemplos mostram é que hoje estamos muito mais expostos do que nunca a todo tipo de olhar indiscreto e invasivo. Gente, tá tudo filmado! Embora muita gente continue subestimando ou ignorando as conseqüências de determinadas escolhas, elas não podem mais ser feitas a esmo.

A pergunta é: foi a ética, o olhar ou a engenhoca à disposição – o que mudou?

Feliz ou infelizmente, daqui pra frente, pra se falar em ética, terá que se falar em tecnoética. É que já é possível falar com câmeras e conversar com vestidos de estagiárias!

TECNOÉTICA – 2

Antes de continuar essa boa prosa, é preciso distinguir ética e moral.

Moral vem de mores, que em latim significa costumes.

Ética vem de ethos, do grego, e indica aquilo que aponta uma direção a seguir. Mas não uma direção qualquer: trata-se de um sentido carregado de intenção. Ou seja, o sujeito vai por ali, não porque todo mundo vá, mas por saber que aquele é o seu caminho, que ele deve e quer ir por ali. Eticamente falando, não basta apenas fazer determinada coisa só porque todos fazem, mas porque é da minha intenção fazer aquilo ou seguir naquela direção.

Quando se fala em ética, entram em cena três atrizes principais de um mesmo filme: LIBERDADE, VONTADE e CONSCIÊNCIA.

Daí, que a ética é um conjunto de princípios que a gente usa para definir as três grandes questões da vida: QUERO, DEVO, POSSO? Tem coisas que eu quero, mas não devo, tem coisas que eu devo mais não posso, tem coisas que eu posso, mas não quero. E só é possível dizer que a gente alcança a paz de espírito quando essas coisas coincidem, ou seja, quando aquilo que a gente quer, a gente pode e a gente deve.

Quem normatiza essas coisas é o Grande Outro social.

Há 20 anos, haveria gente fumando dentro de um auditório. Há 10 anos, haveria uma placa: proibido fumar. Hoje, a placa já (quase) se faz desnecessária: o costume padrão foi introjetado. Há 20 anos era lindo fumar! Hoje...

Então, a ocasião não faz o ladrão? Não! A ocasião revela o ladrão. Quem não é ladrão, não é ladrão, e não há ocasião que o faça ser. O princípio ético se traduz numa prática moral. Daí a diferença entre moral e ética. A moral responde à pergunta: isso é certo ou errado? A ética responde à questão: se eu seguir esse caminho e se eu continuar por ele, aonde isso me levará?

Ficou claro?

Dito isso, retome a pergunta que ficou suspensa na última vez: Você vem atualizando seus conceitos com a mesma frequência com que troca o aparelho de TV, o tablet ou o celular?

O homem é um animal altamente adaptativo. A experiência mostra e História confirma que nos momentos de transição, a sobrevivência humana esteve estreitamente vinculada à capacidade de se adaptar. Eu sempre brinco que mais adaptáveis que os humanos, só os ratos: na fome, rato come até sabão!

A adaptação tem a manha de produzir um ponto novo de equilíbrio entre as práticas e os condicionamentos do passado e as novas condutas e os novos diagnósticos que precisam ser incorporados, para o presente e o futuro. Não é fácil perceber que uma das primeiras transformações que o momento exige é a de que você ajuste os ponteiros internos com o momento em que vive. Perca tudo, mas não perca a contemporaneidade.

E faz tão pouco tempo que passamos a viver noutro mundo que ainda não nos acostumamos a pensar diferente. Alguns dados podem exemplificar como a coisa anda, digo, voa.

Em 2004, a quantidade de máquinas fotográficas digitais produzidas foi de 6000 unidades a cada 60 minutos. No total, 74 milhões de unidades: 6 mil espiões novos por hora!

Em 2005, o volume de programação que as 31.750 emissoras de TV e as 51.120 emissoras de rádio do planeta transmitiram durante um período de 24 horas, foi de 2 séculos num único dia.

Ainda em 2005, a quantidade de câmeras de vídeos digitais vendidas foi de 18,5 milhões de unidades: 2 mil novos cineastas a cada hora. Também nesse ano, a estimativa de quantas câmeras de circuito fechado que vigiavam os espaços públicos no mundo era de 7 milhões de olhos. (Nessa conta, não estavam incluídos os espaços privados.) Só na Inglaterra, campeão absoluto de vigilância, havia 4,2 milhões de câmeras. Cada habitante de Londres era flagrado pelo menos 300 vezes por dia.

A cada segundo, acontece 1 milhão de clicks nas páginas da Internet. Se uma pessoa clicasse uma única vez a cada segundo, demoraria 12 dias clicando ininterruptamente até atingir 1 milhão de clicks, ou seja, demoraria 12 dias para repetir o que acontece no mundo a cada segundo.

A quantidade de fotos e vídeos transmitidos por celulares, só enquanto você estiver vendo estes números é de 30 mil. São 30.000 eternidades novas a cada lapso de tempo.

Se todos os integrantes acessassem a mesma página, ao mesmo tempo, no mundo inteiro, isso daria quase dois bilhões de usuários. Uma China inteira e mais um punhado de gente.

Existem 2.500.000 outdoors e painéis só das 5 maiores empresas de mídia exterior do mundo. Só no Brasil são mais de 40.000 painéis. 6.000 deles, só na cidade de São Paulo.

Caso todas as páginas existentes na Internet fossem transformadas em páginas de livros enfileirados, a estante teria 50 mil km. A rede mundial tem 700 bilhões de páginas – 100 para cada habitante do planeta. Uma estante dessas dimensões você pode acessar todos os dias. E, não fique triste, porque ela se encontra em contínua expansão.

Termino lembrando que muitos desses números se remetem a 2006. De lá pra cá... De lá pra cá...

sexta-feira, 13 de abril de 2012

TECNOÉTICA - 1

E por falar em anencefálicos...



Acabamos de assistir à votação da descriminalização do aborto em anencefálicos pelo STF. É uma boa hora para se repensar as questões éticas.

Quando aparece a palavra “ética”, a primeira pergunta que sobe à tona é: as regras mudam, e elas podem mudar? Dito de outra forma: a ética têm fronteiras? Se tem, quais são e onde estão as fronteiras da ética?

Imploro o benefício da dúvida para fazer uma afirmação que terei de sustentar ao longo de todo texto, e eu não sei onde estou com a cabeça de fazer uma coisa dessas, quando todas as portas do shopping, escancaradas, reclamam minha ilustre presença por lá. Tsss... Coragem!

A afirmação é esta: Sim, existem fronteiras para a ética e essas fronteiras (como qualquer fronteira) se deslocam. A História mostra isso.

Na História do mundo toda vez que a espécie humana experimentou um salto tecnológico houve uma transformação nas regras de convívio, na moral e nos códigos de ética. Observem.

Quando o homem inventou a agricultura, ele experimentou um poderoso avanço tecnológico e, junto, como consequência, um baita avanço ético. É que quando homem ainda era nômade e vivia da coleta de alimentos, não havia como produzir nem como estocar os excedentes. Se houvesse uma guerra e a tribo inimiga fosse aprisionada, seria impraticável aprisionar os reféns. Não havia como alimentá-los. Resultado? Ou os reféns eram dizimados ou eram devorados, geralmente, a segunda coisa depois da primeira.

Com o surgimento da agricultura, o homem troca a vida nômade pela vida sedentária e se fixa num território. Surge a escravidão e o casamento (quase na mesma ordem!). O casamento para erigir herdeiros. A escravidão para construir o que deixar para os herdeiros.

Dali pra frente, toda vez que havia um conflito tribal, nos mesmos moldes de antes, já havia excedentes de alimentos. Ao invés do puro e simples extermínio, agora, os reféns viravam escravos. Olha que beleza! Eles já não eram mais mortos nem devorados. A agricultura, por si só, produziu um avanço tecnológico e ético considerável. É claro que a escravidão é abominável sob qualquer ponto de vista. Mas, naquele contexto primitivo, foi passo à frente em relação ao canibalismo. Seja como for, o valor ético da vida começava a ser respeitado. E observem: como decorrência do avanço tecnológico. Estava-se ainda muito longe do ideal, mas já era melhor do que antes!

Mais um exemplo.

A revolução industrial foi possível graças à invenção do vapor e as primeiras linhas de produção. O trabalho braçal – cru – começava a ser dispensado, substituído pelas máquinas. Ora isso aumentou a produção. O fato de haver mais produção dispensava o braço, mas exigia o bolso. Era preciso ter mais gente para comprar o excesso produzido. Essa nova ordem econômica se tornou incompatível com a escravidão. Era preciso que houvesse homens livres, que vendessem a sua força de trabalho, e em troca fossem remunerados para... consumir.

Olha aí, gente! a agricultura havia posto um fim no canibalismo, mas criado a escravidão. As linhas de produção puseram um fim na escravidão, mas criaram uma nova ética: a da sociedade de consumo.

O SALTO ÉTICO NÃO ACONTECE PORQUE O HOMEM “MELHORA” OU FICA BONZINHO. O SALTO ÉTICO ACONTECE PORQUE A NECESSIDADE EXIGE.

E mais. Essas engrenagens movem-se por si. Os novos valores que surgem na esteira dos grandes avanços e das transformações não foram frutos apenas de consensos abstratos. Eles se impuseram de acordo e a partir da nova lógica que passava a surgir. Repito. O salto ético não acontece porque o homem “melhora” ou fica bonzinho. O salto ético acontece porque a necessidade exige.

Então, ao invés de falar de ética, precisamos falar de tecnoética. A questão que se coloca não é mais se a ética muda ou não muda, mas a velocidade em que muda.

Em 1943, a questão ainda podia ser se as regras mudavam. Em 1943, a Normandia ainda não havia sido invadida e a II Grande Guerra ainda não havia mudado a favor dos Aliados. De lá pra cá, o mundo virou no avesso um punhado de vezes!

A pergunta de hoje é outra, e a agulhada dói mais. A pergunta é esta: Você vem atualizando seus conceitos com a mesma frequência com que troca o aparelho de TV, o tablet ou o celular?

Eu continuo tá!

domingo, 1 de abril de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 26

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

No capítulo seguinte, Jesus se encontra à mesa, numa ceia fúnebre. “Marta servia, e Lázaro se encontra à mesa com ele” (Jo 12,2). E nós não precisamos perguntar de que jeito Lázaro se encontrava à mesa com ele. Encontrava-se. Ponto.

Maria é quem mais demonstra o núcleo da mudança que ocorreu nos três irmãos, após as mutações que ocorreram em Lázaro e em Jesus. Ela, apenas passiva aos pés de Jesus, na cena de Lucas, agora, torna-se ativa. Quebra uma libra de perfume, de nardo puro e muito caro, unge com ele os pés de Jesus e os enxuga com seus cabelos. E a casa inteira se enche com o perfume (Jo 12, 3).

Maria, a irmã de Lázaro, reviveu. Reviveu nela a dinâmica de um desejo que vai além da passividade. Ela deixou de ser criança e se tornou mulher, capaz de agir tudo o que pode agir e de dar tudo o que tem para dar. Aquela que bebia Jesus com os olhos, agora, derrama em seus pés o perfume de um amor muito raro e muito caro. Ela continua aos pés de Jesus. Mas não mais como antes, quando ela só recebia. Agora, já pode dar. O perfume é o íntimo mais íntimo do seu ser mulher.

Mas duas coisas precisam ser ditas.

Primeira: todos os outros, presentes à cena, também podem receber a manifestação daquele amor. O perfume se espalhou e encheu a casa inteira. Ao contrário de Lázaro, Maria ama com o amor que sabe amar, mas não para reter para si o objeto de um amor exclusivista.

