sábado, 3 de março de 2012

DAVIII... IH! – 8

“Conheço o filho de Jessé, de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


Davi foge.

“O que foi que eu fiz? Qual foi o crime? Qual foi o pecado que cometi contra seu pai para que ele queira tirar a minha vida?” (1Sm 20,1).

Davi pergunta as mesmas coisas para si mesmo. Ele é um homem procurado na corte de Saul. Seu rosto jovem está estampado nos cartazes em agências de correio. Seu nome aparece no topo da lista de pessoas que Saul deseja matar. Ele foge, olhando por sobre o ombro, dormindo com um olho aberto e comendo com a cadeira próxima à porta do restaurante.

Que série obscura de eventos! Nem bem fazia dois ou três anos de quando ele ainda estava apascentando rebanhos em Belém! Naquela época, bom mesmo era ver as ovelhas dormindo, bom mesmo era dormir ao relento nas noites quentes, bom mesmo era contar estrelas, e nuvens, e ver a rara chuva chegando. Então, apareceu Samuel, um profeta idoso com sua barba prateada e um chifre com óleo. Assim como o óleo, um novo espírito cobriu Davi.

Davi abandonou sua dolce vita, deixou de fazer serenatas para ovelhas e passou a fazê-las para Saul. De repente, o tampinha ignorado da cria de Jessé estava na boca do povo: era rei Artur para a Camelot de Israel, belo e humilde. Os inimigos temiam-no. Jônatas amava-o. Mical casou-se com ele. Saul odiava-o.

Após o sexto atentado contra sua vida, Davi entende a razão. Saul não gosta de mim. Tendo a própria cabeça por recompensa e um bando armado em seu rastro, ele beija Mical, dá adeus à vida na corte e foge.

Mas para onde ele pode ir? Para Belém e arriscar a vida de sua família? Para o território do inimigo e arriscar a própria vida? Isso se torna uma opção, mas só mais tarde. Por enquanto, ele escolhe outro esconderijo. “Davi foi falar com o sacerdote Aimeleque, em Nobe” (1Sm 21,1).

Estudiosos indicam uma colina a cerca de um quilômetro e meio ao nordeste de Jerusalém como o provável lugar da cidade antiga de Nobe. Ali, Aimeleque, bisneto de Eli, dirigia, digamos, um mosteiro. Oitenta e cinco sacerdotes serviam em Nobe, o que lhe rendeu a alcunha de “a cidade dos sacerdotes” (1Sm 22,19). Davi vai correndo para a cidadezinha, procurando abrigo para escapar de seus inimigos. Sua chegada provoca um medo compreensível em Aimeleque. Ele “tremia de medo quando se encontrou com Davi” (1Sm 21,1). O que leva um guerreiro a Nobe? O que o genro do rei deseja?

Davi garante sua segurança mentindo para o sacerdote:

O rei me encarregou de uma missão e me disse: “Ninguém deve saber coisa alguma sobre sua missão e sobre as suas instruções” Agora, então, o que você pode me oferecer? Dê-me cinco pães ou o que você tiver (1Sm 21,2).

Desesperado, Davi recorre à mentira. Isso, agora, nos surpreende. Mais tarde, a mentira se tornará sua irmã. Até aqui, contudo, Davi fora brilhante, impecável, puro: Branca de Neve num elenco de bruxas com verrugas no nariz. Davi permaneceu calmo quando seus irmãos o repreenderam, permaneceu forte quando Golias bramiu, manteve a calma quando Saul perdeu a dele.

Mas agora ele mente como um chefe mafioso no confessionário. Descaradamente. Convincentemente. Saul não o havia encarregado de missão alguma. Ele não está cumprindo um serviço real secreto. Ele é um fugitivo. Injustamente, é claro. Mas, é um fugitivo. E ele mente sobre isso.

O sacerdote não interroga Davi. Ele não tem razão para duvidar do fujão. Ele simplesmente não tem nenhum recurso para ajudá-lo. O sacerdote tem pão, não pão comum, mas pão consagrado. O pão da Presença. Todos os sábados, o sacerdote colocava doze pães de trigo sobre a mesa como uma oferta a Deus. Após uma semana, e somente uma semana depois, os sacerdotes, e somente os sacerdotes, podiam comer o pão. (Engraçado pensar que alguém quisesse o pão de uma semana!) Não obstante, as opções e o colarinho clerical de Aimeleque encolhem.

Davi não é sacerdote. E o pão acabara de ser colocado sobre o altar. O que Aimeleque deveria fazer? Distribuir o pão e transgredir a lei? Guardar o pão e ignorar a fome de Davi? O sacerdote procura uma escapatória: “Não tenho pão comum; somente pão consagrado; se os saldados não tiveram relações com mulheres recentemente, podem comê-lo” (1Sm 21,4). Curioso!

Sei lá o que passou pela cabeça de Aimeleque! Se você quiser, pode culpar o aroma de pão recém-assado, mas Davi responde com a segunda mentira e uma escorregadela teológica. Seus homens não puseram os olhos, muito menos as mãos, em uma “donzela”. E o pão consagrado? Ele põe o braço no ombro do sacerdote, segue com ele em direção ao altar e sugere: Sabe, companheiro Aimeleque, “o pão terá o efeito de sempre, ainda que tenha sido santificado na vasilha” (1Sm 21,5). Mesmo os pães consagrados, raciocina Davi, ainda são assados no forno e levam farinha. Pão é pão, e fome é fome, certo?

Funciona. O sacerdote dá-lhe do pão consagrado, “visto que não havia outro além do pão de Presença, que era retirado de diante de Iahweh e substituído por pão quente no dia em que era tirado” (1Sm 21,6).

Morto de fome, Davi devora o pão. É provável que Aimeleque também tenha feito o mesmo. Ele pergunta-se se fez a coisa certa. Ele inverteu a lei? Violou a lei? Obedeceu a uma lei superior? O sacerdote concluiu que o apelo maior era barriga vazia. Em vez de pôr os pingos nos “is” do código do Altíssimo, ele supriu a necessidade de um filho do Altíssimo. Ta bom.

E Davi? Como Davi retribui a compaixão de Aimeleque? Com outra mentira! “Você tem uma lança ou uma espada aqui? Não trouxe a minha espada nem qualquer outra arma, pois o rei exigiu urgência” (1Sm 21,8). Não falei? Virou padrão!

Davi está vacilando. Não fazia muito tempo e a funda do pastor era tudo de que ele precisava. Agora aquele que recusou a armadura e espada de Saul pede uma arma ao sacerdote. O que aconteceu com nosso herói?

Simples. Ele perdeu o foco. Golias está no telão da imaginação de Davi. Conseqüentemente, baixou o desespero. O desespero cria mentiras, incita o medo, esconde a verdade. Não há onde se esconder. Não há o que comer. Aimeleque deu pão, Davi quer uma espada. A única arma que há no santuário é uma relíquia, a espada de Golias. Ó só! Justamente, a espada que Davi usou para decapitar a cabeça do gigante. Os sacerdotes estão expondo a espada como a Galeria da Academia de Florença, na Itália, expõe a estátua de Davi, de Michelangelo.

Perfeita!, diz Davi. E aquele que entra no santuário com fome e desarmado sai com a barriga cheia, a alma vazia e a espada de um gigante.

As coisas se repetem tanto! A despeito do que façamos, as coisas se repetem. Tanto!

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