sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

CAMA DE PROCUSTO

Leia com atenção o trecho abaixo. Depois eu digo de onde eu o tirei e aonde quero chegar.

“- Mentira! Vou te mostrar os livros; segundo eles, todos os crimes se devem ao ambiente insalubre, e nada mais. Frase magnífica! De onde se deduz que, se a sociedade estivesse normalmente constituída, então acabariam todos os crimes, visto que já não haveria contra o que protestar e todos passariam instantaneamente a ser inocentes.

E a natureza? Não a levam em consideração. Puseram-na no olho da rua. Não toleram a natureza. Para eles não é a natureza que, desenvolvendo-se de um modo histórico, vivo, até o fim, acabará por se transformar ela mesma numa sociedade normal, mas, pelo contrário, será o sistema social que, brotando de alguma cabeça matemática, procederá em seguida a estruturar toda a humanidade e, num abrir e fechar de olhos, a tornará justa e inocente, mais depressa do que processo vivo, sem seguir nenhum caminho histórico e natural. Por isso, eles sentem instintivamente aversão pela história... Por isso, também, eles não amam o processo vital da vida, não querem nada com a alma viva. A alma viva da vida tem exigências, a alma viva não obedece mecanicamente, a alma viva é suspeita, a alma viva é retrógada. E eles não podem construir nada com alma de borracha... que não será viva nem terá vontade, será uma escrava e não se revoltará...

É simplesmente impossível saltar com a lógica por cima da natureza. A lógica pressupõe três casos, mas há milhões deles. Pois façam tábua rasa desses milhões e reduzam tudo ao simples problema do conforto! Essa será a solução mais fácil do enigma. Ela é de uma clareza sedutora e, sobretudo, evita o incômodo de pensar. Porque o essencial é isso: não ter que pensar. Todos os mistérios da vida podem ser compreendidos em duas folhas de papel impresso. O meio significa muito na criminalidade, isso eu afirmo. Mas um quarentão desonra uma menina de dez anos. Foi o meio que o induziu a isso?”


Parece coisa nova. Mas não é, não, viu! Ficha completa: Dostoiévski, em “Crime e Castigo”, de 1866. Parece coisa nova, mas não é.

Naquela época, discutia-se muito a fundamentação dos delitos e, afinal, das motivações da alma humana. Como as teses socialistas estavam em voga, tudo se reduzia ao “meio”. Mas se um quarentão desonra uma menina de dez anos, foi o meio que o induziu a isso? – pergunta o autor através do personagem.

Lá, o meio. Aqui, o gene. Lá, o lado (de fora) de fora. Aqui, o lado (de fora) de dentro. Mas sempre o lado de fora.

Curiosamente, eu estava lendo justo essa página de Dostoiévski, enquanto a Mônica Waldvogel entrevistava um par psiquiatra-psicóloga que não deixava em nada a desejar daquilo que André Green chamou de “abordagem veterinária” das questões humanas. Coisa que, aliás, os veterinários abominarão se ouvirem. Porque, eles, ao que tudo indica, e ao contrário, humanizaram o atendimento à sua distinta clientela. Já, em outros campos da atividade humana, infelizmente, o atendimento foi robotizado.

Sério!

Acabei de ligar para uma igreja afim de “marcar missa”. Fui atendido por uma máquina que informou os horários e sutilmente me informou que eu estava fora do “horário comercial”. “Para pagar o dízimo, tecle 1; para saber o horário de atendimento, tecle 2...” Caramba!, pensei. A coisa virou comércio, mesmo! Daqui a pouco, vai virar indústria. “Para encomendar água benta, tecle 1...” Não tardará, e ouvirei: “Em caso de angústia, não se suicide: espere até terça-feira, porque na segunda estamos de folga!”

Sério!

Dia desses, custei a agendar o médico. Fui... atendido por um programa de computador. Ele, mesmo, não olhou para mim. Sabia tudo do programa e o programa sabia tudo de mim. Ele, mesmo, o fulano humano, apenas resmungava quando a máquina não respondia. Na outra encarnação – jurei! – voltar bicho, de preferência, canino da Dra. Jackline ou felino da Dra. Eliana. “Vem cá com a mamãe!” Não é muito melhor ouvir isso do que ser atendido por uma máquina e tratado por outra?

“A alma viva da vida tem exigências, a alma viva não obedece mecanicamente, a alma viva é suspeita, a alma viva é retrógada. E eles não podem construir nada com alma de borracha...”

Dostoiévski! Século XIX!

Ta certo. Evoluímos bastante quando instalamos um computador com multi-qualquer-coisa em cada quarto. E mais um punhado de engenhocas multi-facilitadoras-não-se-sabe-bem-pra-quê acopladas a todos os botões multi-facilitadores... (Pula!) Evoluímos quando criamos leis de proteção aos animais. Evoluímos quando já podemos encher a geladeira com mais coisas do que antes. Evoluímos. Evoluímos.

E ainda fazemos guerra. Mentimos. Enganamos. Espoliamos... A lista não tem fim.

Mas, sobretudo, será mesmo que evoluímos ao perder de vista a sofisticação da alma humana ao coisificar os sentimentos? Certas abordagens fazem-me sentir uma ameba impulsionada por estímulos eletros-químico. Vou acabar tendo inveja do cachorro do vizinho!

A maioria conhece Procusto. Segundo uma lenda grega, ele era um bandido que oferecia hospitalidade aos viajantes perdidos. Ele os deitava numa cama de ferro e, quem fosse mais longo do que a cama, ele cortava o que sobrava; quem fosse mais curto, ele esticava até ficarem do tamanho da cama. Procusto era um normalizador. Sempre senti vontade de fazer dele o patrono daqueles que aplicam testes, contam com algum tipo de reeducação ou reduzem o insaciável desejo humano a um corriqueiro e banal “sonho de consumo” normativo.

Não seria a tal razão da vida algo a ser situado num horizonte mais além? Não será a razão de uma pessoa descobrir-se para tornar-se – não conforme a norma, a moda, a etiqueta ou a bula – simplesmente, aquilo que é?

RECUSE-SE

No ano que vem,
recuse-se a cair.
Se não puder se recusar a cair,
recuse-se a ficar no chão.
Se não puder se recusar a ficar no chão,
eleve seu coração
e,
como quem tem fome,
peça que o encham.
E ele será cheio.
Podem empurrá-lo para baixo.
Podem impedi-lo de se levantar.
Mas ninguém poderá impedi-lo
de elevar seu coração.
Só você.
É no meio da aflição
que tantas coisas ficam claras.
E se alguém diz que nada de bom
resultou disso
é que ainda não está escutando.

Não é 2012 que será diferente.
É a gente.

OFERTÓRIO

Se nada tens a oferecer ao Senhor,
apresenta tuas dores, tua fadiga apenas.
Quanto custou a tanta gente,
este pedaço de pão colocado na patena!

Se tens as mãos vazias e a boca amarga e seca,
oferece o coração machucado, meu amigo.
Para que o vinho espumasse nesse cálice
foi preciso - não foi? - pisar a uva e moer o grão de trigo.

Se nada tens em ti mais que amargura e pecado,
o cansaço de vier e a angústia que incendeia,
que tuas mãos elevem para o céu estas míseras coisas,
pois o Amor, de antemão, as acolheu na ceia!

E se nem forças tens para ofertar e implorar,
se em ti tudo é abandono e solidão tremenda,
silenciosamente aceita - e é só - que um Outro,
te receba, vele por ti e sejam um só dom
o ofertante e a oferenda.

(Daniel Rops - 1901-1965)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 16

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Não deixa de instigar um calafrio de sentido o fato de que, justamente, quando me propus a acompanhar Lázaro, em sua ida e volta ao mundo do sem-sentido, fosse também eu enredado nos mesmos sentimentos e no mesmo vazio de significado de Marta e Maria.

“Se o Senhor estivesse aqui, meu irmão não teria morrido”.

Vida esquisita, essa, sô! Há mais estranhezas entre o céu e a terra do que suponha...




Pois é. Depois da conversa entrecortada com Jesus, Marta volta para casa, vai ao encontro de Maria e lhe diz em segredo: “O Mestre está aí, e chama você”.

“Tendo dito isso, foi chamar sua irmã Maria. Falou com ela em voz baixa: O Mestre está aí, e chama você. Quando Maria ouviu isso, levantou-se depressa e foi ao encontro de Jesus” (Jo 11,28-29).

A palavra grega, traduzida por “em segredo” (em algumas versões) ou “em voz baixa” (em outras), é “efónesen”, que significa “disse sem dizer”. O versículo 28 ficaria assim: “Tendo dito isso, foi chamar sua irmã Maria e lhe disse sem dizer: O Mestre está aí, e chama você.”

Há um trocadilho interessante entre o verbo usado para Marta (efónesen) e o verbo usado para o Mestre (fonei). Observe o prefixo “e”. Enquanto Marta diz sem dizer, o Mestre diz, dizendo. O Mestre chama.

É o começo das mutações em Maria. Mas é também o começo das mutações em Marta. Chega a hora na vida em que todos precisam mudar. Um antigo formador dizia que “água parada junta bicho!”

Ter ido ao encontro de Maria, indicar a ela a direção do Mestre – que a chama, realmente, chamando – significou para Marta não guardá-lo exclusivamente para si mesma, não retê-lo, não privá-lo dos outros e nem os outros dele. O Mestre não pertencia nem a ela nem a Maria nem a Lázaro. O Mestre, simplesmente, “não pertencia”. Marta tinha dono. (Quem não tem!) Por isso, dizia coisas sem dizer. Jesus não tinha dono. Quando dizia, dizia. Se chamava, queria. Ele sabia o que queria, sabia querer e podia querer.

Lucas avisou que Maria havia escolhido a melhor parte (Lc 10,42). Se essa Maria de João for a mesma de Lucas, pelo fato de ter escolhido a melhor parte, é provável que já conhecesse esse viés do Mestre. Por isso, pôde ficar onde deveria estar para ocupar o lugar que era só dela e de nenhum outro. Se ela, naquele momento, se encontrava imobilizada pela dor, e se esse era o seu lugar, era ali mesmo que ela deveria ficar, para sentir o que estava sentindo, permitir acontecer o que estava acontecendo, passar por aquele processo e elaborar a frustração. O Mestre chegaria. Não era a hora de sair correndo, desatinada, gritando uma dor que ainda não se havia permitido sentir, por inteiro. O momento era de luto. E o Mestre chegaria. O que Maria fez, nesse momento, era tudo o que precisava ser feito, nada menos, nada mais: passar pelo luto. Esperar pela chegada do Mestre. O Mestre chegaria.

Maria não se faz de vítima. O sofrimento abate? Ela verga. A dor verga? Ela não se quebra. Mas não fica contando com o consolo dos judeus que a foram “consolar”, porque sabe que não é bem consolo o que eles se propiciam a oferecer. Maria se permite sofrer. Ficamos com a falsa impressão dela se ter trancado em sua via dolorosa. Mas não é verdade! Maria só se fecha em si para alcançar a si, sentir até onde vai o sentimento e aprender a se conhecer, lá, onde geralmente todos se escondem em escapismos e evasões. Iludir, no caso, é eludir.

“O Mestre está aí e te chama”.

Só a menção do Mestre, mesmo dita sem dizer, a tira do engessamento da dor. Então, Maria corre e se prostra. Prostração é adoração – proschynesis – o grego não deixa dúvida. Mas o mesmo verbo se presta à demonstração da geografia interior de sua ama. Ela se prostra porque está prostrada. Quem não estaria?

Motivos não lhe faltaram. Lázaro cansou-se, desiludiu-se, frustrou-se, desanimou, morreu. Entregou-se à banalização da vida. Tornou-se apenas mais um. E não era para ser apenas “mais um” que Lázaro havia sido amado. Ninguém que é amado é apenas mais um. Ninguém se é amado consegue ser apenas mais um. Lázaro engordou a estatística das honrosas exceções dos visionários que não enxergam.

Pois é. Maria se dá conta disso. E, quando a ficha cai, ela se encontra à beira de onde Lázaro jaz em sua vida de morte. Daí, não tem jeito, não: ela se prostra e, por que não, morre um pouco, também. E daí, não tem jeito, não: ela repete o mesmo mote de Marta.

“Se o Senhor estivesse aqui, meu irmão não teria morrido.”