Lucas narra uma cena parecida, mas de modo diferente (Lc 7,36). Para Lucas, trata-se de uma mulher de vida duvidosa. Em João, quem está aos pés de Jesus é Maria, irmã de Lázaro, de vida acima de qualquer dúvida. No entanto, na essência do seu modo de amar, aquelas duas mulheres, tão diferentes, realizam a mesma coisa. Elas que antes viviam no anonimato, agora podem “oferecer” – e em público, aos olhos de todos – as provas do seu amor. Declaram o seu amor por Jesus, mas, ao contrário de Lázaro, não o querem somente para si. Amando, como o feminino consegue amar, elas sabem, com uma clareza sem precedentes, que ele não lhes pertence, nem a elas nem a ninguém.

Segunda: não foi apenas Lázaro que mudou. Maria também mudou. E seria pedir muito, dizer que Jesus também mudou? A Judas que reclama do valor desperdiçado, Jesus responde: “Ela guardou esse perfume para o meu sepultamento”. Naquele momento, Jesus opera a mesma ruptura de antes, com Lázaro. Mas agora, la chose acontece entre ele e Maria. Ela erotiza a sua homenagem. Ele aceita aquele amor, mas responde, dizendo-lhe que já não é mais para esta forma de ser amado que ele pretende deixar-se amar. Ele não pode pertencer a ela, porque não pertence mais a ninguém, nem a si mesmo. Maria entendeu, porque algo nela já havia mudado.

Em Caná, Maria de Nazaré, pela mutação do vinho, havia revelado a Jesus que a sua hora de entrar no mundo havia chegado. Da mesma forma, Maria de Betânia, com seu perfume, lhe revelou, pela mutação de seu amor, que a sua hora de sair do mundo estava próxima. Tempo de mudanças e mutações.

João 11 é o capítulo das mudanças necessárias e não prorrogáveis nas motivações escondidas nas dobras da vida e do amor. Um grande momento de mutação para todos: Lázaro, Marta, Maria e Jesus.

João 11 é o capítulo que abre a narrativa da Paixão. É que a morte não tem a última palavra. Nesse caso, ao que tudo indica, só tem a primeira.

FIM

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 25

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Já foi dito o quanto Jesus estava comprometido com esse sétimo sinal. O sinal de Lázaro comporta duas mutações num layout paralelo: a mutação de Lázaro e a mutação de Jesus.

Se Jesus caminha ao encontro de Lázaro é para compreender o que acontece dentro de si mesmo. Jesus precisa conhecer o seu amor, precisa saber, especialmente naquela hora, o quanto ainda necessitava de amigos, o quanto ainda se prendia a eles, e o quanto eles o prendiam por amá-lo como amavam. Sua Hora estava chegando, e ele não dispunha mais de tempo para se prender por aí, em amores lícitos e desejáveis, mas que não faziam parte do seu projeto. Na medida em que sua Hora se aproximava, com ela se aproximava também o momento de se desfazer dos nós que se pudessem tornar empecilhos à sua Hora.

Então, num rugido sem precedentes e sem calcular as próprias perdas, Jesus se separa deles. “Lázaro, sai para fora!” Lázaro, sai para fora dessa relação. Corte os cordões umbilicais que ainda nos prendem um ao outro. Liberte-se de mim. Eu me libertarei de você. Jesus, o de Nazaré, se desapega daquilo que ainda ficou nele de amor transferencial, passional e exclusivo. Renuncia-se a si mesmo. Livra-se de Lázaro, desperta-o e o faz existir para ele mesmo, como só pode acontecer a quem se torna adulto.

É como se, naquele momento, Jesus passasse a ser apenas a placenta abandonada, e Lázaro, um feto recém-nascido, ainda envolto em suas faixas. É hora de Lázaro crescer e se transformar em adulto. Ele não precisa mais ser carregado por ninguém. Só nessa condição, ele pode amar Jesus. Só falta o “Desamarrem e deixem que ele se vá”. Não diz “que ele venha”, mas, “que ele se vá”. Pronto. Ele já pode ir. Lázaro já pode ir. Jesus, também.

O relato de Lázaro antecede e prepara o relato da Paixão e Morte. Não poderia vir antes nem depois. Só tem lugar ali, exatamente ali, onde foi colocado. Naquele momento, morre em Jesus o resto que havia das transferências de um amor que espera ser amado. Naquele momento, e ali mesmo, tem início a Paixão.

No deserto, os objetos e as motivações de que o adversário dispunha eram sedutores para qualquer um. Mas ele, em si mesmo, não era sedutor nem merecia ser amado. Daquela tentação, Jesus saiu vencedor.

Na casa de Betânia, as coisas eram diferentes. Não havia motivações ou objetos sedutores. Mas as pessoas eram sedutoras, lindas, amavam e podiam ser amadas. Aliás, como era fácil amar, naquele lugar! Lá, Jesus era entendido, consolado. Amava e era amado, por sua própria beleza, como pode acontecer e acontece a qualquer um. Ninguém nunca pensou nisso, mas em Betânia encontrava-se a última tentação de Cristo.

A maneira pela qual Jesus realiza essa separação, mutante para ele e para Lázaro, é particularmente heróica, e prefigura o desapego último e supremo da Paixão. Ao sair do túmulo de sua neurose, o homem Lázaro está pronto para a vida. O evangelho não menciona nenhum olhar, nenhum agradecimento. Isso significa que o homem Jesus está pronto para a morte. Dentro dele, ele já morreu, para si mesmo.

É a sua hora.

sábado, 31 de março de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 24

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

No fim das contas, onde ficou Marta? Marta não ficou, saiu. Não aparece mais em lugar algum. Não é estranho que, entre as mulheres, ao pé da cruz, não se encontrassem as duas irmãs de Betânia? Até a geografia contribuía. Mas não estão lá. Marta some do mapa, torna-se invisível. Como uma figura emblemática, ela condensa o feminino de todos os tempos, e o horror à mulher compartilhado pelos homens, desde a noite dos tempos. Tirada da costela de Adão, coparticipante do mesmo projeto divino, igual em dignidade e valor, nada disso foi ou continua suficiente para fazer da mulher uma... igual.

Ao perfume de Maria “que encheu a casa toda” corresponde o mau cheiro anunciado por Marta. Perfume e mau cheiro falam de uma mesma percepção, avaliada diferentemente conforme a situação que em cada um se encontra. O perfume evoca sublimação, um conceito difícil de entender.

Sublimar é morrer um pouco.

há diferentes perfumes. Os perfumes, de Maria e de Nicodemos, aparecem na proximidade, ainda que contingente, da morte. Mas observem que algo muda: muda o modo e a quantidade como aparecem no texto. Maria leva 1 libra. Nicodemos, 100 libras. São intensidades diferentes numa mesma relação. Para Maria, existe uma relação onde investir. Se o que ela leva é uma libra de perfume, nem precisa mais: é nardo puro, raro e de valor excepcional. A casa toda se enche com o perfume de Maria (Jo 12,3). Tal como a sua relação com o Rabi. É o perfume da vida.

Para Nicodemos, ao contrário, a relação não existe mais, porque nunca existiu. Nicodemos foi aquele que se encontrou com Jesus, à noite, por medo. Que relação consegue se constituir em meio ao medo? Que eu saiba, nenhuma, sadia. O perfume de Nicodemos é o perfume do medo no umbral da morte. Tal como a sua relação.

Sublimar é morrer um pouco.

Mas é a morte da semente, e só. Morre-se semente, para voltar árvore. É impressionante a contemporaneidade do evangelho! O que mal sabemos, hoje, eles, bem lá atrás, já conheciam.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 23

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Ainda que Marta tente interceptá-lo, nada consegue abalar a sua disposição em resgatar da morte alguém que ainda vive. Ainda que ela insista que “já cheira mal”, que decida que não há mais lugar para a esperança, que opte por uma eutanásia simbólica, ele segue seguro. Quem já mostrou a direção da vida a tantos, não vai se intimidar com inibições neuróticas, seja lá de quem for, e que prefira pulsar a favor da morte.

Marta é presença constante no vai-e-vem da vida.

Penso nela, toda vez que me deparo com uma família cujo filho enveredou pelas adições ou qualquer outro caminho que desemboque no corredor da morte. “Ele já cheira mal.” Não há mais o que fazer! Ou à beira do precipício de um paciente terminal, onde já foi decidido não haver mais espaço para a esperança, e que resta cuidar de quem resta inconsolável. “Ele já cheira mal.” Não há mais o que fazer! É difícil o momento de conceder-se a prerrogativa de decidir pelo outro, quando é que ele não pode mais acalentar nenhuma esperança. O filho drogado que já quebrou ou vendeu tudo é o mesmo que também já voltou, muitas vezes, pedindo ajuda e prometendo não recair mais. É o mesmo que, desta vez, garante que “é pra valer”! Quando ninguém acredita mais, quando lhe viram as costas, e ele abandona até os cuidados básicos da alimentação e do banho, literalmente, “ele já cheira mal.” Como continuar apostando nele, quando nenhuma ficha sobrou?

Olhando de perto a situação, não é que Marta tem razão?

Mas é uma razão que não opera nada, que não transforma realidade alguma. O filho drogado não brotou drogado da barriga da mãe, como um cogumelo venenoso. Querendo ou não, desta ou daquela forma, ele é fruto da neurose familiar. Pode ser que tenha experimentado a droga apenas por curiosidade. Muita gente já foi nessa e, nem por isso, acabou dependente. A situação não faz o ladrão – ela revela o ladrão. Para quem não é ladrão, situação alguma o torna. Não é a curiosidade que gera a dependência. A dependência é anterior à curiosidade. Existem dependências que são alimentadas, anos a fio, no cotidiano das neuroses familiares.

E mais. Uma família não é um sodalício. Numa família, todos estão envolvidos com todos, simultaneamente. Quando brota um cogumelo num lugar assim, ou a responsabilidade é de todos ou não pertence a ninguém.

Difícil é convencer as famílias de que elas é que estão doentes – por inteiro – e que o filho doente é apenas um tumor que vazou. Os grupos familiares são regidos por contratos tácitos, acordos silenciosos: todos sabem e ninguém sabe, ao mesmo tempo. Todos falam, mas ninguém disse nada. Em certas famílias, determinadas palavras não podem ser ditas. Passam-se anos sem que se discuta o porquê dessas palavras não poderem ser faladas. O silêncio, contudo, continua e é “ouvido” por todos, a todo instante. A família não é o lugar mais conveniente de se dizer a verdade. No entanto, onde mais?

Difícil será convencer Marta de que é dela mesma que ela fala, quando determina que não há mais nada o que fazer, que a pedra já fora afastada outras vezes, e que retirá-la, outra vez, só irá revelar o que ninguém mais suporta ver. O que a pedra esconde, Marta? Você sabe? Retira-la, denuncia o quê?

No fim, a pedra foi retirada e Lázaro saiu do túmulo e foi Maria quem entendeu. A cena do perfume, no capítulo seguinte, vai expressar seu entendimento. Quanto à Marta, o texto, solenemente, silencia.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 22

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Jesus de Nazaré era homem por inteiro. Alguma dúvida?

Com isso, pretendo dizer – ou lembrar – que nele também residia o mesmo narcisismo que habita todos nós, um narcisismo que, na dose certa, constrói um eu forte, capaz, sadio, bom. Sua presença física havia se tornado fundamental na vida de Lázaro e de suas irmãs. Isso, na certa, era confortável para Jesus de Nazaré. Mas o que ele não podia nem devia era continuar fixado nessa complacência, nesse engodo narcisista, necessário e perigosamente presente em cada sujeito que comande o mundo à sua volta.

