sábado, 31 de março de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 23

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Ainda que Marta tente interceptá-lo, nada consegue abalar a sua disposição em resgatar da morte alguém que ainda vive. Ainda que ela insista que “já cheira mal”, que decida que não há mais lugar para a esperança, que opte por uma eutanásia simbólica, ele segue seguro. Quem já mostrou a direção da vida a tantos, não vai se intimidar com inibições neuróticas, seja lá de quem for, e que prefira pulsar a favor da morte.

Marta é presença constante no vai-e-vem da vida.

Penso nela, toda vez que me deparo com uma família cujo filho enveredou pelas adições ou qualquer outro caminho que desemboque no corredor da morte. “Ele já cheira mal.” Não há mais o que fazer! Ou à beira do precipício de um paciente terminal, onde já foi decidido não haver mais espaço para a esperança, e que resta cuidar de quem resta inconsolável. “Ele já cheira mal.” Não há mais o que fazer! É difícil o momento de conceder-se a prerrogativa de decidir pelo outro, quando é que ele não pode mais acalentar nenhuma esperança. O filho drogado que já quebrou ou vendeu tudo é o mesmo que também já voltou, muitas vezes, pedindo ajuda e prometendo não recair mais. É o mesmo que, desta vez, garante que “é pra valer”! Quando ninguém acredita mais, quando lhe viram as costas, e ele abandona até os cuidados básicos da alimentação e do banho, literalmente, “ele já cheira mal.” Como continuar apostando nele, quando nenhuma ficha sobrou?

Olhando de perto a situação, não é que Marta tem razão?

Mas é uma razão que não opera nada, que não transforma realidade alguma. O filho drogado não brotou drogado da barriga da mãe, como um cogumelo venenoso. Querendo ou não, desta ou daquela forma, ele é fruto da neurose familiar. Pode ser que tenha experimentado a droga apenas por curiosidade. Muita gente já foi nessa e, nem por isso, acabou dependente. A situação não faz o ladrão – ela revela o ladrão. Para quem não é ladrão, situação alguma o torna. Não é a curiosidade que gera a dependência. A dependência é anterior à curiosidade. Existem dependências que são alimentadas, anos a fio, no cotidiano das neuroses familiares.

E mais. Uma família não é um sodalício. Numa família, todos estão envolvidos com todos, simultaneamente. Quando brota um cogumelo num lugar assim, ou a responsabilidade é de todos ou não pertence a ninguém.

Difícil é convencer as famílias de que elas é que estão doentes – por inteiro – e que o filho doente é apenas um tumor que vazou. Os grupos familiares são regidos por contratos tácitos, acordos silenciosos: todos sabem e ninguém sabe, ao mesmo tempo. Todos falam, mas ninguém disse nada. Em certas famílias, determinadas palavras não podem ser ditas. Passam-se anos sem que se discuta o porquê dessas palavras não poderem ser faladas. O silêncio, contudo, continua e é “ouvido” por todos, a todo instante. A família não é o lugar mais conveniente de se dizer a verdade. No entanto, onde mais?

Difícil será convencer Marta de que é dela mesma que ela fala, quando determina que não há mais nada o que fazer, que a pedra já fora afastada outras vezes, e que retirá-la, outra vez, só irá revelar o que ninguém mais suporta ver. O que a pedra esconde, Marta? Você sabe? Retira-la, denuncia o quê?

No fim, a pedra foi retirada e Lázaro saiu do túmulo e foi Maria quem entendeu. A cena do perfume, no capítulo seguinte, vai expressar seu entendimento. Quanto à Marta, o texto, solenemente, silencia.

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