O sinal de que Maria morrera um pouco da mesma morte interna de Marta é que ela repete a frase da irmã. E repete, sabe por quê? Por pura repetição. Aquela frase não cabe nos seus lábios nem nos seus sentimentos. Observe que, de repente e sem mais, ela abandona o título íntimo de “Mestre” – Didáskalos – e chama Jesus de “Senhor” – Kyrios – título solene e formal. Esse é o sinal do distanciamento. Sinal de que, nesse momento, mas só nesse momento, Maria havia morrido também. Mas é também sinal de que, na morte, desponta o que vai além da morte. “Senhor” – Kyrios – era o título do Ressuscitado.

Mais um detalhe de suprema importância passa despercebido. Maria se lança aos pés de Jesus (11,32). Marta não fez isso. No capítulo seguinte, no banquete de Lázaro, depois da tsunami, é Maria quem vai ungir os pés de Jesus. Marta não fará isso. É que Maria foi aquela que escolheu a melhor parte. Lembra-se? Lançar-se aos pés, na intimidade de noiva com o noivo, indicava que “a melhor parte” de Maria permanecia sadia.

domingo, 25 de dezembro de 2011

ÉRAMOS SETE

Éramos sete. Ficamos seis.

O tempo parou numa manhã de Natal, num domingo, cedinho, num silêncio de cortar com faca, interrompido apenas pelo canto de pássaros que voavam baixo e pelo som da pá de pedreiro raspando cimento na laje fria.

É que ninguém acreditava naquilo e esperava a qualquer momento despertar do pesadelo. A pá do pedreiro terminou o trabalho, calafetou as fendas e o milagre não aconteceu. Nem mesmo por ser manhã de Natal.

Éramos sete. Sobramos seis.

Peraí. Na verdade, nunca fomos sete, sabe, o número sete: um, dois, três... Nós já fomos seis, cinco, às vezes, quatro. Sempre estivemos espalhados, por aí. Éramos sete. Mas nunca fomos sete, direito. E agora, a menos que não seja verdade, daqui pra frente, seremos só seis.

Mas quando éramos sete, os sete juntos, inteiramente sete, aí a gente “aprontava o sete”.

Você se lembra daquela vez em que a gente literalmente barreou a porta da insuportável vizinha jogando bolinhas de barro? A bem da verdade, não foi exatamente “barro” o que a gente atirou àquela porta, mas poderia manchar a reputação dizer aqui o material artístico exato de que foi composta a obra.

E você chegou a contar quantas telhas da vizinha do quintal de baixo a gente quebrou naquele bombardeio de manga verde? E você se lembra das imprecações da senhora sua mãe a respeito de uma certa torre de antena encostada no alpendre? Não subam aí!, ela disse. Bastou sair e... Bem, o resto já está nos autos.

E você se lembra do dia em que encheu o banheiro (o único) da casa com anfíbios canoros (ditos sapos!) e da gritaria da ala feminina do consórcio familiar? Naquele dia, você apanhou legal! Pela “Sociedade Protetora das Mães” a gente já estava em cana, faz tempo!

Como podia esquecer quando você começou a Odonto e trouxe para dentro de casa (observe o advérbio “dentro”) uma caveira humana numa sacola de papel, debaixo do braço – assim – como se fosse pacote de compras?

E você se lembra daquela vez em que (você) teve a elegante idéia de estabelecer uma ligação direta do bocal da lâmpada com um fio de arame, e só a sorte não nos deixou segurar diretamente no arame? Foi fogo pra todo lado. Caramba! A gente podia ter colocado fogo na casa e isso ia ser o de menos! Naquele dia, éramos dois. Mas valíamos pelos sete. É que, geralmente, éramos sete. Mas valíamos – por baixo? – por dez!

Mas agora somos, irremediavelmente, seis.

Você quis tanta coisa! Mais coisas do que cabia em você! E agora que você foi embora ficamos mais sozinhos, bem mais vazios e muito mais pobres. Muito mais pobres do que a simples humanidade nos condiciona a ser. Nunca mais aquele riso em cascata. Nunca mais as tiradas de humor. Nunca mais as explicações sobre o funcionamento do universo. Nunca mais as “coisas de Aloísio”!

Éramos sete. E sem você não somos nem seis, nem cinco, nem...

Ta certo. Nós construiremos um monumento, contaremos suas histórias, guardaremos as lembranças. Parece que é assim que se faz. Mas nenhum monumento terá o seu tamanho, nenhuma história, a sua cor de voz, nenhuma lembrança, o seu perfume de alma. É que você não era daqui. (Tem gente que não é!) Não fazia parte desse sistema. Você não se enquadrava, não cabia, não se satisfazia, apenas.
Mas tem mais. Você se recusou a se enquadrar e a caber. E ainda menos a se satisfazer, apenas. Você era único. Sem você, isso daqui onde o resto cabe e se enquadra e se satisfaz, ficou bem menor e sem graça.

Éramos sete.

E vamos continuar sete, viu, Sérgio!

Minto.

Pressinto que seremos oito. Há uma lembrança que preencherá o oitavo lugar desse trem que, só momentaneamente, descarrilou. Só momentaneamente! Seremos oito. O seu lugar será preenchido de histórias. E esse será o milagre da vida. Será o seu milagre. O primeiro. Se alguém contou a última história, não foi você. Você? Ara! Jamais. Nem que quisesse. Nem que quisesse.


(Aloísio Lobo da Costa saiu pra visitar Deus no dia de Natal de 2011. Pelo tanto de histórias que ele tem pra contar, decerto, não volta tão cedo.)

domingo, 18 de dezembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 15

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


O contrário do ético é o mecânico. Terminei assim da última vez.

Quando a medicina só enxerga aparelhos e exames, ao invés de olhar e ouvir o paciente, ela se mecanizou. Se a política só consegue ver o valor agregado da economia em lugar das pessoas a quem ela serve, ela se mecanizou. Quando a religião responde com respostas prontas, ela se mecanizou. Nesses e noutros casos, a ética ficou pra lá de Bagdá.

É que a ética não responde a questões como “faça isso, não faça aquilo”. Esse é o campo da moral. À ética se coloca uma única questão básica, que torna as outras, praticamente, irrelevantes senão desnecessárias: “Se eu for por esse caminho, aonde ele vai me levar? Se continuar onde estou, aonde chegarei?” Essa é uma questão ética. Essa é a questão ética.

É por isso que o contrário do ético é o mecânico. A ética é dinâmica. Não que o mecânico não possa ser. Mas a ética é dinâmica em si mesma. Aliás, ela é o dinamismo. É por isso que, quando perguntado sobre a ética da psicanálise, Lacan respondeu: A psicanálise é uma ética.

O dinamismo ético pulsa nas forças humanas a que chamamos “virtudes”: polidez, fidelidade, prudência, temperança, coragem, justiça, generosidade, compaixão, gratidão, humildade, simplicidade, tolerância, pureza, doçura, boa-fé, humor, amor... E também em todos os seus contrários. Aqueles são vetores éticos, portanto, dinâmicos, que apontam para uma humanidade que se recusa a estacionar-se mecânica. É o dinamismo que existe no amor maduro e na crueldade crua, no ódio in natura e no perdão in cultura, na boca escancarada da fome e na boca ainda aberta da saciedade, e em tudo o que se disser daqui pra frente “ao infinito e além”. É esse dinamismo que provoca o humano e é nele que repousa a contradição do nosso desassossego. Santo Agostinho queria “repousar”. Ó Agostinho, logo tu!

Desse dinamismo de vetores desponta o vetor da misericórdia: o mais dinâmico, o mais sutil e o mais difícil. Mas o que é misericórdia e onde ela entra e cabe nesse texto?

A palavra misericórdia, literalmente, indica o coração voltado para miséria: miseri+cordia. Trocando em miúdos, a misericórdia é a virtude do verbo perdoar, é a sua força e a sua verdade.

Mas, e perdoar, o que é isso?

Se você entende que perdoar é apagar a falta, esquecê-la, considerar a falta nula ou, simplesmente, não acontecida, sinto informar-lhe, mas esse é um poder que não temos ou uma tolice (perdão) imperdoável. O passado é irrevogável. Toda verdade é eterna. Descartes dizia que nem Deus pode fazer com que o que foi feito não o tenha sido. Nós também não. Parafraseando Aristóteles: ninguém está obrigado ao impossível.

Quanto a esquecer a falta, a menos que seja num caso de demência, é uma tolice ou uma irresponsabilidade, dessas que trinca a moralidade ao faltar com a fidelidade à vítima. Quem esqueceria Auschwitz e os crimes do nazismo, só pra citar um caso? Quem poderia esquecer? Só quem não esteve lá.

Numa tábua de catre num campo de concentração, alguém deixou escrita a seguinte mensagem: “Se for possível compreender, não será preciso perdoar”. Forte, né! Isso mexe nas entranhas do ser e aterrissa no campo verde da liberdade, o único lugar onde é possível ser. Sem liberdade não é possível ser por inteiro e nem há ser inteiro.

Mas, e a tal liberdade? Liberdade, segundo Spinoza, é a liberdade de conhecer as causas verdadeiras. Conta-se que ele mesmo, tendo sido apunhalado por um fanático, conservou a vida inteira o seu gibão furado, para não esquecer nem o acontecimento nem a lição que aprendeu. Isso não significa que ele não fosse livre para perdoar, que não tivesse usado sua liberdade nem tivesse perdoado. Isso significa que perdoar não é nem apagar nem esquecer.

Mas, então, o que é isso: perdoar?

Perdoar é cessar a voz do ódio. E é essa, justamente, a definição da misericórdia. A misericórdia é a virtude que triunfa sobre o ódio (mesmo) justificado, sobre o ressentimento, o rancor, o desejo de vingança, de punição, enfim, de justiça. A misericórdia triunfa sobre a justiça.

É isso aí! A misericórdia é a força que perdoa, não suprimindo a ofensa, a falta e a falha – impossível! – mas cessando os seus efeitos destrutivos. A misericórdia não é a clemência, que só renunciou a punir (na verdade, podemos odiar sem punir ou punir sem odiar). Também não é a compaixão, que só simpatiza no sofrimento (podemos ser culpados sem sofrer ou sofrer sem sermos culpados). Não é sequer a absolvição, um poder – que só poderia ser sobrenatural – de anular pecados e faltas. A misericórdia é mesmo uma força singular e bastante difícil de ser definida. Seja como for, cometemos faltas demais, somos miseráveis demais, fracos demais, vis demais... para que ela não seja necessária.

A propósito, prefiro trocar a palavra “virtude” por “força”, porque é isso mesmo que ela significa. Virtus, em latim, é força: em latim, uma palavra masculina.



Essa arenga toda apareceu aqui por causa de...

Marta! Ora vejam! Só Marta aprontaria uma digressão desse tamanho!

E para entender Marta, precisamos entender...

Maria.

Nada melhor do que olhar o outro lado do tapete, para admirar a tapeçaria. Só numa tapeçaria perfeita você nunca sabe qual lado olha. Esse é o valor. Marta e Maria: tapeçarias persas, digo, hebréias, da melhor qualidade.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

VERDADE E METÁFORAS

Em certo país, dava-se o nome de metáfora a qualquer recipiente que contivesse algum líquido. Havia nesse país uma fonte de água cristalina. Porém era tão amarga que se dizia bastar um único gole para matar de desgosto um homem adulto. No entanto, o que se dizia, também, era que diluída em pequenas doses essa mesma água tinha propriedades medicinais.

Deram, então, a ela o nome de Verdade.

Levas de peregrinos acorriam incessantemente à fonte. E depois partiam para suas casas levando a Verdade nos vasos das metáforas.

Porém, uma rigorosa seita acreditava que a Verdade deveria ser experenciada sem o auxílio das metáforas. Em nome de sua verdade, essa seita atacava as caravanas de peregrinos que buscavam a Verdade. Querendo ensiná-los a obter a Verdade em estado puro, os sectários destruíam a pauladas as metáforas que a continham. Quebrados os recipientes, a Verdade se derramava e desaparecia no solo, ficando sem ela peregrinos e sectários.

Certa vez um rapaz voltava da fonte levando a Verdade em sua metáfora, quando viu de longe a aproximação dos sectários, não querendo ver derramada e perdida a Verdade que trazia consigo, não hesitou e bebeu toda água da vasilha.

- Onde está a Verdade que você trazia nessa metáfora? – perguntaram os sectários.

- Eu bebi. – Desafiou o rapaz. Agora, a Verdade está dentro de mim.

E os sectários mataram-no a pauladas.