Quando Jesus conheceu aqueles três e se tornou amigo deles, Lázaro ainda estava ligado às duas irmãs. Era homem adulto, porém solteiro. Isso não cabia na mentalidade da época: pessoas solteiras não eram bem vistas no mundo judaico. Por outro lado, Lázaro estava ligado a duas mulheres, solteiras, também. Mulheres solteiras eram menos bem vistas em Israel, do que homens solteiros. E os três ainda permaneciam na casa dos pais. Como crianças! Parece que o desmame não fora realizado. Parecem trigêmeos que ainda não nasceram para a vida social. Nenhum deles se assume como ser independente do outro e dos outros. Nenhum deles é capaz de seguir o curso das próprias águas.

Das duas moças, sabemos que uma, Marta, trabalhava para Jesus; a outra, Maria, o bebia com os olhos. Agora, ao que tudo indica, também o rapaz seria capaz de morrer se Jesus não estivesse por perto. O mínimo que se possa dizer daquela constituição é a de que aquele era um trio neurótico. Ou, numa palavra mais amena, infantil.

Jesus sabia disso. Na certa, nunca leu Freud. Mas sabia disso. Por isso, declarou a respeito de Lázaro, que “aquela morte era necessária”. “Aquela”. Aquele rompimento era necessário. Para que ele crescesse. Daí, a demora em partir, a demora em chegar e o choro da constatação de como o amor humano é perigoso e do quanto pode ser (auto) destrutivo.

Depois do choro, a pergunta: “Onde vocês o colocaram?”

Agora, observem o seguinte. O evangelho foi escrito num dialeto grego chamado Koiné. Esse dialeto deixava a pontuação em suspenso. Tanto podia ser um ponto de interrogação, ao final da frase, como qualquer outra pontuação. Se, ao invés de um ponto de interrogação, colocarmos um ponto de exclamação, muda tudo. A frase “Onde vocês o colocaram?”, fica: “Onde vocês o colocaram!” Vê? Mudou tudo.

Perceberam o novo significado? É como se Jesus dissesse: “Vejam o estado dele!” Não existe, ali, nada mais que lembre o que houvera antes, nada mais do ser de antes, nada mais do adulto de antes. Apenas um sujeito infantilizado, regredido, ensimesmado, enrolado ao redor do próprio umbigo. Uma criança assustada! E, justo Lázaro, o amigo que tanto compreendia Jesus, que era “o outro” de Jesus! Cadê Lázaro? Onde foi parar Lázaro? Onde ficaram os ideais? Nada daquilo sobrou? Apenas um sujeito que já nem mais é sujeito da própria vida. Não foi pra isso que Lázaro foi amado. Perceberam o alcance do choro de Jesus? É muito mais doído do que um choro de morte. É um choro de frustração. “Onde vocês o colocaram?” Os judeus respondem, prontamente: “Vem e vê”. Venha ver o que sobrou.

No começo do evangelho de João, dois primeiros pretendentes a discípulos lhe perguntaram: “Onde moras?” Ele respondeu, também, prontamente: “Venham e vejam” (1,35). E eles foram e viram e ficaram com ele.

Nesta cena, no caso de Lázaro, o contexto é o mesmo. O que se inverteu foi a situação. Lá, no começo ele lhes havia mostrado o lugar da vida. Agora, eles lhe indicam o lugar da morte.

“Tirem a pedra”.

Marta intervém. Pra quê? Faz quatro dias. Já cheira mal. Não será difícil imaginar que, no inconsciente de Marta, vigora a tentativa neurotizante de inocular culpa e ressentimento no outro. Culpa dela mesma não ter dado conta do irmão que morria. Ressentimento por Jesus não ter acudido no tempo em que ela havia determinado. Até no último momento, Marta ainda pensa com os conceitos do seu pequeno mundo neurótico, onde os horizontes terminam do outro lado da rua. Marta tenta interceptá-lo. Se ela não fora capaz de cuidar do irmão, quando era tempo, e se ele não fora capaz de mudar sua agenda, enquanto era tempo, agora, pra quê? É tarde! A esperança não é um fio de cabelo louro ao sol? Marta não vê, não quer ver, não deixa ver. Daquela morte, Marta foi a que mais morreu.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 21

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Para entender, realmente, o que estava acontecendo ali, precisamos voltar atrás e ver que tudo começa na demora de Jesus em atender ao pedido das irmãs. Não há como explicar o porquê de, mesmo sabendo da situação do amigo, ele não arredar pé e ainda permanecer dois dias no lugar.

Ao adoecer, Lázaro havia regredido a um estado vegetativo, como uma árvore cortada de suas raízes, um feto não mais alimentado pelo cordão umbilical. Lázaro se tornou um feto morto ainda no útero. Ele existe, mas apenas como um ser devolvido à terra-mãe, envolvido em faixas, sem nenhuma comunicação com qualquer outra vida que continue existindo fora da sua neurose pessoal. Em Lázaro não há mais relação com o ambiente. Ele se tornou o ambiente.

Lázaro está desorganizado psiquicamente. Como uma criança, que ainda não estruturou um ego a ponto de funcionar como “gerenciador de programas”, em Lázaro não existe um organizador interno forte o suficiente para dizer-lhe que seus sentimentos não são autênticos nem verdadeiros. São reais, sim, mas não pertencem à esfera da realidade. Que o seu sofrimento exista, é claro que sim! Mas é um sofrimento neurótico, constituído de fantasias à deriva da realidade externa. Lázaro misturou e confundiu de tal forma o mundo externo e o mundo interno que se perdeu na fronteira entre os dois. É nessa fronteira que o sujeito deprimido, muita vez, se encontra perdido.

A pena de João captou essa desorganização psíquica interna, em Lázaro, quando falou do cheiro de putrefação do corpo. Já fazia quatro dias, lembra Marta. João comparou a desorganização da alma de Lázaro com a desorganização orgânica a que os corpos são submetidos, quando nada mais funciona e a vida não corre livre e o corpo se putrefaz. É assim que se encontra Lázaro: nada mais funciona, a vida não corre livre, a alma se decompõe.

Jesus sabia disso quando se demorou a sair do lugar. Sabia que a relação que prendia Lázaro a ele era uma relação de dependência. Sabia que havia se tornado a mãe nutriz de Lázaro. Sabia que a morte em vida de Lázaro, a total falta de interesse pelo mundo, pela comunidade, por si mesmo, não era outra coisa senão a necessidade e a falta da presença física, quase diria carnal, que Lázaro aspirava dele. (Pra falar a verdade, não sei se Jesus sabia, mas João, ou quem tenha escrito, esse, sabia.)

Jesus percebeu que, no caso de Lázaro, de maneira exemplar, o risco de falhar em sua missão era muito grande. Bastava que Jesus o amasse com a necessidade infantil que Lázaro exigisse daquele amor, bastava que Jesus se fechasse nele, e que ambos se fechassem em um pequeno e exclusivista mundinho interno, para que sua missão fracassasse. Ele pressentia aonde sua missão o levaria. Se Jesus se prendesse a eles, ao amor deles, à necessidade que sentiam dele e, por que não, à necessidade que sentia deles, com certeza, não teria tido nem coragem nem liberdade para seguir até o fim. Dois capítulos à frente, João escreve que “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (13,1). Entre esses “seus”, um lugar de destaque era ocupado pelos três irmãos de Betânia, com sua maneira insólita de amar. Se Jesus se prendesse a eles, a frase de João ficaria no ar ou sequer teria sido escrita. Se Jesus não tomasse cuidado, Lázaro, o amigo, teria se transformado em Lázaro, o estorvo.

sábado, 3 de março de 2012

DAVIII... IH! – 8

“Conheço o filho de Jessé, de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


Davi foge.

“O que foi que eu fiz? Qual foi o crime? Qual foi o pecado que cometi contra seu pai para que ele queira tirar a minha vida?” (1Sm 20,1).

Davi pergunta as mesmas coisas para si mesmo. Ele é um homem procurado na corte de Saul. Seu rosto jovem está estampado nos cartazes em agências de correio. Seu nome aparece no topo da lista de pessoas que Saul deseja matar. Ele foge, olhando por sobre o ombro, dormindo com um olho aberto e comendo com a cadeira próxima à porta do restaurante.

Que série obscura de eventos! Nem bem fazia dois ou três anos de quando ele ainda estava apascentando rebanhos em Belém! Naquela época, bom mesmo era ver as ovelhas dormindo, bom mesmo era dormir ao relento nas noites quentes, bom mesmo era contar estrelas, e nuvens, e ver a rara chuva chegando. Então, apareceu Samuel, um profeta idoso com sua barba prateada e um chifre com óleo. Assim como o óleo, um novo espírito cobriu Davi.

Davi abandonou sua dolce vita, deixou de fazer serenatas para ovelhas e passou a fazê-las para Saul. De repente, o tampinha ignorado da cria de Jessé estava na boca do povo: era rei Artur para a Camelot de Israel, belo e humilde. Os inimigos temiam-no. Jônatas amava-o. Mical casou-se com ele. Saul odiava-o.

Após o sexto atentado contra sua vida, Davi entende a razão. Saul não gosta de mim. Tendo a própria cabeça por recompensa e um bando armado em seu rastro, ele beija Mical, dá adeus à vida na corte e foge.

Mas para onde ele pode ir? Para Belém e arriscar a vida de sua família? Para o território do inimigo e arriscar a própria vida? Isso se torna uma opção, mas só mais tarde. Por enquanto, ele escolhe outro esconderijo. “Davi foi falar com o sacerdote Aimeleque, em Nobe” (1Sm 21,1).

Estudiosos indicam uma colina a cerca de um quilômetro e meio ao nordeste de Jerusalém como o provável lugar da cidade antiga de Nobe. Ali, Aimeleque, bisneto de Eli, dirigia, digamos, um mosteiro. Oitenta e cinco sacerdotes serviam em Nobe, o que lhe rendeu a alcunha de “a cidade dos sacerdotes” (1Sm 22,19). Davi vai correndo para a cidadezinha, procurando abrigo para escapar de seus inimigos. Sua chegada provoca um medo compreensível em Aimeleque. Ele “tremia de medo quando se encontrou com Davi” (1Sm 21,1). O que leva um guerreiro a Nobe? O que o genro do rei deseja?

Davi garante sua segurança mentindo para o sacerdote:

O rei me encarregou de uma missão e me disse: “Ninguém deve saber coisa alguma sobre sua missão e sobre as suas instruções” Agora, então, o que você pode me oferecer? Dê-me cinco pães ou o que você tiver (1Sm 21,2).

Desesperado, Davi recorre à mentira. Isso, agora, nos surpreende. Mais tarde, a mentira se tornará sua irmã. Até aqui, contudo, Davi fora brilhante, impecável, puro: Branca de Neve num elenco de bruxas com verrugas no nariz. Davi permaneceu calmo quando seus irmãos o repreenderam, permaneceu forte quando Golias bramiu, manteve a calma quando Saul perdeu a dele.

Mas agora ele mente como um chefe mafioso no confessionário. Descaradamente. Convincentemente. Saul não o havia encarregado de missão alguma. Ele não está cumprindo um serviço real secreto. Ele é um fugitivo. Injustamente, é claro. Mas, é um fugitivo. E ele mente sobre isso.

O sacerdote não interroga Davi. Ele não tem razão para duvidar do fujão. Ele simplesmente não tem nenhum recurso para ajudá-lo. O sacerdote tem pão, não pão comum, mas pão consagrado. O pão da Presença. Todos os sábados, o sacerdote colocava doze pães de trigo sobre a mesa como uma oferta a Deus. Após uma semana, e somente uma semana depois, os sacerdotes, e somente os sacerdotes, podiam comer o pão. (Engraçado pensar que alguém quisesse o pão de uma semana!) Não obstante, as opções e o colarinho clerical de Aimeleque encolhem.

Davi não é sacerdote. E o pão acabara de ser colocado sobre o altar. O que Aimeleque deveria fazer? Distribuir o pão e transgredir a lei? Guardar o pão e ignorar a fome de Davi? O sacerdote procura uma escapatória: “Não tenho pão comum; somente pão consagrado; se os saldados não tiveram relações com mulheres recentemente, podem comê-lo” (1Sm 21,4). Curioso!