Em compensação, começou a correr a notícia de que a Verdade, embora amarga, não era mortal. E que o recipiente próprio para conter a Verdade poderia ser um humano. Com o passar do tempo, os próprios homens criaram metáforas. Mas conta-se também que, com isso, eles se afastaram da Verdade, transformando-se, eles próprios, cada um numa verdade.

domingo, 11 de dezembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 14

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Quando o autor do Evangelho de João juntou o trio Jesus, Marta e Maria, na verdade, ele tinha em mente um outro trio bastante conhecido, sobretudo, deles, dos leitores da época. O trio era Jacó, Lia e Raquel. Jacó, Isaac e Abraão foram os pais de Israel. Raquel, Lia, Rebeca e Sara foram as mães de Israel.

Nesse sentido, Jesus, Marta e Maria seriam, propriamente, o quê?

Vamos encontrar esta questão mais adiante, mas eu gostaria que ela ficasse, desde já, como moldura do quadro.



Na última vez que nos encontramos com ela, Marta questionava a ausência de Jesus. Lembram-se? “Se o Senhor estivesse estado aqui, meu irmão não teria morrido”.

Na verdade, tratava-se da plena atuação de um outro mecanismo de defesa: a conhecida projeção. Marta projetou seus sentimentos. Lançou fora de si o insuportável que nos habita e que, no fim das contas, somos nós mesmos – é ela mesma – nossa história de vida, nossa biografia.

Mas, se Marta projetar sua história de vida para fora de si mesma, vai sobrar o quê? Quase nada. E é aí que mora a crueldade da situação. Lázaro estava morto. Tudo o que era vida, começa a cheirar à morte. Inclusive as duas irmãs? “Jesus falou: Tirem a pedra. Marta, irmã do falecido, disse: Senhor, já está cheirando mal. Faz quatro dias” (Jo 11,39). Será que Marta se referia à putrefação dele, ou à estagnação delas?

O diálogo entre Marta e Jesus é uma obra prima da semiótica humana. Marta enxerga, mas não ouve. Ainda não compreendeu que é com os ouvidos que se vê melhor. Jesus fala, ela não ouve: está cega por não poder ouvir.

E a cegueira de Marta quase cega Jesus. Se ele entrasse no jogo dela, os dois iriam ficar multiplicando justificativas e racionalizações, projeções e outros mecanismos de defesa, até não chegar a lugar nenhum, e depois recomeçar tudo de novo, de novo sem rumo, outra vez. Mas ele não entra no jogo dela. Ele corta o palavreado desconexo com uma frase e barra a projeção de Marta: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim não morrerá para sempre. Você acredita nisso, Marta?” (Jo 11,25-26). Foi como se um gongo soasse aos ouvidos surdos, provocando, ao contrário do que se espera, alguma capacidade de ouvir. Marta cede em suas projeções.

Na projeção, a conexão com a realidade encontra-se sempre seriamente avariada. Jesus não se deixa levar pelas projeções da irmã mais velha do morto. Não se enreda no enredo dela. Só um novo significante seria capaz de deslocar Marta do lugar de onde ela flertava com a morte.
Marta tem Jesus onde projetar todo mau cheiro interno. Poderia ser qualquer um, mas quem melhor que Jesus? Quem suportaria uma projeção maciça como aquela? E quem não sucumbiria a ela?

Todos os dias, pessoas projetam sobre os outros as culpas e frustrações de seus malogros. Terapeutas, pastores, professores, médicos, pais... ninguém escapa. O que fazer? Racionalizar, como Marta? Entrar no jogo do outro? Deixar-se conduzir pelo vazio que ele porta, mas não suporta?

E isso acontecer, não sobrará nada, a não ser o sabor do vazio que o outro carrega e descarrega. Esse vazio não pertence a ninguém senão ao portador. Podemos indicar caminhos, viabilizar soluções. Mas preencher o vazio do outro? Ai, ai, ai... Essa é uma pretensão onipotente, que camufla desejos distintos de qualquer finalidade terapêutica, pastoral e afins. Esse caminho é escorregadio.

Marta foi por esse caminho. Se Jesus não tivesse lhe mostrado o caminho de volta a si, Marta estaria, até hoje, resmungando: “Se o Senhor estivesse aqui...”

Jesus mostrou à Marta um caminho ético. “Não são doze as horas do dia? Se alguém caminha de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo” (Jo 11,9). O contrário do ético é o mecânico.

Mas essa é outra conversa.

sábado, 3 de dezembro de 2011

ADMIRÁVEL SÉCULO NOVO

É admirável o século XXI!

Para quem veio de uma época de quase nenhum acesso, o século XXI começou cheio de promessas. Ta certo que a primeira década teve Bin Laden, Bush e outros “Bês”. Ta certo que as palavras “crise financeira” inundam todos os espaços desse início de segunda década. Mas para quem viveu sem computador, telefonia, internet; para quem viu prateleiras de supermercado vazias no Plano Sarney (o zumbi que insiste); para quem viajar de avião era coisa além da imaginação, o século XXI é mesmo novo.

Novo e admirável! Pelo menos, naquela parte do mundo que se autodenomina “livre”, é adorável esse maravilhoso acesso ao pensamento e à possibilidade de fazer escolhas.

Há exatos 100 anos, Freud escreveu uma carta ao pastor protestante Oscar Pfister. Parêntesis. Por carregar a fama de enxergar sexo em cada esquina, há quem imagine que Freud fosse um libertino depravado. Não há nada que fique mais longe da verdade do que essa versão distorcida de Freud. Freud era um pacato cidadão, médico, professor, e pai de família com dez bocas para alimentar.

Há 100 anos, naquela carta, Freud se recriminava diante do amigo pastor protestante, justamente, ironicamente, imaginem, por ser um homem escandalosamente pudico. “Acho que análise sofre do mal hereditário da virtude. Ela é obra de um homem decente demais, que também se sabe comprometido com a discrição. Acontece que as questões psicanalíticas só são compreensíveis na totalidade e minuciosidade, assim como a própria analise só anda quando o paciente desce das abstrações substitutivas para os pequenos detalhes. A discrição é incompatível com uma boa análise“.

E arremata dizendo que o analista deveria ser como um artista que compra tintas com o dinheiro do orçamento doméstico e queima os móveis da casa para aquecer a modelo. “Sem tal dose de criminalidade, não há produção correta” (Carta a Pfister, 05.06.1910).

A idéia central da carta era a de que a hipocrisia fazia tão mal quanto a doença. Melhor. A idéia, no final do século XIX, início do século XX, era a de que a doença nascia da hipocrisia. Melhor ainda. A idéia naqueles tempos fundadores era a de que a hipocrisia era a doença. Admirável e corajoso Freud!

Admirável século XXI! Hoje não precisamos mais gastar todas as economias pra comprar tela e tinta e nem queimar os móveis da casa pra aquecer a modelo nua. Entre outras, essa é a razão porque esse século XXI começa admirável e novo. A não ser em setores reacionários da sociedade, cada dia que passa convive cada vez melhor com a pluralidade das possibilidades humanas e convida, dia após dia, a descascar da parede do imaginário social a tinta vagabunda, porém cara, da hipocrisia. Caem os véus, as burcas e as sobras de outros tempos. As pessoas hoje pensam. As pessoas hoje falam. E não mais à boca pequena, persignando-se como quem espanta demônios invisíveis ao menor incréu pensamento ou inadequada palavra perjura. O pensamento corre solto e veloz. A fala soa alta, franca, digna.

Ainda temos guerras (pipocando por todo canto), tiranias (o jeito muçulmano e, por que não, o americano de ser), bossalidades (Hugo Chaves sozinho preenche o quesito), imbecilidades (o Big Brother e, claro, quem “espia”), mentiras, roubalheira e corrupção (parlamentos e governos em geral), intolerâncias (homofóbicas e xenofóbicas lato sensu), diferenças sociais (o quarto de 2x2 da empregada no apartamento de 600 m2) pobreza, miséria e fome (a África, a Índia e o Nordeste brasileiro, não necessariamente nesta ordem) e os quatro cavaleiros do Apocalipse (made in China). O mundo ainda é mundo. Uai!

Mas...

Já vivemos no século XXI. Esse adorável e defeituoso século XXI!

Quando era criança, eu observava que as pessoas abriam apenas uma fresta da porta para receber quem batesse de fora, e se enfiava atrás de cortinas nas janelas para não cumprimentar quem passasse. Mais que hipocrisia, aquilo era medo.

Hoje, cada vez mais, não é mais assim. É claro que nos escondemos atrás de câmeras de segurança, mas essa é outra questão. Já conseguimos nos esconder cada vez menos de nós mesmos. Não precisamos mais disso. Mentir pra si mesmo era a regra, para os outros, a exceção. Acho que já começamos a inventar a exceção da exceção. Ainda mentimos. Mas já sabemos quando, onde e por quê. Sabemos, inclusive, que precisamos cada vez menos elogiar o São Jorge do new rich que acende a luz na boca do dragão cada vez que se abre a porta. É só dizer: É a sua cara!

É que já vivemos no século XXI. Esse problemático século XXI! Esse mais claro e mais aberto século XXI!

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

CREDO NOVO

Creio em Deus, amor infinito, mistério original do ser,
que expressa soberanamente seu ser mais profundo
na evolução do cosmo e na humanidade
e, sobretudo, em cada homem e mulher,
que acredita e vive no amor, apesar de tudo.
E, justamente, por isso se torna expressão máxima
desse mesmo amor infinito,
cada vez que faz o amor superar a indiferença
e qualquer aparência de dor.

Creio em Jesus, o Prometido desde sempre,
imagem única de Deus,
nascido de pais humanos e do jeito humano de nascer,
sem precisar de milagres desnecessários
nem de anjos voadores,
sem, contudo, ser apenas obra humana,
mas inteiramente fruto da graça salvadora de Deus.

Creio que Jesus, o Humano para sempre,
fez parte da nossa História refazendo a História,
vivenciou as limitações da existência e da morte,
foi crucificado por ordem do poder e da ganância,
sob o governo do procurador romano Pôncio Pilatos,
realmente, morreu, e foi sepultado.

Mas creio que ele vive em plenitude – só não me perguntem como, não sei.
No entanto, é nisso que creio, absurdamente:
que a morte não teve nele a última palavra
e não a terá em mim.
Tudo porque ele se abriu e foi inteiramente absorvido em Deus.
Apesar de toda aparência em contrário,
repito, a vida é maior do que a morte
e a força do bem supera a força do mal,
nem que seja por uma questão de sanidade.

Tem de ser assim.

Por isso, ele se tornou uma força de cura,
e assim pode libertar a humanidade de si mesma
e levá-la à plenitude do projeto inicial.

Creio na ação inspiradora do sopro de vida de Deus,
que antes do início dos tempos,
na noite escura do mundo,
pairava sobre a fecundidade da vida,
para torná-la, não uma vida qualquer,
mas a vida plena de Deus.

Creio que é esse mesmo Espírito criador
que conduz e renova a comunidade dos que crêem em Jesus.
E creio nessa comunidade universal dos que crêem nele,
onde quer e do modo como ela se apresente,
porque nela Jesus, Cristo e humano para sempre,
continua a viver com rosto humano e a se dar a ver,
apesar de tudo e dela mesma.

Creio no dom de Deus,
que nos cura e nos renova e nos faz sua nova criação
para nos tornarmos, finalmente, humanos,
crísticos e humanos para sempre,
à sua imagem e semelhança.

Creio na vida,
esse, sim, o grande milagre necessário,
sempre repetido, sem jamais cessar.
E que da mesma forma como Jesus foi querido por Deus,
eu fui querido por Deus e você é querido por Deus.

Assim sendo, creio também na subjetividade humana,
que cada um terá a chance de encontrar seu próprio caminho,
que será só seu e de nenhum outro,
sem sair da comunidade humana, mas sem diluir-se nela.
Porque cada um é único, e sua saúde depende disso.

E creio na utopia humana de que seremos finalmente iguais,
em dignidade e valor,
e nos sentaremos de igual pra igual à mesma mesa,
onde acertaremos o futuro divino da humanidade,
um futuro que significa vida sem limites e sem exclusões,
sem qualquer resquício de amargura, intolerância e ódio
e, sobretudo, no amor.

Assim seja.


Este CREDO foi escrito para os que não crêem. Os que crêem já têm suas próprias respostas, seus próprios consolos e suas conclusões.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

CONTO DE NATAL

Durante a Segunda Grande Guerra, uma rede de resistência foi organizada na Bélgica, para esconder as crianças judias, separadas de seus pais. Essas crianças eram confiadas a famílias cristãs, que, por sua vez, ignoravam a identidade dos verdadeiros pais daquelas crianças. Da mesma forma, os verdadeiros pais, por razões de segurança, também ignoravam o paradeiro de seus filhos.

A mesma rede havia organizado uma vigilância para saber para onde as crianças haviam sido levadas, como eram tratadas, e assim por diante.

Um dia, numa daquelas casas, uma daquelas crianças, um menino de seis anos, confiado a uma família católica, foi acusado de haver cometido um roubo. Pânico geral! Na mesma hora, a família que o acolheu entrou em contato com a rede, e uma pessoa foi enviada para se informar do quê estava acontecendo a fim de estudar o problema.

A família, atordoada, só sabia dizer:
- Pegue esse menino e o leve de volta. É um ladrão! Não o queremos aqui.

O agente, arrasado, disse que não poderia tomar aquela decisão, sozinho, e que iria reportar-se ao chefe da rede.

O chefe da rede, mesmo tolhido pelas circunstâncias, resolve ir pessoalmente visitar a família que acolheu o menino, onde o suposto roubo havia acontecido e o pânico se espalhado. Assim que põe o pé na casa, o que ele ouve é a mesma deplorável cantilena que já havia ouvido do agente. A família não só continuava impenetrável em sua suspeita, mas também irredutível na decisão de se livrar do menino. E queria que aquilo fosse feito ainda naquela noite.

O chefe pede para ficar a sós com o menino.
Então, naquele instante, sozinho com o autor da discórdia, prega-lhe um sermão, fala-lhe como se fosse a um adulto, e lhe diz:
- Tem alguma coisa aqui que não bate bem! Essas pessoas arriscam a própria vida para salvar a sua, e você, em agradecimento, não encontra nada melhor para fazer, a não ser roubá-las!

E o que é pior. A família prosseguia dizendo que além de ladrão, o menino era mentiroso. Quando o acusavam de haver roubado, ele negava e negava, obstinadamente:
- Não! Não roubei.

Sem mais, e de repente, o chefe da organização tem uma idéia. Uma dessas iluminações que nos chegam, sobretudo, quando falamos a uma criança. Perguntou, então, ao menino:
- Afinal de contas, o que foi que você roubou? Do que é que lhe acusam ter roubado?

É que, ninguém, até aquele momento, havia se preocupado com a questão material da acusação. Ninguém havia perguntado à família o quê, afinal, havia sido roubado.

Sem levantar os olhos, o menino responde:
- Eles me acusam de ter roubado o Menino Jesus do presépio.

O chefe da rede volta a perguntar:
- E não é verdade?!

E o menino volta a insistir:
- Não, não é verdade.

Ainda mais intrigado, o chefe da rede, arrisca uma última tentativa:
- Mas, então, o que foi que você fez?

E o menino, de olhos baixos:
- Eu não o roubei, eu o escondi.
- Mas por que você o escondeu? – pergunta o chefe.

Dessa vez, o menino ergue os olhos e responde:
- Porque ele também é judeu, assim como eu!

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 13

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Quem ler o capítulo 5 de João encontrará a história de um paralisado à beira de uma piscina de águas mortas chamada Betesdá. Betesdá em hebraico significa “o fosso”. O autor do Evangelho de João não deixa dúvidas a respeito do que pensa e sente das instituições: para ele, são todas piscinas/fosso de águas mortas. Muita promessa, pouco cumprimento.

O paralisado do capítulo 5 se encontra à beira de uma dessas instituições-fosso. E tem tanto medo de tudo o que o cerca, que não consegue alcançar o tom do próprio desejo, sequer consegue saber o que quer.

Jesus lhe pergunta: “Você quer viver?” Ele responde: “Mas eu não tenho ninguém que me leve à piscina.” Observe que Jesus não faz menção alguma a tal piscina. É o medo que o paralisado sente que o faz inserir a “instituição-piscina” onde Jesus havia perguntado sobre “desejo-vida”. O medo que o paralisa não o deixa saber de si, nem do que quer nem o que do que tem. Só sabe o que não tem: “Não tenho ninguém...” Abandonado, ali, por conta própria, jamais alcançará as tais águas que se movem. E ainda que as alcance, elas de nada lhe servirão. Por quê? Porque ele não sabe o que quer.



Marta está paralisada. Maria, ainda mais. Marta, pelo medo. Maria, pela dor. Paralisadas!

Quando Maria repetiu diante de Jesus a mesma fala de Marta, aquela frase, na verdade, nem era dela nem lhe pertencia. Maria estava apenas repetindo o que, provavelmente, ouvira da irmã. É que lhe faltava a possibilidade de descolar-se da irmã – como faltou também a Marta ter se descolado de qualquer outrem – para poder sentir a própria dor, como sua, e só assim conseguir alvará de licença para exprimir seus sentimentos com o direito que lhe cabia na sua parte de dor.

Paralisadas!

Marta cobra a presença de Jesus. “Se o Senhor estivesse estado aqui, meu irmão não teria morrido”. Mas, na verdade, a cobrança é apenas um soluço disfarçado, já que ela é a primeira que não pode se deixar alcançar pelo acontecimento. Marta pergunta. Mas a pergunta é a de uma adolescente perguntando: O Senhor não olha mais pra nós? Nem se importa mais com a gente? Marta questiona. Mas o questionamento não é o de um adulto: tem nuances de criança perdida e desamparada, prestes a desatar o choro e segurar a primeira mão estendida.

“Se o Senhor estivesse estado aqui...” Essa queixa, na boca de Marta, é uma projeção maciça de sentimentos culposos e raivosos, consigo mesma, em relação à perda do irmão. Se essa Marta for a mesma que aparece no Evangelho de Lucas, ela estava sempre fazendo, sempre indo, respondendo por tudo, colocando tudo no devido lugar. Marta sempre deu conta de tudo. Como é que agora vai conseguir “dar conta” do fracasso de “não ter dado conta” do irmão que morreu?

A pergunta de Marta é obsessiva, mas sua estratégia é histérica. Como assim?

É que Marta interroga o que o outro quer, mas com o único objetivo de saber onde ela mesma pode aninhar o seu próprio desejo. A questão não é saber do outro, é saber de si. E a questão tampouco concerne a um outro qualquer: um semelhante. Marta se dirige a um outro, mas que para ela é um Outro: é determinante. É o calibre de ser determinante que confere a esse Outro o poder que falta à Marta. Qual? O de ela própria poder desejar. Mas desejar, mesmo, o quê? Marta não sabe. Como também o paralisado não sabia. “Se o Senhor estivesse estado aqui...” (de Marta) é o equivalente ao “Não tenho ninguém...” (do paralisado). Com uma diferença: Marta sabe que lhe falta um saber. E que ela precisa alcançar algo que se esconde dentro dela (um segredo? uau!), mas que isso não está relacionado ao saber. Está relacionado ao querer.

Marta não sabe do que ela quer. Então, ela empurra a bola para que um Outro saiba. Quem sabe! Melhor ainda, para que um Outro queira.

Mas ele quer?

“Se o Senhor estivesse estado aqui...” é, na certa, uma paródia (algo dito), afim de que se possa conseguir verbalizar (algo não dito). A pergunta de 1 milhão de dólares era se Jesus (ele, sim!) queria ter estado ali. Ele queria? Mas demorou-se! Se queria, então, por que fez que não quis?

“Se o Senhor estivesse estado aqui...” é, também, sem dúvida, a “melhor” maneira que Marta encontrou de perguntar, a si própria, se ela (ela, sim!) queria estar ali. E se esteve o tanto que quis ter estado para que o irmão não morresse. Ou se não quis tanto assim. Vai saber!

O que Marta perguntou foi, afinal, se aquele fracasso não era, na verdade, um fracasso seu.



Com honras e salamaleques, dedico esse trabalho a Neuza, e ao pessoal da clínica que não faz outra coisa na vida senão dizer a quem quer que seja o Lázaro da vez: Sai dessa, rapaz!

sábado, 19 de novembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 12

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Marta, perdida, racionaliza. Aliás, Marta é a rainha da racionalização. Se ela levar Jesus pelo mesmo caminho, se ele ficar perdido com ela, será que isso poderá abrandar a sua dor? Se ela envolver Jesus na trama das suas racionalizações, poderá diminuir sua angústia? Parece que é o que ela pensa. Note que Marta foi a primeira a se levantar e a ir ao encontro de Jesus. É que Marta está sempre saindo, sempre fazendo, sempre indo, sempre acontecendo. Marta está o tempo todo no ar. Já Lucas sabia disso (Lc 10,38).

Mas, por que Marta corre tanto de um lado para o outro? Por que não consegue parar? A resposta é simples! Marta não consegue parar para não pensar. Não consegue parar porque não pode pensar. “Não, não posso parar, se eu paro eu penso, se seu penso eu choro...” (A letra é de autoria de Marta.) Sair, correr, arrumar, reclamar... Tudo isso tem um significado, aponta na direção de armar defesas contra a angústia. Qualquer coisa, menos pensar. Essas defesas são infantis. E embora as angústias não se resolvam quando o adulto se defende delas, como fazia na infância, na maioria das vezes, é assim que ele continua fazendo. Quando a criança, enfastiada com o brinquedo ou a história, pergunta: O que é que a gente vai fazer agora?, ela, na verdade, está lançando as pontes por onde o sujeito vai passar em futuro bem próximo. “Fazer” é o verbo preferido das crianças. O verbo, adulto e satisfatório, será o verbo “pensar”. Mas pensa que é fácil?

O pensamento que Marta pensa, quando conversa com Jesus, não é pensamento. Aliás, o diálogo de Marta não é diálogo. Marta fala a fim de ouvir a própria voz. Marta se enreda na própria dor e emite frases desconexas. O diálogo entre ela e Jesus parece um diálogo de surdos. Eles se falam. Mas ninguém ouve o outro. Ambos perderam alguém querido. Ambos estão sufocados pela dor. A dor não deixa pensar. A dor prefere repetir, qualquer coisa, um movimento involuntário, mesmo que ele traga ainda mais dor. A dor repete qualquer coisa, para ver se a dor passa. Mas não passa. Enquanto repetir, não.

Marta repete duas vezes a expressão “eu sei”. Ela parece saber muitas coisas. Mas no fundo, não sabe nada e nem quer saber. Quem diz muito “eu sei”, será que sabe?

Marta só quer o irmão de volta. É só isso o que ela quer saber, é só isso o que ela sabe, é só isso o que ela quer. Mas, do que fez o irmão desandar, disso, ela nada quer saber. É provável que o que fez o irmão desbarrancar pela via da morte seja uma realidade que também atinja a ela e a sua irmã. Por isso, ela não quer saber nem ver. Marta se torna cega porque é surda. Não quer e não pode enxergar. Mas, o que ela não quer e nem pode, na verdade, é ouvir. Marta tem medo de ouvir seu mundo interno. Esse medo, que tudo paralisa, travou-a, cegou-a, ensurdeceu-a. Pobre Marta! O medo tomou conta dela: o medo de saber.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 11

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11



Muitas vezes, e de muitos modos, creio, você já se sentiu frágil diante das exigências que tem de suportar, todos os dias. Há tanta cobrança pedindo atenção, solicitando opinião, exigindo atuação que, de repente, a vontade mesmo é de sair correndo por aí, gritando: Não estou mais aqui!

Né?

Isso, que sobe e aperta, e quase nos ameaça implodir, tamanha exigência com que se impõe, tem nome: chama-se angústia. A palavra vem do latim: angus, significa lugar apertado. É isso que você sente quando está angustiado.

Quando qualquer angústia ameaça a sua integridade, a primeira coisa que lhe parece viável é dar um jeito de manipular a percepção para que você mesmo, já desnorteado, não sucumba diante de uma angústia sem nome e sem tamanho.

Entra em cena a manipulação da percepção. É simples! Você viu o que não queria ver? Então, faz que não viu. E faz tão bem feito que acaba não vendo, mesmo aquilo que viu. Você ouviu o que não precisava ouvir? Então, faz que não ouviu. E faz tão bem feito que acaba não ouvindo, mesmo aquilo que ouviu. Segue por aí. Quando alguém não quer se dar conta de algo – vendo, ouvindo, tocando, cheirando, sentindo – simplesmente, gira a chave, manipula a percepção, e nada disso acontece. O segredo estava naquilo que deveria ser percebido. Se não é mais... não é mais. O que não se encontra nos autos, não existe no mundo. Não é assim que se exprime a vetusta magistratura jurídica? Você que não é nem vetusto nem magistrado nem jurídico, sabe que é melhor não ver ou ouvir, do que ver e ouvir e se angustiar.

Entendeu?