Sei lá o que passou pela cabeça de Aimeleque! Se você quiser, pode culpar o aroma de pão recém-assado, mas Davi responde com a segunda mentira e uma escorregadela teológica. Seus homens não puseram os olhos, muito menos as mãos, em uma “donzela”. E o pão consagrado? Ele põe o braço no ombro do sacerdote, segue com ele em direção ao altar e sugere: Sabe, companheiro Aimeleque, “o pão terá o efeito de sempre, ainda que tenha sido santificado na vasilha” (1Sm 21,5). Mesmo os pães consagrados, raciocina Davi, ainda são assados no forno e levam farinha. Pão é pão, e fome é fome, certo?

Funciona. O sacerdote dá-lhe do pão consagrado, “visto que não havia outro além do pão de Presença, que era retirado de diante de Iahweh e substituído por pão quente no dia em que era tirado” (1Sm 21,6).

Morto de fome, Davi devora o pão. É provável que Aimeleque também tenha feito o mesmo. Ele pergunta-se se fez a coisa certa. Ele inverteu a lei? Violou a lei? Obedeceu a uma lei superior? O sacerdote concluiu que o apelo maior era barriga vazia. Em vez de pôr os pingos nos “is” do código do Altíssimo, ele supriu a necessidade de um filho do Altíssimo. Ta bom.

E Davi? Como Davi retribui a compaixão de Aimeleque? Com outra mentira! “Você tem uma lança ou uma espada aqui? Não trouxe a minha espada nem qualquer outra arma, pois o rei exigiu urgência” (1Sm 21,8). Não falei? Virou padrão!

Davi está vacilando. Não fazia muito tempo e a funda do pastor era tudo de que ele precisava. Agora aquele que recusou a armadura e espada de Saul pede uma arma ao sacerdote. O que aconteceu com nosso herói?

Simples. Ele perdeu o foco. Golias está no telão da imaginação de Davi. Conseqüentemente, baixou o desespero. O desespero cria mentiras, incita o medo, esconde a verdade. Não há onde se esconder. Não há o que comer. Aimeleque deu pão, Davi quer uma espada. A única arma que há no santuário é uma relíquia, a espada de Golias. Ó só! Justamente, a espada que Davi usou para decapitar a cabeça do gigante. Os sacerdotes estão expondo a espada como a Galeria da Academia de Florença, na Itália, expõe a estátua de Davi, de Michelangelo.

Perfeita!, diz Davi. E aquele que entra no santuário com fome e desarmado sai com a barriga cheia, a alma vazia e a espada de um gigante.

As coisas se repetem tanto! A despeito do que façamos, as coisas se repetem. Tanto!

sexta-feira, 2 de março de 2012

COLAPSO DO SIGNIFICADO

“O deus do oráculo de Delfos
nada esconde, nada revela, só significa.”
Heráclito de Abdera

Nenhum outro século foi mais curto do que esse que passou. Alguns historiadores afirmam que o século XX começou na Primeira Grande Guerra, em 1914, e terminou na queda do muro de Berlim, em 1989. Feitas as contas, o século XX durou apenas 75 anos e o século XXI começou 11 anos antes: no dia em que o muro caiu (Eric Hobsbawm).

E começou o novo milênio, estranho, complicado. Muita coisa mudou. Mudou, por exemplo, a noção de tempo. O tempo foi comprimido, uma vez que foi relacionado à tendência de super-acumular bens e acelerar o consumo. Quem vive agora, viu em poucas décadas o tempo se encurtar e se estreitar; e viu tudo isso acontecer de um modo muito rápido, efêmero e sem nenhuma transcendência que explicasse o fenômeno.

O tempo é outro. Se demorar pra decidir, você “dança”. Um segundo pode ser decisivo na vantagem. E os espermatozóides, de alguma forma, já sabiam disso.

É curioso ver como o tempo era medido ou percebido antes. Até o século XIX, as mudanças aconteciam por séculos: havia o século XVIII, depois o século XIX... A partir do século XX, as mudanças passaram a acontecer por décadas: vieram os anos vinte, os anos trinta... Lá pelo meio da década de 80, as mudanças foram percebidas por anos: 1986 foi diferente de 1985, 1997 de 1996, e por aí afora. O século XXI, quando começou, já parecia velho. Tudo muito rápido, volátil, descartável, efêmero, cruel.

É intrigante essa questão do tempo. Numa metrópole, como São Paulo, o tempo se divide em dia e noite. Não existem horas. É de dia e, de repente, já é de noite, sem que se perceba a mudança. Em São José dos Campos, cidade menor, ainda existe manhã, tarde e noite. Na minha cidade, do tamanho de um ovo de codorna, existe duas da tarde, duas e quinze, duas e meia, duas e quarenta e cinco... A cada tantos minutos, o relógio da igreja anuncia, sem pressa, o momento do dia. E você sabe o momento que está vivendo, porque, naquele lugar, as horas têm cores, o tempo e os relógios não têm pressa, o ar tem aroma, e fica a bondosa impressão de que a vida é longa e você vive mais. Ao contrário, onde tudo é muito rápido, a sensação de ter a vida escorrendo pelo vão dos dedos é deveras cruel.

O tempo se encurtou. As distâncias não existem mais. É uma ciranda, só que nada infantil.

Nessa ciranda da concentração financeira, descentralizou-se a produção e os tempos foram reduzidos: o giro nos setores de produção ocasionou a intensificação dos processos de trabalho e a conseqüente aceleração da qualificação e desqualificação da mão-de-obra, necessária ao atendimento das novas necessidades. É assim, ó: hoje, você serve, ta. Amanhã, ficou obsoleto. Daí vieram cursos, workshops, congressos, especializações, mestrados, doutorados, pós-doutorados, pós-pós-doutorados. Cada vez mais de cada vez menos. O sistema gratifica, sim, mas exige e devora. O grande Outro é voraz.

Aceleração na produção acarreta aceleração do consumo, troca de bens, circulação de mercadorias, on line e real time. Se não for assim, não acontece, você ficou defasado, e bye-bye! Não é possível que essa aceleração não influencie, determinantemente, a maneira de ser, pensar e agir do homem contemporâneo.

A primeira conseqüência dessa mudança foi acentuar o caráter volátil e efêmero daquilo que se chama “produto”: as modas, as técnicas de produção, os processos de trabalho, as idéias, ideais e ideologias, os valores e práticas estabelecidos, o chocolate instantâneo, o macarrão pré-cozido, o talher, o copo e o prato. Tudo é descartável. (Se duvidar, até você.) Tudo muda muito, e muito rápido. O homem pós-moderno não acompanha mais as mudanças que ele mesmo criou e incentivou. Seria a história do médico e o monstro? Se for, quem é o médico e quem é o monstro? E a quem essas mudanças interessam?

O mercado financeiro existe a partir de capitais fictícios, voláteis, uma ciranda que resiste ao discurso onipotente dos economistas, e traz cada vez mais à tona uma sensação de embaraçosa e profunda alienação e aleatoriedade. E é sobre esse balão inflado que repousa, não a economia mundial, mas – o que realmente interessa – a vida das pessoas: a sua vida, a minha.

Quem diria que Platão seria tão atual!

Como que saídos da nossa própria caverna vivemos, no dia-a-dia, a ilusão da “Matrix”. Quem sabe, não sejamos mesmo um código num computador? Ou um vírus num organismo maior?

É esse fenômeno que rege a manipulação do gosto, da opinião e do desejo. Quem garante que você realmente gosta de usar a marca que usa? Se você afirmar que foi você mesmo, vou ter de pedir licença para desiludi-lo. Caso você insista em afirmar que todos seus gostos, opiniões e desejos partem (só) de sua autonomia, terei de avisá-lo que isso é uma deliciosa ilusão, mas só uma ilusão. Não é possível, nunca foi possível nem será, em época alguma, sair de debaixo da influência externa. Quem vende mídia, e até quem vende pipoca, sabe disso. E sabe mais: sabe que o que todos querem é preencher uma lacuna interna, o fosso de cada um. “Ao persuadir o outro de que ele tem o que nos pode completar, nós nos garantimos de poder continuar a desconhecer precisamente aquilo que nos falta” (Lacan).

A mídia produz um cortejo de signos a fim de alimentar a insaciável indústria do comércio cultural. Ou da cultura comercial. O resultado dessa inflação dos signos é o esvaziamento dos significados. É nisso que eu queria chegar. Não temos mais símbolos, temos signos. Signos, com cada vez maior pretensão a símbolos, e totalmente vazios de significado. Esses signos, ao invés de remeter-se a um significado maior, atraem o foco para si mesmo. O que sobra é uma sensação de desnorteante e mareado vazio.

Quer um exemplo? Olhe as letras de música do nível mais popular. O que você canta numa frase não faz o menor sentido em relação à outra. Aliás, nem é pra fazer mesmo. É só pra produzir ruído. Está mais para uma forma de esquizofrenia musical, um agregado de significantes indistintos, sem nenhuma relação entre si. E isso produz a alienação total de grupo. É a loucura das grandes massas que cantam juntas, berram juntas, se espremem nos estádios para louvar juntas. Mas com um saldo: ninguém conhece ninguém e nem julga necessário conhecer. O sujeito nem bem saído dali, pode roubar, matar e violentar quem esteve do seu lado, sem que isso represente nada para ele.

Esse é o saldo do anonimato.

Na minha cidade – lembre-se do ovo de codorna – existia o “Manoel da Laura”, que quando a Laura morreu, casou-se com a Maria, mas continuou sendo o “Manoel da Laura”. Porque essa era a sua história e todo mundo sabia e contava e história a gente não muda.

Nas grandes cidades, cada vez mais, ninguém é de ninguém porque ninguém é ninguém. A alienação é o carro-chefe. Os efeitos psíquicos dessa desagregação são desastrosos. A identidade pessoal supõe uma unificação temporal do passado e do futuro, com o presente que tenho diante de mim. O esvaziamento do discurso e da palavra remete à incapacidade de unificar na vida psíquica o passado e o futuro, no presente. Não há mais história pessoal. Não existe mais um sujeito com nome e história, como o “Manoel da Laura”. As pessoas não se olham mais umas às outras. Olham através das outras. E não falam mais nada. Não têm o que dizer. Esperam que se lhes fale, ou que se repita o que elas já sabem ou já ouviram. Mas, se as palavras não operam o sentido e os significantes não montam mais significados, quem poderá compor sua própria biografia? Cadê o “Manoel da Laura”, que já no nome contava a história? E onde ninguém é ninguém, qualquer um estará autorizado a matar por um tênis?

Biografia! Biografia é a salvação. Há pessoas para quem a vida acontece do lado de fora, como se não fosse nem delas nem a delas, como se tivessem perdido a senha de acesso a si mesmo, trancadas do lado de fora, e já não fossem protagonistas de qualquer história, nem da própria. Vazias e áridas, essas pessoas se assemelham a bonecos de corda. Só enquanto dura a corda o movimento continua. Não há vida interior que as anime.

Então, será a solidão o preço da modernidade? Terá a modernidade algum significado? Terá o significado entrado em colapso na modernidade?

O que entrou em colapso foi a cadeia significativa. O significado das coisas, que ontem parecia tão simples, tem falência decretada. Essa situação faz aumentar – mais do que se esperava e devia – os grupos de ajuda gratuita: religiosos, esotéricos, de auto-ajuda, comunidades fechadas, terapêuticas, on line, por e-mail, por telefone, enfim, o vale-tudo. Muito eficientes na intenção. Nem sempre eficazes na execução. Se tudo na vida tem preço, o preço desses grupos parece ser a alienação.