O importante é reter isso: quando alguém manipula a percepção de algo, ele não “faz de conta” que não viu ou ouviu o que não queria ver ou ouvir. Ele realmente não viu nem ouviu. Ele baniu a percepção. A manipulação, quando bem feita, atinge pontos de excelência tão grandes, que aquilo que a pessoa não quer ver, ouvir ou sentir, simplesmente, sai do campo da percepção. Ela não vê, mesmo. Não ouve, mesmo. Não sente, mesmo. Dá até para mudar o antigo provérbio: “Pior cego é o que não quer ver”. Daqui pra frente, que tal “Melhor cego é aquele que não quer ver”?

E tudo por causa de quê? Tudo por causa dessa senhora incômoda chamada angústia. Ela é uma boa atriz. Ela convence. Convence você! Quando ela resolve aparecer, demais, faz estragos.

E aí, os mecanismos de defesa entram em cena para defender as suas fronteiras. As fronteiras do ego, pobre coitado, precisam de um “ministério da defesa” interno atuante para se defenderem. Mas o ministério falha (ta na moda isso!). E quando nada funciona, quando os mecanismos de defesa não dão conta das fronteiras internas, ainda resta um último mecanismo, forte, cansativo, difícil de ser contornado. É a racionalização: o último reduto de um ego sitiado num beco sem saída.

Racionalizar é diminuir o impacto de qualquer percepção ao mínimo ponderável possível. É quando a gente quer explicar tudo, pra gente mesmo e para os outros, mesmo aquilo que a gente já sabe que não tem explicação. Fazemos isso o tempo inteiro.

De repente, numa tarde quente de um dia de semana, estou eu no shopping com um baita sorvete na mão, quando sou abalroado por um indiscreto conhecido. Que logo vai disparando: Aí, Renato, passeando, hein! (Como se ele também não estivesse fazendo a mesma coisa!) E eu, constrangido, imediatamente, saco do bolso uma resposta que nem havia pensado antes: Não, só vim aqui pagar uma conta! Pobre di eu!

Não é assim? E precisa ser assim? Claro que não! Quando o outro disparou o “passeando, hein!”, eu poderia perfeitamente responder qualquer coisa como “Pois é!”. Teria sido, simplesmente, mais fácil e econômico concordar com ele, virar pro outro lado, e continuar minha vida e meu sorvete na tarde quente, não devendo nada pra ninguém. A vida é simples!

O fim do mundo é que, nesses casos, o raciocínio não conduz a cena dos muitos artistas no palco de mim mesmo. Pelo contrário, confunde ainda mais. Apaga fogo com gasolina. Quando mais se racionaliza, pior fica. No fim, o que eu quero dizer é que a racionalização, como todo mecanismo de defesa, é sempre a saída infantil à investida de um adulto.

Você, – digo eu – adulto, não precisamos disso.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

UMA PARÁBOLA QUE SERVE PRUM PUNHADO DE COISA

Numa praia deserta de mar agitado, um pequeno grupo se dedicava a salvar vidas. Sabe, aquela coisa, de gente se afogando e gente correndo pra desafogar? Era assim.

Com o tempo, o grupo cresceu, ficou famoso. É claro! (Preciso lembrar que a fama é sintoma de incompreensão?) Então, como o grupo ficou famoso, mais gente foi chegando pra salvar gente, e quem não podia chegar mandava gente em seu nome, pra salvar gente, e depositava quantias no banco, pra salvar gente, e muita gente doou tudo o que tinha, pra salvar gente, sem falar, quanta gente morreu na praia deserta de mar agitado... só pra salvar gente.

Com o tempo, o grupo ficou mais famoso ainda. Óbvio!

Com o acervo das doações, surgiu a necessidade operante de construir uma sede. Sim, aquela tapera antiga onde eles começaram a abrigar os náufragos já não servia mais. Sim, porque era preciso mostrar resultados mais assertivos, leia-se: proativos. Sim. Então, uma grande sede foi erguida com o nome do Fundador para que a sua memória fosse mantida, já não tanto por causa da estatura dos salvadores, mas, sobretudo, pela estatura da construção. Tijolo é tudo!

E, é claro, o grupo ficou mais famoso ainda. Desculpe-me repetir isso.

Na medida em que o grupo crescia em famosidade, diminuía em operacionalidade. Se me faço entender, o que eu quero dizer é que as pessoas continuavam se afogando muito por ali, porque embora a praia não fosse mais deserta, o mar continuava agitado. O perigo era sempre iminente. O que não era eminente era a deliberada vontade de se atirar às ondas para salvar os náufragos. Se bem me lembro, criou-se até a tese de que os afogados tinham direito a se afogarem pelo simples fato de se terem afogado por livre e espontâneo afogamento. Vê!

E assim e dessa forma a sede crescia e necessitava de braços e mãos para a organização interna e, daí, menos mãos e braços sobravam para a única razão de ser daquilo tudo ali, que era, justamente, aquilo tudo ali: o mar agitado, os afogamentos... Ara, você já sabe!

Contudo, não se canse de perceber que o tempo altera as prioridades. Já não era mais importante o tecido da roupa náutica que os salvadores usavam ao resgatar em alto-mar, mas o tipo de tecido com que se apresentassem nas horas vagas de salvamento. Não se detenha muito na qualidade do perfume que usavam, porque não era a mesma que os náufragos exalavam ao saírem das águas. Não se canse de observar que as pessoas ao redor, fascinadas pela fama do grupo, perdiam de vista o que o grupo também já perdera em capacidade de se encontrar.

É que parecia tão normal que já não se resgatasse náufrago algum, que passou a correr mundo a ideia de que os náufragos já não existiam porque as pessoas haviam aprendido a não se afogar. Impressionante!

Mas o mar continuava agitado. E outras praias continuavam desertas. Só que agora os poucos náufragos resgatados, pingando água e sujeira, só entravam pela porta da frente, só pisavam o tapete da entrada, caso houvesse mídia para apresentar o fato. De resto, entravam pela porta dos fundos. Sujos, né!
Mas o mar continuava agitado, muito agitado.

Incomodado com aquela situação esdrúxula, um pequeno grupo dentro do grupo antigo resolveu colocar as cartas na mesa.
- Não havia sido aquela a intenção do Fundador – disseram.
E apesar da sede carregar nome e estátua e sei-lá-mais-o-quê do Fundador, nalgum momento, havia sido traída a Ideia Fundadora. Desde o princípio, havia vigorado o Conceito Fundador que estabelecia o resgate aos náufragos como a identidade-missão do grupo. De repente...

Lembram que eu falei que a fama é sintoma de incompreensão? Pois é. A fama empurrou a Ideia Fundadora pela enxurrada em algum bueiro. E ela se perdeu. Mas a fama também impediu que o grupo percebesse internamente o que todos já haviam registrado externamente.

Então, aquele pequeno grupo se separou do grupo antigo, desceu praias abaixo, ergueu outra pequena cabana, incorporou trajes de salva-vidas, e mais que traje, a ideia, e começou tudo outra vez.

Mar agitado. Praia deserta. Náufragos. Salvamentos. Intenções genuínas. Gente salva. Doações. Mar agitado. Praia deserta. Náufragos. Salvamentos. Náufragos. Doações. Sede nova. Praia cheia. Tudo de novo. Tudo de novo. Tudo de novo.

(...)

Quem passar por aquelas paragens verá inúmeras sedes institucionais carregadas das melhores intenções de salvar náufragos. O mar continua agitado. Gente continua se afogando. Parece que ninguém mais se dá conta.

domingo, 30 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 10

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Lázaro se apagou. É noite.

Foi assim que terminei na última vez. Lázaro se apagou. É noite. Mas Marta e Maria, não. Elas não se apagaram. E para elas continuava dia.

Por que as mulheres não se apagam? E por que para elas sempre é dia?

Eu adoraria encontrar registros de teólogas influentes na igreja primitiva, na era medieval, na igreja da reforma. Mas não existem. Quando acabei de escrever a palavra “teólogas”, o computador acusou a palavra como errada por ser inexistente. Nem o computador reconhece que existam “teólogas”. Embora as mulheres estivessem certamente presentes e tenham sido fundamentais na vida espiritual das igrejas do cristianismo ao logo de sua história, até recentemente nenhuma delas foi capaz de influenciar de modo considerável o curso e a direção da teologia das igrejas.

Mesmo se a Igreja Latina Católica Ocidental reconheceu Catarina de Sena, Teresa de Ávila e Teresa de Lisieux como “doutoras da igreja”, elas não são propriamente teólogas: são místicas. Se as doutrinas espirituais são parte da teologia, nem por isso os místicos, que ensinam mística, ensinam teologia, a ponto de serem chamados de “doutores”. Francisco de Assis é um místico, OK? Mas não tem o título de “doutor da igreja”. O que faz crer que o título dado a essas três mulheres tem muito mais o sabor de prêmio de consolação do que o de um real reconhecimento por aquilo que as igrejas cristãs tenham a aprender das e com as mulheres.

O fato é que existem os “pais da igreja”, mas não existem as “mães da igreja”. E o evangelho é rico dessas mulheres. Marta e Maria, por exemplo.

Li outro dia uma tese interessante sobre teologia. O autor dizia que a teologia é um exercício intelectual, uma manobra de idéias, um jogo expansionista cujo objetivo é anular a posição do antagonista. Segundo o autor, a proposta da teologia não é apenas a de estabelecer contornos para a imponderável verdade espiritual; seu objetivo declarado é vencer e eliminar a oposição pela manobra rasteira do convencimento. Nesse jogo do “quem é mais forte” ou do “quem está mais certo”, sem dúvida, sempre esteve presente o tabuleiro dos interesses masculinos.

É que a teologia – ria, por favor – sempre foi escrita por homens que não estavam fazendo sexo. Tem um monte de outras coisas que você pode fazer enquanto não faz sexo. Acontece que historicamente – ta lá, nas linhas e nas entrelinhas – a teologia foi escrita por homens obcecados por sexo, e pelos motivos errados. A teologia, sobretudo, a medieval, mas não apenas esta, foi o esforço masculino de demonstrar que a verdadeira espiritualidade exige afastamento do mundo real. Daí a abstinência, a assepsia das idéias, o caráter infantilmente conduzido das discussões. Coisa de homens. Minto. Coisa de meninos.

Vamos falar claro: as mulheres não têm esse problema sexual. Não dessa forma. As mulheres não acham necessário contrastar a vida cristã com o que quer que seja, qualquer que seja a delícia da realidade física. Foi por isso que Marta e Maria renderam-se imediatamente ao charme de Jesus de Nazaré, o contador de histórias, que se recusava a rebaixar-se à especulação teológica e abraçava o mundo dos sentidos com mais avidez e candura do que o mundo das idéias.

As mulheres sabem que espiritualidade não é coisa da cabeça, mas do coração. Elas sabem que o que existe de relevante na mensagem de Jesus se manifesta em pés empoeirados, em abraços, unhas sujas, panelas de comida, manchas difíceis de sair, cafunés, consolos, longas conversas na madrugada, na cabeceira de doentes, na limpeza das secreções, nas lágrimas, na confecção de presentes, na sustentação de relacionamentos, na visita aos esquecidos, no repartir do pão, no sorriso dividido, no dilema de consciência, na intimidade da cama, na companhia silenciosa, na ausência impensável. Ops! Ninguém precisa queimar sutiã. Essas são atitudes que Jesus teria. Você escolha.

Em 1º de abril de 1933, aos 91 anos, Julie Bonhoeffer, avó de Dietrich Bonhoeffer (teólogo alemão morto num campo de concentração por discordar de Hitler), atravessou desafiadoramente o cordão de isolamento das tropas alemãs no boicote imposto aos estabelecimentos judeus. Ela caminhou, além da linha divisória dos soldados perplexos, e foi fazer compras na loja dos judeus que costumava freqüentar.
Marta e Maria? Maria, não sei. Marta faria a mesma coisa. Se resta na Terra evidência que honre a herança de Jesus, isso não se deve aos meandros e aos quiabos da teologia. Mas aos muitos joãos-ninguém, e às muitas Martas e Marias.

Devo um monte dessas idéias a um autor muito interessante.

sábado, 29 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 9

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11



“Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”.
(Jo 11,23)
A sua presença, por si só, o arrancaria da escuridão da melancolia, das trevas interiores de todos os amores que ficaram pela metade, dos apegos e preocupações materiais, da luta ingrata por conforto e bem-estar. Porque o sentido da vida não pode estar nessa engrenagem louca que humilha a nossa existência. Assinado: Marta.

“Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”.
(Jo 11,32)
Nem teria experimentado qualquer apelo sedutor de matéria, onde o que sobrou de alma se perde. Não teria conhecido nem ouvido as mentiras com cara de cheque-frio que nos passam. Se o Senhor estivesse aqui, Lázaro não estaria sozinho. É que a solidão – não sei se o Senhor sabe – é a pior e a mais pesada de todas as cargas humanas. Não há ombros... Não há ombros... Peço desculpas; decerto o Senhor sabe! Assinado: Maria.

Marta e Maria têm um caminhão de razão ao repetirem a mesma frase: “Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”. Jesus era o mapa do tesouro para Lázaro. Lázaro cavou no lugar do X. E encontrou o vazio.

Tão logo, as duas sabem da chegada de Jesus, saem em abalada correria com o grito na garganta de uma frase obsessiva, repetida para si mesmas e muitas vezes e o tempo todo: “Se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido.”

Marta provoca Jesus para que ele lhe dê respostas. E o leitor se espanta ao ver que Jesus entra no jogo dela, e começa a lhe dar respostas. Curioso é que Jesus nunca foi de dar respostas. Em certas horas, que resposta responde? Que sentido faz sentido? Marta está atuando todas as defesas de um ego frágil que passou pelo rolo compressor dos últimos acontecimentos. Ela não tem escolha e se defende da maneira que pode. Marta racionaliza.

A racionalização é um mecanismo semi-consciente pelo qual interpretamos o que está sendo dito de forma a não ser ouvido, e, caso seja, não tenha nenhuma conseqüência para nós. A racionalização é um filtro mental pelo qual transformamos o profundamente revolucionário e radical no totalmente irrelevante.

Marta racionaliza. Mas, afinal, racionaliza o quê?

Racionaliza o fim, o vazio, o sem palavra, o sem sentido, o buraco negro da vida, o impensável da morte.

Marta racionaliza. Mas, afinal, racionaliza para quê?

Racionaliza para dar conta da angústia, para fugir da dor que a comprime, para fazer alguma coisa que lhe impeça de pensar a questão impensável. Afinal, Lázaro morreu porque abandonou Jesus ou porque Jesus o abandonou? Qual resposta seria preferível, quando até a pergunta é difícil de fazer? O texto diz que Jesus se demorou a ir ao encontro do amigo astenon. Demorou? Que demora foi essa? E por que se demorou? Diante daquilo no qual nem se pode pensar, Marta busca refúgio nos arcaicos mecanismos de defesa com os quais construiu e manteve um ego, agora, fragilizado.

Lázaro... Marta... Maria... O desespero pegou todo mundo por lá. Na traseira, veio a depressão.

Na verdade, seria melhor falar em melancolia. Pra quem olhar de fora, a diferença pode ser sutil. Mas para um olhar de dentro, a diferença é grande. A princípio, o que se nota, seja na fala dos deprimidos seja na fala dos melancólicos é uma relação muito próxima e dolorosa com a falta e a perda, ambas, insuportáveis. Já, naturalmente, insuportáveis. Mas ainda mais insuportáveis para um deprimido melancólico. Perda e falta abrem o chão debaixo dos pés e não permitem nem andar nem viver.

Na depressão, algo foi perdido, e há a denúncia de uma perda. Com muita freqüência, o deprimido se lastima daquilo que teve e não tem mais. Ele repete: “Tive e perdi, não tenho mais!”

Na melancolia, algo que deveria estar lá, não está, e a falta sequer é denunciada. O melancólico pouco ou quase nada fala. Se falar, será algo como: “Eu nunca tive!” A melancolia é uma situação complexa, ainda mais do que a depressão. Daquilo que foi perdido resta a chance e a espera de que seja encontrado. Mas ao que nunca foi tido, que chance e expectativa restam de que possa vir a ser? Se eu nem sei onde está, se nem sei se esteve, se nunca saberei onde estará, para onde olhar? Que rumo tomar?

À noite, o fantasma da depressão fica maior. No escuro da noite, o monstro sem cabeça mostra garras agressivas. Para um deprimido, sobreviver a uma noite de vazio, só mais uma, é uma vitória. Ele sabe que haverá ainda outra e ainda outras noites sem dormir. Mas, essa, pelo menos, foi atravessada em paz.

“Não são doze as horas do dia? Se alguém caminha de dia, não tropeça, porque vê a luz. Mas quem caminha de noite, tropeça, porque nele não há luz. O nosso amigo Lázaro adormeceu. Vou despertá-lo” (Jo 11,11-12).

Lázaro se apagou. É noite.

domingo, 23 de outubro de 2011

DIVÃ 16

Segue em frente a renomada série: “Divã”!

Lembra da última vez que a gente falou que recalcar significava colocar no freezer o que você vê e sente. É assim: a gente vê; vê, sim. A gente sente; sente, sim. Mas nem bem vê o que vê nem bem sente o que sente. A gente “pula essa parte”. Entendeu? O resultado disso nem sempre é bom, e nem pode ser, né! Pode surgir daí uma aridez emocional e uma falta de vontade pra tudo na vida, que não deixa nada ir pra frente. Se você regar, não molha. Se plantar, não brota. Se brotar, não vinga.

Mas preste atenção a uma coisa: o recalque é seletivo. Nem tudo é recalcado. Lembra da idéia e do afeto? O que foi recalcado foi a idéia: as lembranças que deveriam ter ficado passeando na mente. Essas idéias somem. É o famoso: “Deu um branco!” “Não me lembro de nada.” “Não lembro nada da minha infância.” “Esqueci!...”

É que a idéia foi recalcada. Mas e o outro componente, o afeto? Lembra dele? Pra onde foi?

Foi pra lugar nenhum. Ele fica solto, desligado, aprontando das suas. Dessa forma, provoca sintomas, doenças, mal estar, depressão, dependência, desatino de vida... É ele, o afeto.

É que existe uma geografia política dentro da gente. Freud nos mostrou que somos internamente divididos. Não existe o indivíduo: o indivisível. Somos divididos. E quando as autarquias internas não se dão bem, quem paga o pato é o sujeito: você, mesmo!

Não importa como essas divisões sejam enunciadas. Freud falou de Id, Ego, Superego. Não. Ele não falou em nada disso. Freud falou de “Isso”, “Eu” e “Supereu”. O Isso é aquilo que não tem nome. Quando as coisas estão ruins aí dentro, você diz: tem uma coisa ruim, “isso” não ta bom! O Eu é quem, coitado, tenta dar nome às coisas e aos sentimentos. Nomear não significa apenas chamar pelo nome. Nomear é delimitar, comportar, suportar. O Eu é o gerenciador do sistema. O Supereu é o capataz encarregado da ordem na fazenda. Quando ele abusa do poder, quem apanha é o Eu.

O Eu sofre pressões de todo canto e de toda ordem. Sofre pressões do Isso, ávido de satisfação. Sofre pressões do Supereu, sádico, sacana. Sofre pressões do meio ambiente, e aí a lista das exigências é grande: trabalho, família, tradição, cultura, sociedade, religião...

O Eu sabe que qualquer concessão que ele faça, pode despertar o Supereu sádico com a arma que ele tem: a culpa neurótica. Onde se falou de culpa neurótica, leia-se ansiedade. E aí a coisa fica feia, porque Dona Ansiedade é de matar.

Por falar nela, você conhece essa senhora?

sábado, 22 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 8

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Se você leu o capítulo anterior, poderá perceber o alcance das palavras de Marta e Maria: “Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11,21-32). As duas repetem a mesma frase: Se o Senhor estivesse aqui, não apenas num momento, mas o tempo todo, Lázaro não se teria perdido, não teria abandonado aquilo pelo qual tanto lutou, sofreu, se entregou e viveu. Lázaro tinha um sonho. Pois, então, ele estava morrendo, justamente, por ter abandonado o sonho. Morto o sonho, morre o desejo.

Melhor dizer que Lázaro não morreu. Ele foi se deixando morrer. Sem ver. Como um homem que salta do 30o andar e ao passar pelo 20o afirma “Até aqui, tudo bem!”, Lázaro deixou de enxergar a própria vida. Não seria de estranhar que deixasse de enxergar a própria morte.

Mas há algo ainda pior que a morte?

O universo, a história humana e a biografia de cada um são marcados profundamente por dois princípios: eros e thânatos – o amor e a morte. Neles, o simbólico e o diabólico convivem juntos. O diabólico dilacera. O simbólico sutura e cura a ferida.

Essas duas forças antagônicas caminham juntas, dividem espaço, alternam-se e, por incrível que pareça, produzem a vida que, às vezes, conduz à morte, e a morte, que, às vezes, antecede a vida. E, por incrível que pareça, uma não existe sem a outra. Quando elas se desagregam, quando resolvem seguir separadas por rumos próprios, abre-se um vão perigoso, como um rio que abandonou o curso e deixou atrás de si apenas o leito vazio de areia seca: um vão, um vau.

Uma depressão.

Que chega devagarzinho. E você nem percebe. E só sabe que os dias não são mais como antes. Ficaram todos da mesma cor e com a mesma cara: manhã de segunda-feira chuvosa. De repente, eles começam sem vontade e continuam sem vontade, mas só um pouquinho, só um pouquinho mais. E de pouquinho em pouquinho, você vai ficando cada dia mais sem vontade. E tudo o que você fazia – antes tão cheio de alegria – torna-se um peso. Esse peso arca as costas e faz você caminhar olhando mais para o chão do que para o céu.

No começo, a gente ainda discutia com todo mundo: mulher, filhos, chefe, colegas... Todo mundo! Ou, então, exigia de todos que tudo estivesse no lugar exato onde deveria estar. Olhava as coisas ao redor e, onde estivessem, você sabia que não deveriam estar ali. Você começava a não gostar mais daquilo que via. Tudo, de repente, havia ficado feio, desarrumado, sem graça.

No começo, é possível que a gente se transformasse naquilo que as pessoas chamam de “grosso” ou ”sistemático”. Mas, com o tempo, a atitude mudou. É quando passamos da agitação à apatia. Fomos ficando distantes, de olhar perdido, buscando lá longe aquilo que já não se encontrava mais nem onde estava antes nem em lugar algum. Esse é o momento em que o sujeito se acostuma a se debruçar à janela para olhar o nada passando lá fora. E se alguém lhe pergunta: O que é que você tem? A única resposta que ele consegue arrancar desse nada é... “Nada!”.

Pois é, a depressão se instalou, tão de mansinho, que ninguém viu. Agora, ela estava aí. E era difícil lidar com esse monstro sem cabeça. Quem já lidou, sabe que afundou tanto no buraco da solidão, que já não conseguia mais erguer a própria cabeça, nem mesmo, pra dizer o que se passava dentro dele.

Se contar, quem entende? Quem acredita? Tudo dói. Mas o que mais dói, nesse momento, é não ter ninguém com quem repartir a dor. O monstro sem cabeça o deixa absolutamente só. Cheio de gente ao redor. Mas, sozinho, por dentro.

Lázaro estava só, trancado por dentro, na sua gruta. Gruta, em grego, é “speláion”, que vem de “paláion”, antigo, donde, paleontologia. Lázaro estava só na sua gruta de vidas mortas.

A melancolia havia seqüestrado Lázaro. Jesus devolveu Lázaro a si mesmo. Na verdade, todos aqueles que foram “curados”, foram devolvidos para si mesmos. A nenhum deles, Jesus disse: Agora, vem, comigo! Foi sempre: Vai! Agora, você é livre: vai!

Com a família de Lázaro não poderia ser diferente. Jesus poderia ali mesmo ter começado uma parceria institucional. Lázaro ficaria com a diretoria, Maria, com a propaganda e Marta, claro, com o setor do dízimo. Poderia. Mas não fez.

A religião não existe para retirar as pessoas do mundo e criá-las num viveiro, cuidadas e cativas. A religião existe para inserir as pessoas na realidade do mundo, mas de uma outra forma, uma forma como o mundo não consegue inserir sem ferir. Esse é um paradoxo e uma tensão, eu sei. Mas quem disse que a vida não é feita de paradoxos e tensões?

sábado, 15 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 7

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11



“Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11, 21.32).

Betânia distava apenas 3 km de Jerusalém. Você podia ir a pé de uma cidade a outra. Pertinho! No entanto, escondida nas paredes daquela casa, pulsava uma vida que expulsava Jerusalém, no mínimo, pro outro lado do mundo, um planeta distante, onde nem se ouvisse falar da podridão da capital, com sua rede de intriga, desprezo e ódio. Dentro daquela casa, Jerusalém só existia como uma ameaça distante, que ali, apesar da proximidade, ficava ainda mais distante, na intangível casa de Betânia.