Até que se prove o contrário, quero crer que esses grupos sejam sérios, honestos, e que carregam um caminhão de boa-vontade. Contudo, não espere muito que eles modifiquem a sua orientação básica de funcionamento: alienar para “desalienar”? Ou como já ouvi, prender para libertar? É libertar? Não vem ao caso discutir se essa conduta produz algum resultado e até onde. Na questão em pauta, o que ela não produz é o antídoto para o próprio veneno. Produz cogumelo. E cogumelo só nasce em madeira podre, nunca em madeira de lei.

O que falta é sentido na cadeia significante. O que se vê por aí são grupos gerando uma cadeia significante própria, cujo significado provém deles mesmos, e só faz sentido para eles mesmos e para quem se colocar debaixo deles. Não é raro que se ofereça à venda o que não se pode entregar. Há gurus da produtividade, rentabilidade, afetividade, aproveitamento do tempo e das oportunidades. Há gurus para todo bolso, para todo gosto e todo mau gosto.

Também, não raro que se presencie tamanha movimentação religiosa girando em torno de lideranças personalistas, slogans motivacionais, experiências sensoriais, linguagens corporais e sensações alienantes. Contudo, também é raro encontrar alguma palavra plena que faça e extraia significado da cadeia que ela própria gerou. O orador, pregador ou líder tem sempre de estar fazendo rir ou chorar, sempre provocando alguma sensação, qualquer sensação, qualquer uma, nem que seja uma piada de mau gosto. Da palavra, por si só, não brota mais nada. A palavra virou fruto seco, marcado pela aspermia.

À ética de resultados vinculou-se a ética do mercado. Daí a movimentação, como nunca se viu na história, em todos os campos da atividade humana. Do futebol à arte, da medicina à religião, tudo obedece a projetos de resultado, a leis de mercado e marketing pessoal. Há muito tempo, não se via tanta estratégia maniqueísta, maquiavélica e sensacionalista, promovendo ideais pessoais e particulares, girando estrategicamente em torno daquilo que se costumou chamar de revitalização, em seus múltiplos nomes.

No centro de tudo, a rainha sensação. Se for só a sensação o alvo da busca, que não se queixe quando ela tomar conta da casa e fragmentar o indivíduo. Se só o que conta for a sensação, o signo sem sentido, o símbolo com valor de simulacro, por que as relações têm de valer alguma coisa, além da intensidade do momento? Se o corpo só vale por aquilo que experimenta no momento, e se o momento só tem valor se o corpo chegar ao limite do gozo, e sem fim, por que levar em conta o significado que o transcende? Aliás, às favas com qualquer transcendência! Se, no final, o significante, aleatório e alienante, não produzir nenhum significado, quem se importa? Quem liga pra isso? The show must go on! O Gugu e o Faustão precisam continuar. As pessoas continuarão vazias. Um dia, irão cobrar! Mas, por enquanto, os estádios estão lotados e os palhaços assumem a cena.

Salve-se quem puder!

Freud nos deixou um software esplêndido para entender a alma humana e a vida, enfim. No fascinante universo do pensamento psicanalítico, o primeiro passo é levar a sério o inconsciente. Essa é a porta de entrada de uma construção que já fez 100 anos, enfrentou desafios e nunca buscou resultados imediatos. Porque sabe que o seu trabalho é longo. Tem certeza do que faz. E quem tem certeza, não precisa ter pressa.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

DAVIII... IH! – 7

“Conheço o filho de Jessé, de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


A verdade toda, se dita, converte-se sempre em mentira ou insulto. O essencial se encontra entre as palavras, não nas palavras. Quando você não diz o que queria dizer, o que diz é mais verdadeiro do que o que queria dizer. A verdade, se existe, está no lapso. Esse é o terrível do lapso!

Esses são os lapsos de Davi e de Saul. Pobre Saul! O vale de Elá revelou-se um campo de treinamento para a corte real. Quando Golias perdeu sua cabeça, os hebreus transformaram Davi em seu herói. O povo promoveu um desfile para espalhar rapidamente a notícia, cantando: “Saul matou milhares e Davi, dezenas de milhares” (1 Samuel 18,7).

Saul explode como o Vesúvio. Passa a examinar Davi “dali em diante” (1Sm 18,9). O rei já tem a alma perturbada, propensa a ter acessos de raiva, suficientemente paranóica para comer abelhas. A popularidade de Davi irritou Saul. “Encravarei Davi na parede” (1Sm 18,11).

E Saul tenta matar o menino de ouro de Belém em seis diferentes momentos. Primeiro, ele pede a Davi que se case com sua filha Mical. Parece um gesto gentil, até você ler sobre o preço brutal que Saul exigiu pela noiva. O prepúcio de cem filisteus. Sem dúvida, um dos filisteus matará Davi, espera Saul. Não é o que acontece. Davi dobra a exigência e volta com a prova (1Sm 18,25-27). Agora, vem cá, cem prepúcios! Para quem sabe o que uma paranóia esconde, esse pedido não é escancarado demais? Cem prepúcios! E Davi traz duzentos! E o sujeito não fica satisfeito! Use-se e abuse-se das exclamações e das reticências.

Saul não desiste. Ordena aos seus servos e a Jônatas que matem Davi, mas eles se recusam a fazê-lo (1Sm 19,1). Ele tenta encravá-lo com a lança outra vez, mas não consegue (1Sm 19:10). Além de tudo, era ruim de pontaria! Então, Saul envia mensageiros à casa de Davi para o matarem, mas Mical, esposa de Davi, o faz descer por uma janela. Davi, o papa-léguas, fica um passo à frente de Saul, o coiote.

A raiva de Saul estarrece Davi. O que ele fez, senão o bem? Ele levou cura pela música ao espírito atormentado de Saul, esperança à nação enfraquecida. Ele é o Abraham Lincoln da calamidade dos hebreus, salvando a república e fazendo isso modesta e honestamente. Ele “tinha êxito em tudo que fazia” (1Sm 18,14). “Todo o Israel e todo o Judá, porém, gostavam de Davi” (1Sm 18,16). Davi “tinha mais habilidade do que os outros oficiais de Saul e assim tornou-se ainda mais famoso” (1Sm 18,30). Mas esse era o problema. Davi ficou famoso. A fama é um mau sinal: é sinal de incompreensão.

E o vulcão Saul continua em erupção, recompensando os feitos de Davi com planos para assassiná-lo, lanças voadoras e pontarias desastradas. Entendemos a pergunta que Davi faz para Jônatas: “O que foi que eu fiz? Qual foi o crime? Qual foi o pecado que cometi contra seu pai para que ele queira tirar a minha vida?” (1Sm 20,1).

Jônatas não tem respostas para dar, pois a resposta estava além da sua capacidade. Quem sabe se eles vivessem em Viena, no final do século XIX, e conhecessem um tal Professor Sigmund Freud, quem sabe!

O que pode justificar a raiva de um Saul? Quem consegue encontrar a razão por que um pai atormenta um filho, uma pessoa desdenha a outra, um chefe coloca os funcionários uns contra os outros? Mas é o que acontece. Saul tem raiva do planeta. Ditadores torturam, patrões seduzem, ministros abusam, sacerdotes molestam, os fortes e poderosos controlam e enganam vulneráveis e inocentes. Ainda há Saul e ainda há Davi.

A crueldade de Saul bate de frente na lealdade de Jônatas. Jônatas poderia ter ficado tão enciumado quanto Saul. Ele era o primogênito de Saul, ele se preparava para herdar o trono. Como um nobre soldado, lutava contra os filisteus enquanto Davi ainda apascentava ovelhas.

Jônatas troca as vestes de pastor de Davi por seu próprio manto de púrpura: o manto de um príncipe. Ele dá sua espada de presente para Davi. Ele, efetivamente, coroa o jovem Davi. O herdeiro do trono entrega seu trono.

E depois, ele protege Davi. Quando fica sabendo dos planos de Saul, Jônatas avisa seu novo amigo. Quando Saul vem em busca de Davi, Jônatas o esconde. Ele normalmente dá-lhe avisos como este: “Meu pai está procurando uma oportunidade para matá-lo. Tenha cuidado amanhã cedo. Vá para um esconderijo e fique por lá” (1Sm 19,2). Jônatas faz uma promessa a Davi e dá-lhe roupas e proteção.

Davi e Saul são um caso complicado de se resolver. Jônatas e Davi são o oposto da moeda. Um caso interessante para absorver.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 20

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Mas, o que aconteceu, afinal, com Lázaro? Muitas coisas podem ter acontecido. Nunca se pode analisar todas as possibilidades num golpe de vista só. Uma delas, no entanto, cabe bem dentro da pretensão deste texto.

Lázaro se tornou um infans, um infantil.

Infante é quem não tem voz – infans, do latim – aquele que se falar ninguém ouve. (Quem, ainda, se lembra do Infante Dom Henrique?) Na cena do capítulo 11, Lázaro entra mudo e sai calado. No capítulo 12, seguinte a esse, há uma ceia mortuária, quando só se conta que Lázaro estava presente. Ele não fala. Aliás, nunca falou. Suas irmãs é que falaram por ele, disseram o que precisa ser dito e o que não adiantava mais dizer. Ele mesmo, como era de se esperar de um infante, não decide nada a respeito de si mesmo. Lázaro é “sem fala”, como uma criança. Se bem que as crianças de hoje...

Em vista disso, Lázaro cai numa profunda melancolia, uma quase morte, pela decepção consigo mesmo e a frustração do desejo que o embalava de receber de Jesus o único alimento de que necessitava. Se for possível dizer que Lázaro morreu, devemos dizer que ele morreu de inanição, de anemia afetiva e, por que não, por que não, espiritual. Lázaro precisava de Jesus, mas precisava o tempo todo, e inteiramente, como uma criança. Criança – infante – Lázaro faz de Jesus não só uma motivação de vida, mas uma condição de vida, e tão exclusiva, e tão alienante, que o tornou incapaz de autonomia própria. Autonomia, aliás, que está lá, bem clara, em todos os sinais mencionados no evangelho de João, menos nesse.

Vamos passar em revista?

No primeiro sinal (cap. 2), faltou o vinho. Mas os servos das Bodas de Caná sabiam disso, aliás, os servos sabiam de tudo, e por saberem de tudo, foram capazes de encher as talhas de água, em tempo. É a eles que a mãe se dirige, não ao noivo, não ao mordomo. Este, aliás, é o menos sabia das coisas, das faltas e dos acontecimentos. O mordomo encarna os dirigentes: eles nunca sabem.

No segundo sinal (cap. 4), faltou o amor. O pai onipotente do filho doente pede que Jesus “desça”. Mas quem precisa “descer” do pedestal é ele. Quando ele saca isso, pode, enfim, deixar de dar ordens, inclusive, a Jesus, descer da sua arrogância e ir ao encontro do filho doente.

No terceiro sinal (cap. 5), faltava ânimo, disposição, vontade de ter vontade, fome de viver. O paralisado não tinha ninguém que o levasse à Betesdá. Mas quem disse que ele precisava ir a uma fonte que não mais oferecia o que prometia? aquilo lá, nem fonte era: era fosso. Betesdá significa “O Fosso”. Então, o paralisado, ao apelo de Jesus, mas por conta própria, “levantou-se, assumiu a sua maca e andou”.

No quarto sinal (cap. 6), faltou o pão – fome é essencial. Todas as “fomes” são. E de um menino veio a solução: cinco pães e dois peixes. Pães de cevada, material inferior, mas era o que ele tinha. E o que ele tinha, ele deu. Um menino – de rua, como informa o texto original grego – foi capaz de dar. Ele era inferior por sua condição e seu pão era inferior pela qualidade e quantidade. Mas ele foi capaz de dar. E todos deram do que haviam levado, e todos comeram, e todos ficaram satisfeitos.

No quinto sinal (cap. 6), faltava coragem. Mas o pavor dos discípulos não os impediu de reconhecerem seu mestre, andando sobre o medo como quem pisa descalço em caco de vidro.

No sexto sinal (cap. 9), faltou luz. Mas o cego enfrentou a própria cegueira, a cegueira seus pais, dos dirigentes, da comunidade e gritou para quem quis ouvir: Alguém me “abriu os olhos”! E, agora, eu vejo o que ninguém vê.

Chega-se, então, ao sétimo sinal (cap. 11). Todos estão à frente do túmulo de Lázaro e, aqui, ninguém sabe o que faltou. Nos outros sinais anteriores, todos sabiam o que faltava. Não era difícil providenciar a saída, quando se conhecia o final do túnel. Neste sinal, ninguém sabe nada. Todos estão perdidos. Marta está perdida: responde ao que não ouviu. Maria está perdida: repete o que não pode ver. Lázaro está no túmulo. Os leitores do texto prendem a respiração, porque algo precisa acontecer e para tanto precisa ser encontrado, mas ninguém sabe o que é. Alguma coisa na história de Lázaro nos escapa, algo a ser contado, um mistério que envolve a todos: Marta, Maria, Lázaro, os leitores, os ouvintes... Jesus.

Repito, mas de outra forma. Nos outros sinais, Jesus participa, mas não se envolve. Aqui, é o contrário: ele está envolvido, inteiramente, mas quase não participa. O comentário, à boca pequena, é: “Mas ele que abriu os olhos do cego, não poderia ter evitado que esse morresse?” É só depois dessa, e só no final, que Jesus se dá conta de que precisa intervir. Parece que ele espera o final, para só no final, mostrar-se inteirado do que estava acontecendo ali. Mas, afinal, o que é que estava acontecendo ali?

domingo, 12 de fevereiro de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 19

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Numa família assim, de pessoas tão ternas, não é impossível – não, mesmo – que Jesus de Nazaré também tenha se ligado afetivamente a elas pelos mesmos laços de ternura com que se ligaram a ele. Diante do túmulo de Lázaro, ele chorou. Chorou porque amava e havia perdido. Chorou porque não é fácil perder. Para ninguém. Nem para ele.

Mencionei, no início, que este sétimo sinal é diferente de todos os outros por uma particularidade que o faz único: Jesus se envolve, apaixonadamente, com os personagens da trama. Nos outros sinais, ele manifesta. Neste, ele se manifesta.

Imaginem que o destino de Jesus, em sua vida, foi uma carga muito pesada. Em certos momentos, ele se viu tentado a ser homem como os outros homens: chefe político, rico, poderoso. Ou, simplesmente, pai de família, com mulher e filhos, sogra... Uai! As tentações do deserto foram escritas para nos mostrar, justamente, isso.

Por que, então, ele não haveria também de se ver levado a ser amado por si mesmo: pela sua capacidade de amar e em sua necessidade de ser amado, pela sua beleza e por toda beleza do que poderia desfrutar ao redor de si? Naqueles três irmãos, totalmente devotados a ele, ele poderia encontrar e viver um grande amor, quase às raias da exclusividade. O problema é que esse passo, o da exclusividade e o do exclusivismo, é curto demais. Geralmente, só percebe que a fronteira foi ultrapassada quem já a ultrapassou.

E tem mais. O que existe de humano em Jesus de Nazaré está submetido, como em qualquer um de nós, aos mesmos moldes de amor especular, nos quais nos condicionamos e fomos condicionados desde lá atrás, desde a mais remota infância. Eu disse especular, de espelho. Nós amamos o espelho. Amamos o que nos reflete. Aliás, só conseguimos amar o que nos reflete. O diferente completa? É o que dizem. Mas apenas o semelhante seduz. Só o semelhante tem o poder de atrair. Se isso é bom ou ruim? Nem bom nem ruim. Só é. Com o poder de ser. No amor humano, as coisas funcionam de uma forma que só o que for muito semelhante a mim, no outro, tem o poder de despertar e atrair o meu amor.

Não amamos o outro. Amamos a nós mesmos, no outro. Bingo!

Ora, é difícil imaginar alguém mais semelhante a Jesus e mais capaz desse jogo especular do que Lázaro. Quando as irmãs mandaram o aviso a Jesus, a frase foi curta, mas disse tudo: “Aquele que amas está doente” (Jo 11,3). Será necessário acrescentar alguma coisa a esse amor que, como toda e qualquer forma de amor, só é amor na medida em que um consegue se enxergar no brilho do espelho do olhar do outro?

Da parte de Lázaro, a situação é ainda mais contundente. Desesperado por estar separado de Jesus, como um bebê longe da mãe, Lázaro não morre. Lázaro, simplesmente, deixa-se morrer. Ao que tudo indica, Lázaro tem necessidade de Jesus. Ele ama Jesus. Mas o seu amor não é um amor de liberdade. É um amor de dependência, exclusivo, exclusivista. Posso dizer, fechado? Se Jesus o esqueceu, como ele acredita, ou se Jesus prefere sua missão, ou sua segurança (ele não podia mais transitar pela Judéia, lembra?), então, Lázaro não acredita mais nele nem em suas palavras nem em seu amor. Lázaro não amadureceu o amor que viveu. Lázaro infantilizou-se. Verdejou.

Jesus havia se tornado a luz dos olhos de Lázaro. Na ausência física dele, Lázaro mergulha na escuridão. Lembra das palavras enigmáticas de Jesus, proferidas antes de pôr-se a caminho? “Se alguém caminha de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo. Mas se caminha de noite, tropeça, porque nele não há luz” (Jo 11,9-10).

Em Lázaro, não há mais luz. Isso é a morte. Lázaro não morre, deixa-se morrer. Adormece o sono de uma falta de vida que beira e cheira à morte, um torpor cego, do qual, dificilmente, alguém sai por conta própria. “O nosso amigo Lázaro adormeceu e eu vou despertá-lo” (Jo 11,11). É demais de interessante esse pronome plural “nosso” – emôn , em grego – presente em todos os códices mais antigos. “Nosso”, e não “meu”.

Porque esse tal de “meu”... Ô pronomezinho complicado! Há um entrevero entre esse pronome e o alargar da consciência que, ao que tudo indica, parece que foi o que viemos fazer aqui no planeta, não foi não?

Os discípulos, homens rudes, não entendem. É sono? É morte? Do que estará falando? Que Jesus era o sol de Lázaro, todos sabiam. O que não sabiam é que Lázaro havia se apegado e se apagado, de uma forma tão absoluta e virulenta que se acabou cego de tanta luz, e do mesmo do sol que o havia iluminado

Não preciso lembrar que Lázaro, possivelmente, não existiu como pessoa física. O Lázaro do Evangelho é um personagem criado por João, para nos fazer pensar. O texto é um condensado, uma metáfora, um conglomerado de muitos Lázaros, muitas Martas e Marias. Se João tivesse narrado um acontecimento, nu e cru, teríamos um furo de reportagem extraordinário. Isso, contudo, em nada nos faria pensar, mais do que faz pensar qualquer notícia de jornal. O Lázaro que faz pensar, ainda hoje, sobre o qual nos debruçamos e queimamos pestanas, é contemporâneo nosso. Vive do nosso lado. Talvez, dentro de nós. Qualquer semelhança nunca é mera coincidência.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

DAVIII... IH! – 6

“Conheço o filho de Jessé, de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


O que levou o Eterno a escolhê-lo? É o queremos saber. É só o que realmente interessa saber. Afinal, andamos também nós pelo pasto de Davi, o pasto da exclusão.

O pasto da exclusão? É. Gostaria de incluir uma vinheta nessa “saga do Davi”. Ela poderá parecer inapropriada uns, apropriada a outros, enfim, que seja. Não resisti. E vou colocá-la.



Já nos cansamos do sistema superficial da sociedade, de sermos classificados de acordo com os centímetros da cintura, os metros quadrados do apartamento, a cor da pele, o modelo do carro, a grife das roupas, o tamanho do escritório, a presença de diplomas na parede, a ausência de espinhas na cara.

Chega desses joguinhos!

O trabalho duro é ignorado. A devoção não compensa. O chefe prefere a segmentação ao caráter. O professor prefere os mimados no lugar dos preparados. Os pais exibem os filhos preferidos e deixam os nanicos lá fora no campo. Há sempre um Golias da exclusão!

“O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Sm 16,7). Essa é a vinheta.

Tais palavras brotaram, lá atrás, de um sentimento de fazer parte dos haqqatons da sociedade, os que se sentem como peixes fora d’água, os excluídos. O Eterno-que-não-sei-como-se-chama-nem-como-é tem um jeito especial de fazer com que todos eles caibam nalgum propósito maior. Parece que é assim!

Moisés fugiu da justiça; o Eterno-que-não-sei-como-se-chama-nem-como-é fez bom uso disso. Jonas fugiu de Nínive; o Eterno... fez bom uso disso. Raabe dirigia um bordel, Sansão correu para os braços da mulher errada, Jacó correu em círculos, Elias correu para as montanhas, Sara perdeu a esperança, Ló andou com a multidão errada... O Eterno... (bem, você já sabe o resto).

E Davi?

O Eterno-que-não-sei-como-se-chama-nem-como-é viu um adolescente em Belém, no meio do mato, entre o tédio e o anonimato, e, com a voz que ninguém sabe exprimir e um ouvido para vozes, chamou: Davi! Entre. Alguém quer vê-lo. Olhos humanos (retina, córnea, humor vítreo, íris, pupila, cristalino...) viram um adolescente magricelo entrar na casa de Jesse, cheirando a ovelha, com a urgência urgentíssima de um banho, como se dizia em Minas, geral. “Javé disse: Levante-se e unja o rapaz. Porque é esse.” (1Sm 16,12).

Sem derrapar nas pieguices do missal Goffiné, o que foi que D’us viu ali? Terá sido o que ninguém vê? E o que é isso que ninguém vê? Dizer que D’us viu um coração que o buscava é forçar a amizade. Nessa altura – e não sei se isso vai mudar muito na história dele – Davi não tinha nem sustança nem aparelhamento mental para esboçar qualquer forma de atitude mística que esbarrasse em qualquer busca pelo Sublime. Ara, ara, ara! Vem cá! Davi era só um moleque haqqaton. Há certas leituras da Bíblia que transformam personagens comuns em heróis míticos, como foram os da Grécia clássica. Menos. Ta!

Aquilo ali era tudo gente e igual a todo mundo. Davi, os sete irmãos preteridos, Jesse, Samuel e, por que não, o paranóico do Saul. Tudo gente! E gente é um trem que cabe entre a máquina, que nunca deixa de responder ao toque, e o animal pet, que nunca, jamais frustra o dono. Gente, geralmente, não responde, frustra, desanima, faz qualquer um passar a mão na testa e exclamar aos Céus: Mas onde é que eu tava com a cabeça! Quem prefere as máquinas, jamais ficará ao léu. Quem escolhe os bichos, jamais clamará ao Céu. Mas, vem cá: não seriam essas duas formas estilizadas e não menos sofridas da mesma antiga solidão?

Não se assuste se as cores desse quadro fiquem humanas demais. Elas são assim mesmo. Foram feitas assim, e foram feitas para serem assim.

Durante os primeiros mil anos de cristianismo, numa era que se chamou Patrística, porque foi dominada pelo pensamento dos Padres da Igreja, houve a tentativa (quase insana) de colorir tudo o que tinha vindo antes com as cores do cristianismo. No desenrolar da História aconteceu a mesma coisa com os vitoriosos: todo partido ou revolução fizeram o mesmo. A História foi escrita pelo sobrevivente. A fim de elevar os personagens da Bíblia Hebraica à condição de merecedores do status de predecessores do Messias, eles passaram por uma clínica de estética: foram embelezados, purificados, idealizados. Demãos e mais demãos de pintura foram dadas sobre o quadro original para transformá-lo numa obra aceitável ao olhar do censor. Pena que se perdeu o quadro original! Foi pelo ralo a beleza que nele havia.