Os grandes personagens desse drama são os três irmãos de Betânia. Os três mais achegados e leais amigos de Jesus. Era para aquela casa que ele se retirava sempre, para repousar e fugir da agitação do mundo. Aquela era a casa para onde ele voltava. Aquela era a sua casa. Ele se refugiava ali para amar e ser amado. E para os três inseparáveis irmãos, estar com ele supria e completava tudo o que se esperava da vida.

Mas, quando João escreveu essa história, ele, na verdade, não queria apenas narrar um drama familiar, com todos os recheios de dor e alegria que fazem parte de qualquer família. O que será que João tinha em mente quando contou a história de Marta, Maria e Lázaro? Seja lá o que for, na época, todos sabiam. Ouviu essa? Vou repetir: seja lá o que for, na época, todos sabiam. Ninguém na época precisou explicar. Seja lá o que for, nós não sabemos. E é por isso que precisamos avaliar um fato, provavelmente, escondido atrás da história.

A primeira pergunta é: houve algum fato real que permaneceu escondido (desde sempre perdido) nos bastidores do drama de Lázaro? Se houve, será possível reconstituir a “cena do crime”, tanto tempo depois? Por outro lado, se houve um fato real, não terá sido dele que o drama extraiu toda a sua força e o seu potencial?

Observe! Nós todos somos habitantes de um planeta louco, no século XXI, sem tempo de cuidar decentemente de nós mesmos e de quem amamos. E assim mesmo estamos debruçados sobre uma história que nem sabemos direito se realmente aconteceu! De onde, então, brota a força que essa história tem? De onde vem o seu irresistível poder de sedução?

Você concorda comigo, meu amigo, agora, constituído detetive da história, que é preciso responder a essa questão? Você concorda comigo que muito dessa resposta abre horizontes no entendimento que podemos alcançar de nós mesmos e de nossa interioridade? A grande Teresa d’Ávila dizia que um minuto de auto-conhecimento vale mais que muitas horas de oração. Você concorda comigo, digo, com ela? É a Teresona!

Então, é bastante provável que um fato real tenha acontecido e que ele, justamente, ele é que esteja por detrás da narrativa do Lázaro. E que esse fato tenha ocorrido por volta do final primeiro século, no momento em que o evangelho de João era escrito. Um fato real. Qual?

Pense nalgum líder de comunidade. Agora, pense nalgum líder de comunidade, daquela época. Aproveite, também, e imagine que esse líder se chamava Lázaro (e por que não?). Imagine que ele houvesse perdido o entusiasmo, o élan, a garra de continuar acreditando e lutando pelos seus ideais. Imagine que era justamente aquilo em que ele acreditava que mantinha seu desejo de viver. Que suas crenças eram a viga que sustentavam a casa. Imagine que ele nem quisesse mais viver! Já imaginou onde vai dar isso? Quem perdeu isso, perdeu tudo. Perdeu a si mesmo. Morreu. Morreu para a vida do espírito. Matou a vida em vida. Bem pior que a morte, né!

Se isso aconteceu, a bem da verdade, não foi nem a primeira nem a última vez. Essas coisas acontecem todos os dias, e sempre desembocam nos mesmos resultados, com uma previsibilidade espantosa. Seja como for, toda vez que alguém abandona, vende ou troca os seus ideais por qualquer moeda corrente, confundindo isso com o nobre mister de cuidar da própria vida, toda vez que isso acontece, esse sujeito morre. Mas não morre sozinho; com ele, um punhado de gente morre junto.

O que eu estou querendo dizer é o seguinte: é bem provável que lá pelos idos do final do primeiro século, algum líder da comunidade (cristã) tenha perdido os ideais em que acreditava. Morreu a morte do espírito.

Alguém viu aquilo, associou com algo que ele conhecia de uma antiga história envolvendo uma família de Betânia, juntou as duas histórias, e encontrou um meio de contar o que estava acontecendo, ali, por perto. Um meio como nenhum outro relato jornalístico seria capaz de descrever de forma tão envolvente. Como uma metáfora. Quem lesse uma, entenderia a outra.

Consegui ser claro?

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 6

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Que ligação é essa entre o amor e a morte? Ainda não tive ocasião de voltar a essa pergunta que ficou dependurada ali atrás. Antes preciso falar de Betânia. Foi lá onde tudo começou. No começo do evangelho, João menciona Betânia.

Compare João 1,28: “Essas coisas se passaram em Betânia, do outro lado do Jordão, onde João estava batizando.”

Com João 10,40: “Novamente, se retirou para além do Jordão, para o lugar onde João batizava no princípio, e ali permaneceu”.

Parece que o autor do evangelho de João moldou esse “lugar onde João batizava no princípio” para estar no começo de tudo: quando tudo começa, no capítulo 1, e quando tudo recomeça, no capítulo 11.

Na verdade, esses lugares não existem. Eles só existem na topografia simbólica do evangelho de João. Esse lugar é um lugar imaginário, o lugar ideal da comunidade dos discípulos, onde eles podiam conviver, ao mesmo tempo dentro e fora da influência das autoridades judaicas e do perigo que os rondava: “Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do mal” (Jo 17,15). Perigos, sempre existiram.

O evangelho de João é datado entre 95 e 100 DC, provavelmente, logo em seguida à morte de Domiciano e o início do governo dos chamados “cinco bons imperadores”, que promoveram a paz no império e, sobretudo, não importunaram os cristãos. Domiciano havia promovido a segunda grande perseguição aos cristãos. Agora, abria-se um tempo de relativa paz.

É nesse contexto que o autor do evangelho de João escreve. Há paz. Mas ainda há medo. Em todas as reuniões, comparecem cristãos mutilados pelas torturas. As famílias choram seus mortos. O perigo ainda ronda e nunca se pode subestimar o inimigo. Na situação dos discípulos de João, os inimigos se escondiam atrás das portas. Eram os judeus da seita dos fariseus, que haviam fugido para a Ásia Menor, na época chamada de Anatolia, hoje, a Turquia. Lá, vivia a comunidade fundada por João. Para lá, fugiram os judeus. Essa mistura não ia dar certo.

Pois bem. É nesse contexto de pororoca que o evangelho de João foi escrito. Forças contraditórias espremiam um pequeno grupo de cristãos, ilustres joão-ninguém dissidentes, que não sabiam direito nem qual era o seu rumo nem qual era a sua identidade. Na carteirinha de afiliação não havia nada escrito.

Betânia, portanto, não é um lugar, é uma situação. Se você conferir, no início do relato do capítulo 11, os discípulos relutam em concordar que Jesus possa passear pela Judéia incólume. “Disse Jesus: Vamos outra vez à Judéia. Os discípulos contestaram: Mestre, agora a pouco os judeus queriam te apedrejar, e vais de novo para lá?” (Jo 11,8).

Betânia, colada em Jerusalém, tinha para aquele pequeno grupo o significado de “perder a noção do perigo”. Nesse sentido, Betânia era justamente uma metáfora daquilo que os cristãos da época de João, ano 100 DC, viviam: o perigo mora ao lado, talvez, dentro. Não tem como, às vezes, rendo-me a Sartre: em não poucos casos, “l’enfer c’est l’autre”.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 5

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11



Lázaro foi um caso de amor. O amor é sempre transferencial. Uai, que novidade é essa: amor transferencial?

Amor transferencial é uma forma de amor, mas é, também, uma ferramenta de trabalho. Trata-se de um fenômeno que surge espontaneamente na clínica, no encontro entre paciente e analista. Freud batizou esse fenômeno de “transferência”. O paciente vive com o analista uma espécie de amor que, em tudo, repete maneiras antigas, moldes anacrônicos de amar. Mas, amar o quê, a quem? Ora, só duas pessoas são os modelos originais da vida: pai e mãe. O resto é cópia. Pela vida afora, o que você fez foi repetir o jeito como amou e se sentiu amado por aqueles modelos originais da vida. São os moldes primeiros do amor. E eles retornam dessa forma, nisso que se chama transferência. Não importa quem ocupe aquele lugar. Pode ser o analista, o médico, o professor, o padre, o tio, ou qualquer outra figura, e tudo isso no feminino também. São os objetos de amor, as maneiras com que cada um construiu a sua marca registrada de amar: uma espécie de impressão digital do amor.

Numa família, pode haver muitos irmãos. Não importa! Cada um vai amar de um jeito, viver de um jeito, existir do seu jeito. Quando chegar a hora, cada um vai morrer do seu jeito. Na vida e na morte, cada um é absolutamente ele mesmo. No entanto, a existência vai recortando moldes e imprimindo em cada um a sua tipografia gráfica. Nesse sentido, cada sujeito humano nasce original e morre cópia. Estamos sempre repetindo, cada um a seu modo e na sua originalidade, porém, repetindo. Pode conferir por aí: só existem duas ou três histórias humanas diferentes, que se repetem furiosamente, como se nunca tivessem existido antes.

Esse é o amor transferencial. Mas se for assim, afinal, que amor não é transferencial?

Foram esses amores, os mesmos, que tornaram plena a vida daquela insólita família de Betânia e daquele hóspede singular. O capítulo 11 de João nos mostra, a quente, a intensidade de uma relação de amor transferencial, transbordando em Marta, Lázaro e Maria.

Agora, se essa história de “amor transferencial” parecer complicada demais para você, então, mude os termos. Jogue fora o adjetivo “transferencial”. E fale apenas de amor. Afinal, era isso que eles sentiam por Jesus e Jesus por eles. Era uma relação de amor. Com todas as letras, escritas, sublinhadas e piscando em néon colorido.

Os três amavam Jesus. Como amavam! Amavam demais. E ele tinha tudo pra ser amado, demais. Né! Se você estivesse lá, se vivesse em Betânia, acho que amaria, demais, também.

E Jesus correspondia àquele amor. Demais? Não acho difícil responder que demais, sim. Até porque é muito provável que ele não soubesse amar... de menos. Não tem a cara dele fazer coisa que seja de menos.

ROLDANAS DA VIDA

Na minha terra viviam dois médicos. Certa vez, estando eu por lá, faltou-me um determinado medicamento. Telefonei para uma das duas opções da cidade para pedir a receita.
- Vem cá!
Fui. Ele simplesmente abriu-me a porta e me esticou a receita, conforme eu a havia pedido.
- Quanto, doutor?
- Ara!

Passou o tempo.

Volto à cidade (ia lá muito naqueles tempos), e, de novo, sem o tal medicamento. Ligo para o mesmo médico. Sem tempo de dizer o que pretendia, ouvi o mesmo “Vem cá!”
Fui, certo de levar uma bronca. Bati à porta e uma mão esticou-me a receita, com as mesmas especificações de anos antes, sem que eu precisasse abrir a boca. Simples assim! Lá, era assim.

Na minha terra vivia um padre, não um padre qualquer, mas um daqueles de antes, que eram padre e só padre, e para quem estava muito bom que fosse assim. Quem pedisse missa, ele celebrava, no dia. Quem pedisse confissão, ele atendia, na hora. E, de bônus, carregava nada mais nada menos que a hóstia consagrada no bolso (é!) para dar a comunhão a quem pedisse. Confessou? Comungasse! Onde? Ali mesmo. Simples assim! Lá, era assim.

Na minha terra havia um prefeito. Até aí... Mas era um prefeito sem gabinete. Atendia na rua, em qualquer uma, a qualquer um. Resolvia na hora.
- Ô Zé, manda um trator pra estrada de Luminosa!
- Ô “Das Dor”, vê se a cobrança foi feita correta!
- Ô fulano, manda um carro buscar a fulana que ela tá na hora! (“Tá na hora”, queria dizer que a criança estava nascendo.) Era assim, lá.

Na minha terra, havia um diretor de colégio que vivia todas as horas do dia ao inteiro dispor dos alunos, e carregava aluno para o hospital no próprio carro, e visitava as Repúblicas barulhentas calmando os ânimos, e até tirava os rapazes da cadeia quando a bebedeira os havia convidado ao pernoite na delegacia. Ah! Ia esquecendo. E providenciava almoço e jantar dentro da escola, para que os alunos, sobretudo, os de fora da cidade, se alimentassem devidamente. E atendia a cada um, um a um. Simples!

O médico, o padre, o prefeito, o diretor, eram acessíveis. Assim!