A vinheta da biografia de Davi é esta: “O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Sm 16,7).

E o coração que o Senhor vê, subentenda-se, não é coração segundo os moldes deste ou daquele pensamento acomodatício, conformista, procustiano. Não. O que o Senhor mais vê, mais entende e reconhece de si mesmo no coração do homem é a sua rebeldia. “Sua”, do homem ou de D’us? Não sei. O pronome está aí para ficar assim. Só o que sei é que enquanto o homem for rebelde a tudo o que esperarem dele, enquanto ele não couber, simplesmente, em moldes pré-fabricados, enquanto ele não aceitar, sem mais, que lhe digam do quê ele deve gostar ou não gostar, engolir ou vomitar, enquanto houver dessa rebeldia no coração humano, será aí, então, nesse ponto, que o Criador se reconhecerá na obra criada. Nossa rebeldia é a assinatura de D’us.

Davi que o diga!

Essa era a vinheta.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

DAVIII... IH! – 5

“Conheço o filho de Jessé de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)



Samuel chega. Alvoroço geral. “Quando chegou a Belém, os anciãos da cidade foram ansiosos ao seu encontro, e perguntaram: Você está vindo em missão de paz? Samuel respondeu: Sim. Eu vim para oferecer um sacrifício a Javé." (1Sm 16,4-5) Lembra? Ele tinha ido ali apenas para oferecer um novilho a Javé! E o medo de Saul? Saul não era brinquedo, não, gente! O cara era um psicopata perigoso.

Então, como quem não quer nada, Samuel pergunta pelos filhos de Jessé. Eles vieram e se apresentaram diante de Samuel. A cena é esplêndida e digna de ser lida no texto original.

“Samuel purificou Jessé e seus filhos e os convidou para o sacrifício. Quando chegou, Samuel viu Eliab e pensou: Certamente é esse que Javé quer ungir! Javé, porém, disse a Samuel: Não se impressione com a aparência ou estatura dele. Não é esse que eu quero, porque Deus não vê como o homem, porque o homem olha as aparências, e Javé olha o coração. Jessé chamou Abinadab e o apresentou a Samuel. E Samuel disse: Também não foi esse que Javé escolheu. Jessé apresentou Sama, mas Samuel disse: Também não foi esse que Javé escolheu. Jessé apresentou a Samuel sete dos seus filhos. E Samuel respondeu: Não foi nenhum desses que Javé escolheu. Então Samuel perguntou a Jessé: Estão aqui todos os seus filhos? Jessé respondeu: Falta o menor. Ele está tomando conta do rebanho. Então Samuel disse a Jessé: Mande buscá-lo, porque não nos sentaremos à mesa enquanto ele não chegar. Jessé mandou chamá-lo e o fez entrar: era ruivo, seus olhos eram belos, e tinha boa aparência. E Javé disse: Levante-se e unja o rapaz. Porque é esse.” (1Sm 16, 5-12).


Pensa bem! A cena não parece uma exibição de cachorros? Jessé exibe seus filhos um de cada vez, igualzinho cachorro na coleira. Samuel examina-os de vários ângulos, ponto por ponto, mais de uma vez, para dar-lhes a nota máxima: a cor do pelo, o tamanho das orelhas, do focinho e da cauda. Mas, em cada vez, D’us diz: Hã... hã... Não é esse, não!

Eliabe, o filho mais velho, deveria ser a escolha lógica. Você pode imaginá-lo como o Casanova da vila: cabelos ondulados, maxilar saudável, dentição perfeita. É o príncipe William da corte de Jesse. Usa uma calça jeans apertada e tem um sorriso perfeito. Achei!, pensa Samuel.

Achou nada!, diz D’us. D’us não gosta das escolhas óbvias.

Abinadabe, o segundo irmão, entra como o segundo concorrente: o irmão do príncipe William. Mas melhorado, melhorado! Você podia jurar que quem havia acabado de entrar era um modelo da moda masculina. Terno italiano. Sapatos de couro de crocodilo. Cabelos negros, alisados para trás com gel. Quer um rei estiloso? Acabou de encontrar. Abinadabe tem esse perfil. E-ainda-fala-com-jeito-de-paulistano-mêu!

D’us não está interessado em estilo.

Samuel pede para que entre o terceiro irmão: Samá. Ele é estudioso, aplicado, óculos de grau. Lucraria bastante com um transplante de carisma, mas tem massa cinzenta sobrando. É formado na Federal de Israel e está de olho em um programa de pós-graduação no Egito. Jessé sussurra para Samuel: Foi o orador oficial da Escola de Belém.

Samuel fica impressionado, mas D’us, não. E o faz lembrar: “O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Sm 16,7). “Homo enim videt ea, quae parent, Dominus autem intuetur cor.”
Caramba! Esse trem ficou danado de bonito em latim!

Sete filhos passam. Sete filhos fracassam. O desfile pára. Samuel conta os irmãos: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete.
- Jessé, você não tem oito filhos?

Uma pergunta semelhante faria a madrasta da Cinderela contorcer-se. Jessé, provavelmente, também, em cólicas intestinais.
- É. Ainda tenho o caçula, mas ele está cuidando dos animais.
(Nessa, Papai já teria pedido o Atroveran.)

O termo hebraico para “caçula” é haqqaton (pronuncia-se “rracatón”) e indica mais do que idade: sugere posição. O haqqaton não era só o irmão caçula: era o irmãozinho – o tampinha, o hobbit, o bebê. Cabia ao haqqaton da família cuidar das ovelhas. Era como se os mais velhos dissessem para colocar o menino num lugar onde ele causasse o menor número possível de problemas. Deixe-o com cabeças cheias de lã e céu aberto.

E é ali que encontramos Davi, no meio do pasto com o rebanho.

As Escrituras Hebraicas irão dedicar 66 capítulos à sua história. Nas duas Alianças, ele perde em número de referências somente para Jesus. O Segundo Testamento menciona seu nome 59 vezes. Ele estabelecerá e habitará a cidade mais famosa do mundo, Jerusalém. Futuramente, em algum lugar da História, o Unigênito de D’us será chamado Filho de Davi. Os maiores salmos fluirão de sua pena e de sua harpa. Irão chamá-lo rei, guerreiro, menestrel, amante poderoso e matador de gigantes. “O cara!”

Mas, por enquanto, ele sequer está incluído na reunião familiar. É apenas uma criança esquecida e descredenciada, realizando uma tarefa doméstica, sem banho, cheirando a pelo de carneiro, na zona rural de uma vila que não passa de um ponto no mapa.

O que levou D’us a escolhê-lo? É o queremos saber. É o que realmente queremos saber.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A CURVA DA VIDA

A Suely da Vila Braz é a ilustre melhor competência para analisar os enterros que acontecem por lá. Diga-se, bem e logo, que na Vila Braz o ponto alto da hierarquia de eventos sociais é, de longe, o enterro. Nada bate um enterro! Nada se iguala a terminar bem num bom e caprichado funeral!

Pois bem, a Suely avaliava o defunto pela virada na curva em frente ao Bar do Dito Vieira.
- Olha lá! Quando o defunto vira devagarzinho e sobe a derradeira rampa com o sino repicando dobradinho... é rico!
Se o finado fosse pobre – Jesus, Maria, José! – subia rápido, num tropel só, e em três badaladas o sino dava o recado.

Isso me fez pensar na vida, essa Maria-Fumaça lenta que passa depressa e quando menos se vê, passou. O que virá depois?

Mas o problema não é o que virá depois. O problema é o que vem antes.

Para depois da morte, deixei a questão resolvida anos atrás, quando rezei e pedi, enfático:
- Senhor, depois da morte: Surpreenda-me! Competência pra isso não lhe falta!

O problema não é o “depois”; é o que vem antes da morte. A grande preocupação de metade do mundo se resume em escarafunchar se há vida após a morte.

Alguém me esclareça, por favor, se isso já existe antes?

domingo, 5 de fevereiro de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 18

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Ninguém conseguiu entender melhor as questões que se ligam à perda absoluta que chamamos morte do que Gabriel Fauré, em seu Requiem. Tudo ali é densidade e leveza. Todo participa da vontade da vida e da voracidade da morte. Tudo encanta e apazigua. Desorienta e traz de volta à luz.

Foi assim que encontramos as duas irmãs: desorientadas no seu amor e na sua dor. Esperançosas em sua vontade de continuar insistindo na esperança. E é assim que vamos deixá-las, até que Lázaro nos lance luz nova na situação, e nos possa esclarecer o quê afinal aconteceu àquela insólita família de Betânia, tão encontrada que era impossível pensar no quanto estava perdida.

Da morte, Lázaro lançará luzes mais generosas do que suas irmãs, na vida.

É que Lázaro, naquele momento, é o único que não se confunde em seus sentimentos. É o único que não tem angústia. Todos estão confusos, menos ele. Todos angustiados, menos ele. Todos desencontrados, menos ele, que já se encontra perdido para sempre. Sem angústias, claro. Mas para onde nos leva a vida se a angústia que serve de agulha da bússola estiver quebrada. Lázaro dorme, disse Jesus. Lázaro nem tem sentimentos para confundi-lo. Não importa a morte de que ele se encontre morto, é só assim que ele prefere ser encontrado, e é só dessa forma que poderemos marcar encontro com ele.

Lázaro, nesse momento – e ainda que do túmulo – tem coisas a dizer.

Vira-e-mexe, alguma ilusão surge do nada, toma corpo, traveste-se de verdade e todo mundo corre atrás. Vivemos de ilusões. A mais popular e mercadológica ilusão do momento é a da motivação. A ilusão de que tudo pode dar certo, basta querer. E de que há respostas para tudo, basta procurar. E de que a dor, a morte e o luto não existem, basta se enganar. Os campeões de venda de auto-ajuda e os campeões do consumo psico-fármaco estão aí para não deixar a menor dúvida.

Mas será que é assim mesmo? Será que isso funciona, tão mecânica e magicamente, como espalham aos quatro ventos os gurus, nos templos e nos mercados?

Será?

Não é por estar motivados que fazemos escolhas certas. É o contrário, justamente, o contrário. É por termos feito as escolhas certas que ficamos motivados. A falta de motivação não é causa, é conseqüência. Acreditar que é possível ficar motivado com qualquer apetrecho para alcançar qualquer sucesso é de uma ingenuidade maçante. O que eu queria mesmo era escrever imbecilidade, mas achei que ingenuidade ficasse menos agressiva. Acreditar em receitas prontas é apenas mais uma forma de se iludir.

A pergunta, então, veste feito luva: qual teria sido a motivação da qual Lázaro se viu privado ou frustrado, e tanto, e tanto, que se deprimiu e pediu demissão da vida, naquilo em que mais havia apostado? Quais motivações teriam mantido aquele singular grupo familiar coeso, ainda que de forma estranha?

É que aquele pequeno grupo familiar de três irmãos, vivendo para si mesmo, regurgitando-se em si mesmo, retroalimentando-se de suas próprias fantasias, formava uma pequena clausura, trancada e auto-suficiente, dentro da grande comunidade. Onde estão os pais, avós, tios, sobrinhos, primos, cunhados, filhos, maridos e esposa de Marta, Maria e Lázaro?

(Preciso abrir parêntesis para informar a você que no ambiente judaico isso era abominavelmente impensável. Isso, digo, gente solteira: fechada em si mesma, não aberta à possibilidade mínima que se esperava de um judeu coerente que era gerar o Messias esperado. A solteirice era abominável para os judeus. Até Maria, a mãe de Jesus, entoa que D’us havia “olhado para a vergonha da sua serva” – Lc 1,48. Vergonha, no caso, era a esterilidade da vida celibatária. Isso, bem dito, para os judeus. Fecha.)

Mesmo no plano mítico, onde João faz as idéias transitarem, aquela continua sendo uma família exótica, sem ascendentes nem descendentes nem pretendentes. São apenas três irmãos, totalmente devotados a si mesmos. Num amor auto-devorador que, possivelmente, alcance as raias da exclusividade neurótica. Eles amavam tanto a si mesmos, e depois transferiram tanto esse amor para Jesus, que não lhes era possível amar outra coisa na vida. E isso é uma coisa, no mínimo, complicada, para quem quiser vivendo “neste” mundo. (Excluam-se dessas considerações os monges, as crianças, e os loucos, que, de longe, são os mais amados por D’us!)

sábado, 4 de fevereiro de 2012

DAVIII... IH! – 4

“Conheço o filho de Jessé de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


Um novilho segue-o com dificuldade. Belém está à sua frente. A ansiedade surge dentro dele. Fazendeiros no campo notam sua presença. Aqueles que conhecem seu rosto sussurram seu nome. Aqueles que ouvem o seu nome se viram para fitar seu rosto.

“É Samuel?”

O sacerdote escolhido de Deus. O filho de Ana. Seu mentor era Eli. Foi chamado por Deus. Quando os filhos de Eli se tornaram corruptos, Samuel deu um passo à frente. Quando Israel precisou de foco espiritual, Samuel o proveu. Quando Israel quis um rei, Samuel ungiu... um... rei: Saul. Mesmo contra sua vontade. Aliás, totalmente, contra usa vontade.

Agora, é esse nome que leva Samuel a gemer. Saul. O alto Saul. O forte Saul. Os israelitas queriam um rei, por isso temos um rei. Queriam um líder, por isso temos... um... miserável. Samuel olha de um lado para o outro, com medo de que pudesse ter dito em voz alta o que não pretendia senão pensar. E talvez nem isso.

Ninguém o ouve. Ele está seguro... tão seguro quanto se pode estar durante o reinado de um rei que se tornou paranóico. O coração de Saul está ficando mais duro, seus olhos ainda mais perturbados. Ele não é o rei que costuma ser. Aos olhos de Deus, nem rei ele é mais.

Daí, Javé diz para Samuel: “Até quando você irá se entristecer por causa de Saul? Eu o rejeitei como rei de Israel. Encha um chifre com óleo e vá a Belém; eu o enviarei a Jessé. Escolhi um de seus filhos para se tornar rei.” (1Sm 16,1)

E assim Samuel segue o caminho para Belém. Seu ventre remexe, seus pensamentos correm. É perigoso viver sem um líder em momentos explosivos.

Os mil anos AC foram tempos ruins para esse ajuntamento decadente de tribos chamado Israel. Josué e Moisés foram heróis que brilharam na história. Três séculos de inverno espiritual haviam congelado a fé do povo. Um escritor descreveu os dias entre Josué e Samuel com esta sucinta frase: “Naquela época não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo” ( Do Livro dos Juízes 21,25). A corrupção alimentava a divisão. A imoralidade gerava brutalidade. O povo exigiu um rei – mas, em vez de salvar o navio, Saul quase o fez afundar. O primeiro monarca de Israel revelou-se um psicótico, pra evitar dizer, psicopata.

E, então, surgiram os filisteus: cogumelo em madeira podre. Os filisteus eram um povo dado à guerra, sedento de sangue e fonte de gigantes, que monopolizava o ferro e o trabalho dos ferreiros. Eles eram pardos. Os hebreus eram rosados. Os filisteus construíam cidades; os hebreus amontoavam-se em tribos e tendas. Os filisteus faziam armas de ferro; os hebreus lutavam com fundas e flechas grosseiras. Os filisteus gritavam ameaças em carros reluzentes; os israelitas retaliavam com facas e ferramentas usadas em fazendas. Certa vez, numa batalha todo o exército hebreu só tinha duas espadas – uma para Saul e a outra para seu filho Jônatas (1Sm 13,22). Dá pra acreditar nisso!

A corrupção morava do lado de dentro. O perigo vinha de fora. Saul era fraco. A nação, mais fraca ainda. O que Samuel deveria ter feito? Sei lá. Só sei que, ouvindo D’us, ele fez o que ninguém imaginou. Enviou um convite surpresa para todos os que eram de Nenhum Lugar.

E D’us? Para onde enviou Samuel? Foi para Piripiri, no PI? Não. Enviou-o, então, para São Sebastião do Curralinho, em AL? Não, exatamente. Já sei. Deu pra Samuel uma passagem de ônibus para Brazópolis, MG? Bem que poderia ter sido! Tudo bem, ele não fez nada disso. Mas bem que poderia ter feito. A cidade Belém da época de Samuel (se é que aquilo era uma cidade) era parecida com Piripiri, São Sebastião do Curralinho, ou Brazópolis. Uai, será por isso que Brazópolis é a “Cidade Presépio”? Ara.

Belém era um lugar sossegado, esquecido no tempo, que descansava numa montanha no sopé de outras mais altas, a dez quilômetros ao sul de Jerusalém. Belém da Judéia ficava cerca de 600 metros acima do mar. De lá, se viam colinas suaves e verdes que aplainavam pastos desolados e irregulares. Rute conheceu essa aldeia. Jesus teria nascido lá, se a gente não soubesse que ele nasceu, realmente, foi em Nazaré da Galiléia: O Nazareno, Rei dos Judeus. Lembra?

Seja como for, a lenda é mais forte. O “fato” é que, mil anos antes de nascer um bebê numa manjedoura, Samuel entra na vila, puxando um novilho. Sua chegada faz com que os habitantes virem suas cabeças para vê-lo. Profetas não visitam Belém. Ele tinha vindo para castigar alguém ou para se esconder de alguém? Nem uma coisa nem outra – assegura o profeta de ombros caídos. Ele viera para sacrificar o animal para D’us e convida os anciãos, e Jessé e seus filhos, para se juntarem a ele.

Momento de perigo. O bicho ia pegar!

DAVIII... IH! – 3

“Conheço o filho de Jessé de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


Vamos desenrolar o rumo dessa história?

Saul recusa o chamado. Isso é muito comum na jornada do herói. Moisés havia feito a mesma coisa: tentou negociar com Javé. Não é de todo improvável pensar que, inconscientemente, Samuel quisesse um rei fraco, um rei que não conseguisse agregar o povo. Se o rei fosse fraco, estaria justificada a sua oposição à sagração de um rei. No correr da história, vai ficar cada vez mais claro que o que Samuel realmente quer é manter o poder. E ele vai fazer de tudo para dominar Saul.

Olha só! Samuel sempre foi um juiz bom e honesto. O problema, já sabemos, começou na velhice, com a nomeação dos filhos. O erro de Samuel foi não ter se reconhecido nas próprias crias. O fruto cai longe da árvore? Capaz! Samuel, homem bom e justo (como diria o Faustão: o filho da Ana, a inspiradora do Magnificat) não puxou à tona nem trouxe à consciência a sede de poder que havia dentro dele mesmo. Assim como não viu dentro de si, tampouco pode ver fora de si, a mesma sede de poder, reproduzida nos filhos corruptos.

Samuel ficou cego de inconsciência. E começou a criar problemas para Saul. E esses problemas se refletiram no povo.

Se você perguntasse a Samuel: Ô Samuel, por que você está fazendo isso? Com certeza, iria ouvir: Isso... o quê?

Agora, questione. Será que Samuel tinha noção do que estava fazendo? A resposta é: Claro que não! O problema dele foi ele não ter se conscientizado da caixa-preta do inconsciente. O material não consciente dominou Samuel. Domina a gente.

Joseph Campbell tem uma definição ótima para demônio. “Minha definição de demônio – disse ele – é a de um anjo que não foi reconhecido. É um poder seu, para o qual você negou expressão, e que, portanto, você reprime. Como toda energia reprimida, também essa, começa a crescer, a tornar-se perigosa e a dominar você.”

A gente se engana se pensa que tem o controle de tudo. Samuel também se enganou. Nunca será possível ter consciência do inconsciente. Se Samuel estivesse consciente da sede de poder, não faria nem o que fez nem como fez: Samuel fez Saul de gato e sapato!

A sagração de Saul foi uma palhaçada. Primeiro, Samuel tomou fôlego e sagrou. “Então Samuel pegou a vasilha de óleo, e o derramou sobre a cabeça de Saul. Depois o beijou e disse: Javé ungiu você para ser chefe sobre Israel, o povo dele. Você governará o povo e o libertará dos inimigos vizinhos.” (1Sm 10,1)

Em seguida, Samuel se esquiva. “Em Masfa, Samuel convocou o povo em torno e Javé, e falou aos israelitas: Assim diz Javé, o Deus de Israel: Eu tirei Israel do Egito, e libertei vocês do poder do Egito e do poder de todos os reinos que os oprimiam. Contudo, hoje vocês rejeitaram o Deus de vocês, que os salvou de todos os males e angústias. Vocês disseram: Não interessa, estabeleça um rei para nós! Agora, portanto, compareçam diante de Javé por tribos e clãs. (1Sm 10,17-19) Uai, que trem esquisito, Saul já não havia sido sagrado?

E aí, em seguida, e de novo, como se nao tivesse feiro antes, Samuel confirma. “Samuel convocou todas as tribos de Israel, e foi sorteada a tribo de Benjamim. Convocou então a tribo de Benjamim por clãs, e o clã de Metri foi sorteado. E Saul, filho de Cis, foi apontado no sorteio. Procuraram Saul, mas não o encontraram. Consultaram, então, a Javé: Saul está aqui? Javé respondeu: Ele está escondido entre as bagagens. Correram para buscá-lo, e ele apareceu no meio do povo: os outros lhe chegavam apenas até os ombros. Samuel disse a todo o povo: Estão vendo quem Javé escolheu? Não há, entre todo o povo, ninguém igual a ele. E todo o povo começou a aclamar, gritando: Viva o rei!

Samuel explicou ao povo o direito do rei... Os vadios, porém, comentaram: Como é que esse sujeito nos poderá salvar? E o desprezaram, e não lhe deram presentes. E Saul se calava.” (1Sm 10, 20-26)

Mas esse Samuel ta me parecendo mais falso do que nota de 8! Primeiro, sagrou Saul. Depois, criou caso. Por fim, se apresentou como a solução do problema. E já que Saul estava escondido entre as bagagens, seja o que D’us quiser! Tudo o que Samuel esperava era o dia em que ele pudesse reunir o povo e dizer: Eu não disse que isso não ia dar certo! Tsss!

É claro que a escolha de Saul não foi aceita por todo mundo. Ele era de uma tribo pequena e não havia mostrado nenhuma capacidade de liderança. Estava escondido entre as mochilas! No que é que pode dar isso? Nem os vadios o aceitam. Na verdade, nem Saul aceitou. Custou pra cair a ficha. Se você quiser pode ler 1Samuel 11, 1-13. Ta tudo lá!

Mas não é Saul que nos interessa. Quem nos interessa é Samuel. Há pessoas que crescem com o cargo. Saul foi uma delas. Saul cresceu. Para o desgosto de Samuel. Não é bom esquecer de que Samuel já havia puxado as palmas. Em todo o tempo de Saul, Samuel tenta jogadas teatrais para se manter no poder.

Isso é importantíssimo para que a gente possa voltar à história, encontrar Samuel se borrando de medo do paranóico Saul na estrada de Belém, indo sagrar rei um sujeito que nunca viu mais magro, de uma família que nunca viu mais gorda.

Voltemos agora à estrada estreita de Belém, perto demais de Jerusalém, encostada no poder, à sombra do perigo.