Ah! E havia também um juiz que despachava na casa dele, um farmacêutico que abria a farmácia à noite para vender um (1) Dorflex, um dono de posto de gasolina que vendia o produto para o cliente ir em casa buscar o dinheiro, um dono de banca de revista que trocava a revistinha que a gente já havia lido, um porteiro de cinema que permitia novamente a entrada gratuita de quem já houvesse visto o mesmo filme. (Pra ver de novo não precisava pagar, né!) Simples de tudo.

Dizer que eles não tinham o quê fazer, não era verdade. Só não tem nada pra fazer quem não quer fazer nada. Eles tinham, sim. Mas tinham disposição e disponibilidade. E havia a simplicidade de disporem de si mesmos, do tempo, da vida.

Quando foi, por que foi, e em troca de quê perdemos essa simplicidade?

Hoje, pra marcar médico, a gente corre o risco de morrer antes. Pra falar com o padre, a gente corre o risco de ir pro inferno antes. Pra falar com o prefeito... nunca falei, não, senhor! Juiz? Isso é coisa de um outro mundo. As roldanas da vida, que existiam para fazer da vida um período de leveza, acabaram tornando-se ainda mais pesadas do que a própria vida. É como dizia papai: O molho saiu mais caro do que o peixe.

E se as coisas fossem mais simples? Ganharíamos todos, não?

Para içar o peso da engrenagem social foram montadas roldanas. Acho que é assim que se chama aquele trem que gira uma cordinha e levanta o peso. A roldana não pode fazer o peso ficar mais pesado nem pode ser mais pesada que o peso. Acho que não! Se ficar... Uai?

Quero aproveitar para agradecer àquele médico, que me arrumou gentilmente as receitas de que precisei. (E ao Gustavo e à Neuza que me atendem prontamente, também). Quero aproveitar para agradecer àquele padre, por ter me ouvido quando precisei, da forma mais gratuita que pude esperar um dia ser ouvido. Quero aproveitar para agradecer aos prefeitos e juízes e delegados e sei-lá-mais-quanta-gente, por viabilizarem tantas soluções encrencadas de tantas vidas encrencadas. E a todos os diretores e diretoras do que quer que seja, de onde quer que seja, e seja lá quem forem, que tenham sob si o cuidado de outrem. E que transformem esse poder em agradável serviço. Não basta só ser serviço. Tem de ser agradável também. Ah, tem!

Aproveito para agradecer a quem tenha o dom de transformar a vida simples numa coisa ainda mais simples. Seja como for, ela vai passar. Pensando bem, já está passando. Quando menos se vir, passou. Não vale a pena que não seja simples. Não vale a pena se ficar pesada. Não vale a pena se as roldanas emperrarem de vez.

Só será bom se for leve, assim. Se em qualquer “lá”, a vida for assim: simples, assim.

domingo, 9 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 4

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Começo lembrando algo que copiei da minha guru-master: que não é possível que um texto em cartaz há 4.000 anos não tenha nada a dizer. Se o texto bíblico caiu no vão da defasagem da vida foi muito mais pelo anacronismo dos seus “defensores”, que propriamente pela sua força interna.

Vamos ao texto.


“Um tal Lázaro de Betânia, aldeia de Maria de sua irmã Marta estava enfermo” (Jo 11,1).


Não podia haver jeito mais impreciso de começar um texto: “Um tal Lázaro...” Pois é assim que o texto começa. E essa forma de começar esse texto denuncia que algo estranho pode estar acontecendo. Não são os três, amigos de Jesus? Lázaro, em especial, não é “aquele que amas”, como disse o mensageiro? Então, como assim, “um tal Lázaro...”? Ou esse Lázaro é muito importante para ser simplesmente “um tal” ou esse “um tal” quer apontar, justamente, para que tio de importância se trata nesse texto, de que amor esse texto se impregna e de que, afinal, estamos tratando aqui.
Sendo assim, a primeira pergunta é: O que estamos tratando aqui? O que temos neste texto?

Temos um trio de pessoas, bastante diferentes das outras pessoas. Na verdade, bem esquisitas. Lázaro, Marta e Maria são três solteirões, sem pai nem mãe nem filhos nem sobrinhos, vivendo apenas um para o outro. No Oriente Médio, na época de Jesus, seria uma família fora do prumo.
Observe que esse trio de irmãos não parece em lugar nenhum dos outros evangelhos, só aqui. Lucas fala de duas irmãs chamadas Marta e Maria que recepcionaram Jesus (Lc 10,38) e em outro lugar conta a parábola de Lázaro, um mendigo (Lc 16,20). Mas em lugar nenhum eles estão juntos e muito menos são irmãos.

Então, a montagem dessa família por João segue critérios que não são exatamente histórico-biográficos.

E temos Jesus, o hóspede. Mas não um hóspede qualquer. Jesus foi chamado, angustiosamente, esperado. As irmãs mandaram chamá-lo quando o irmão caiu enfermo. E ele chegou. E ao ouvirem que ele havia chegado, as duas saíram correndo ao seu encontro, e disseram a mesma coisa: “Senhor, se você estivesse aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11,21.32). As duas apostaram todas as cartas nele. Concorde: ele não era um hóspede qualquer. Era especial. Mas também concorde: aquela família era, no mínimo, esquisita. Vá lá: especial!

A segunda pergunta é: O que amarra e o que prende quem a quem, no texto? Não seria a intensidade dos amores que ligavam aquele trio a Jesus e Jesus a eles? Observem: eles amavam Jesus, mas, também, Jesus os amava. Todos estão ligados a todos por vínculos poderosos que podem conduzir à vida e à morte. Vínculos de vida também podem conduzir à morte. Tudo depende da intensidade com que as cordas sejam amarradas.

Eles abriram a porta de sua casa e Jesus entrou. Jesus abriu a porta de sua intimidade e eles entraram. É bom não esquecer que a porta que o outro escolheu para entrar na sua vida foi justamente aquela que você escolheu para abrir.

Outra coisa que não se deve também esquecer é que a vida não é feita de altruísmos. A vida é feita de trocas. Só é bom se for bom para ambas as partes. Só é bom quando existe troca.

Para poderem viver a própria vida com liberdade, aqueles três irmãos – Marta, Maria e Lázaro – precisam perceber que o amor entre eles não pode ser exclusivo nem paralisante. Por outro lado, para poder morrer a própria morte com liberdade, Jesus terá de realizar mudanças nítidas e radicais em relação a eles. Jesus terá de soltá-los e soltar-se deles. “Desamarrem e deixem que ele ande” (Jo 11,44). Soltem Lázaro, para que Lázaro consiga ser Lázaro. Se Lázaro não for solto, se não for livre, ele adoece e morre. Gente presa, dentro de qualquer situação, acaba doente e meio morta. Terrível, isso!

Você pode entender, então, a localização desse texto da morte e ressuscitação de Lázaro – inexistente nos outros evangelhos – imediatamente antes do relato da morte e ressurreição do próprio Jesus. O capítulo 11 de João é o momento de mutação urgente e necessário de pessoas que não podem mais continuar sendo exclusivistas e fechadas, em nenhuma de suas relações. É o ponto de mutação, a hora da muda, nos personagens da trama e na trama dos personagens. São mudanças necessárias. Mudanças que não precisam ser trágicas, mas são quase sempre radicais.

O amor dos três para Jesus era pleno, conturbado, perigoso. Era um amor carregado de uma voltagem que, naturalmente, não pertencia nem cabia ao amor. Um amor capaz de tudo transformar. De dar a vida. De conduzir à morte. Aliás, no caminho para Betânia, quando Jesus determina que vai entrar na zona de perigo dos judeus, Tomé anuncia justamente isso: “Vamos lá para morrer com ele” (Jo 11,16). Ô Tomé, por que não, viver com ele? Por que, justamente, morrer com ele? Por que, afinal, morrer? Que ligação é essa entre o amor e a morte?

Como sempre digo, temos conversa!

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! - 3

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)


Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Como já disse, João escreve sete sinais. O “sinal” de Lázaro é o sétimo e o que mais chama a atenção.

1. Pela extensão do relato;
2. Pela quantidade de detalhes;
3. Pela maneira como os sentimentos são expostos à flor-da-pele;
4. Por anteceder imediatamente o relato da Paixão;
5. E, principalmente, porque, neste sinal, ao contrário dos outros seis anteriores, Jesus se envolve emocionalmente na trama.

Aliás, é isso mesmo. Esse é o único “sinal” em que Jesus se envolve, até o choro. Nos outros “sinais”, ele participa, intervém, faz acontecer, mas não se envolve nem com a problemática nem com a solucionática.

Aqui, existe envolvimento: Jesus chora. E os judeus observam: “Veja como ele o amava!” (Jo 11,36). E tendo comprovado esse amor explícito, claro, não deixaram passar batido: “Ele que abriu os olhos ao cego, não poderia também ter evitado que também esse morresse?” (Jo 11,37).

No “sinal” de Lázaro, Jesus se abre, revela-se, não se esconde nem esconde o jogo. Visivelmente fragilizado pela proximidade da “sua morte”, é aqui, neste ponto, que Jesus é mais Jesus. Todas as demãos futuras de tinta que foram passadas por cima do texto, não conseguiram apagar sua força primitiva. Neste “sinal”, Jesus tem... hesitações.

Enquanto, nos outros sinais, ele age e se move com leveza e liberdade, neste, Jesus se encontra “atado” por sentimentos e apelos que não consegue nem definir nem se desembaraçar. Quando, no final, ele ordena que desatem Lázaro, para que ele se vá, quem, na verdade, estava sendo desatado era Lázaro ou Jesus? Desde o início do texto, quando Jesus ainda se demora dois dias, para só depois avançar o passo e sair do lugar, o relato segue hesitante o tempo todo. É um texto “amarrado”. E termina, como disse, com Lázaro, saindo do túmulo amarrado. “Desatem e deixem-no ir” (Jo 11,44). Mas quem? Do quê? E pra onde?

Durante o texto, todos os personagens estão amarrados: Marta, Maria, Lázaro (esse, literalmente) e Jesus. Como já disse, nos outros sinais, ele sabe o que fazer, vai lá, e faz. Neste, a impressão que se tem é a de que ele não sabe direito o que fazer, demora a sair do lugar, demora em ir, e quando chega, não faz. “Ele que abriu os olhos ao cego, não poderia também ter evitado que esse morresse?” (Jo 11,37). Repito: neste sinal, não há nem leveza nem liberdade. Todos estão amarrados. E aquele era o momento de romper laços. Também Jesus, às vésperas da morte, tem de romper laços. Você nunca pensou nisso, né?

O capítulo 11 de João é reticente do começo ao fim.

Nesse sentido, os evangelhos se encontram entre os grandes exemplos de honestidade intelectual. Nenhum deles, nem o gnóstico João, manteve pruridos moralizantes de estampar um Jesus humano demais: um Filho de Homem. Na ética do Evangelho, a dúvida também tem lugar.

Mas, vou logo explicando que estou lidando com um texto e é só o texto que interessa.

Você pode analisar a Bíblia, como qualquer outro texto, olhando apenas para o texto. Da mesma forma como pode analisar qualquer outro texto. O que existe é o que está escrito. No caso da Bíblia, a análise do texto bíblico obedece às normas de uma ciência que se chama Exegese Bíblica. Para ela, interessa tanto o que é dito como o que é omitido. Como em todo relato, em tudo aquilo que a fala humana deixa vazar, “buracos” ficam abertos, “lugares vazios” são tão eloquentes como aqueles em que a palavra toma a palavra. Quando é o silêncio que toma a palavra, um faro de detetive há de ser chamado para ler o que não foi escrito. Aliás, principalmente, o que não foi escrito.

Os Concílios de Nicéia, Éfeso e Calcedônia afirmaram a divindade de Cristo e suas teses continuam inteiramente válidas e respeitadas. Hulalá! Mas, aqui, não estamos falando do Cristo Filho de Deus, mas de Jesus de Nazaré, o homem histórico, com suas pulsões e suas vicissitudes, com seu psiquismo humano, carregado de alegrias, angústias e medos. E, sobretudo, de sua incrível humana capacidade de amar. Marcos observa no relato do episódio do jovem rico, que Jesus olhou para ele e o amou. É esse sujeito que ama que me emociona. Se dobro joelhos a todo amor, que dirá, a esse!

O que me interessa, neste texto, não é nenhum maior esclarecimento sobre a divindade do Salvador, mas o conhecimento da complexidade da alma humana. O que me interessa no capítulo 11 de João não é o quê é dito, mas o como é dito. E, sobretudo, como se movimentam os personagens da trama. Só isso. Mas tudo isso.

O caminho é longo, garanto, e cheio de surpresas. Coragem. Vamos lá!