domingo, 9 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 4

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Começo lembrando algo que copiei da minha guru-master: que não é possível que um texto em cartaz há 4.000 anos não tenha nada a dizer. Se o texto bíblico caiu no vão da defasagem da vida foi muito mais pelo anacronismo dos seus “defensores”, que propriamente pela sua força interna.

Vamos ao texto.


“Um tal Lázaro de Betânia, aldeia de Maria de sua irmã Marta estava enfermo” (Jo 11,1).


Não podia haver jeito mais impreciso de começar um texto: “Um tal Lázaro...” Pois é assim que o texto começa. E essa forma de começar esse texto denuncia que algo estranho pode estar acontecendo. Não são os três, amigos de Jesus? Lázaro, em especial, não é “aquele que amas”, como disse o mensageiro? Então, como assim, “um tal Lázaro...”? Ou esse Lázaro é muito importante para ser simplesmente “um tal” ou esse “um tal” quer apontar, justamente, para que tio de importância se trata nesse texto, de que amor esse texto se impregna e de que, afinal, estamos tratando aqui.
Sendo assim, a primeira pergunta é: O que estamos tratando aqui? O que temos neste texto?

Temos um trio de pessoas, bastante diferentes das outras pessoas. Na verdade, bem esquisitas. Lázaro, Marta e Maria são três solteirões, sem pai nem mãe nem filhos nem sobrinhos, vivendo apenas um para o outro. No Oriente Médio, na época de Jesus, seria uma família fora do prumo.
Observe que esse trio de irmãos não parece em lugar nenhum dos outros evangelhos, só aqui. Lucas fala de duas irmãs chamadas Marta e Maria que recepcionaram Jesus (Lc 10,38) e em outro lugar conta a parábola de Lázaro, um mendigo (Lc 16,20). Mas em lugar nenhum eles estão juntos e muito menos são irmãos.

Então, a montagem dessa família por João segue critérios que não são exatamente histórico-biográficos.

E temos Jesus, o hóspede. Mas não um hóspede qualquer. Jesus foi chamado, angustiosamente, esperado. As irmãs mandaram chamá-lo quando o irmão caiu enfermo. E ele chegou. E ao ouvirem que ele havia chegado, as duas saíram correndo ao seu encontro, e disseram a mesma coisa: “Senhor, se você estivesse aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11,21.32). As duas apostaram todas as cartas nele. Concorde: ele não era um hóspede qualquer. Era especial. Mas também concorde: aquela família era, no mínimo, esquisita. Vá lá: especial!

A segunda pergunta é: O que amarra e o que prende quem a quem, no texto? Não seria a intensidade dos amores que ligavam aquele trio a Jesus e Jesus a eles? Observem: eles amavam Jesus, mas, também, Jesus os amava. Todos estão ligados a todos por vínculos poderosos que podem conduzir à vida e à morte. Vínculos de vida também podem conduzir à morte. Tudo depende da intensidade com que as cordas sejam amarradas.

Eles abriram a porta de sua casa e Jesus entrou. Jesus abriu a porta de sua intimidade e eles entraram. É bom não esquecer que a porta que o outro escolheu para entrar na sua vida foi justamente aquela que você escolheu para abrir.

Outra coisa que não se deve também esquecer é que a vida não é feita de altruísmos. A vida é feita de trocas. Só é bom se for bom para ambas as partes. Só é bom quando existe troca.

Para poderem viver a própria vida com liberdade, aqueles três irmãos – Marta, Maria e Lázaro – precisam perceber que o amor entre eles não pode ser exclusivo nem paralisante. Por outro lado, para poder morrer a própria morte com liberdade, Jesus terá de realizar mudanças nítidas e radicais em relação a eles. Jesus terá de soltá-los e soltar-se deles. “Desamarrem e deixem que ele ande” (Jo 11,44). Soltem Lázaro, para que Lázaro consiga ser Lázaro. Se Lázaro não for solto, se não for livre, ele adoece e morre. Gente presa, dentro de qualquer situação, acaba doente e meio morta. Terrível, isso!

Você pode entender, então, a localização desse texto da morte e ressuscitação de Lázaro – inexistente nos outros evangelhos – imediatamente antes do relato da morte e ressurreição do próprio Jesus. O capítulo 11 de João é o momento de mutação urgente e necessário de pessoas que não podem mais continuar sendo exclusivistas e fechadas, em nenhuma de suas relações. É o ponto de mutação, a hora da muda, nos personagens da trama e na trama dos personagens. São mudanças necessárias. Mudanças que não precisam ser trágicas, mas são quase sempre radicais.

O amor dos três para Jesus era pleno, conturbado, perigoso. Era um amor carregado de uma voltagem que, naturalmente, não pertencia nem cabia ao amor. Um amor capaz de tudo transformar. De dar a vida. De conduzir à morte. Aliás, no caminho para Betânia, quando Jesus determina que vai entrar na zona de perigo dos judeus, Tomé anuncia justamente isso: “Vamos lá para morrer com ele” (Jo 11,16). Ô Tomé, por que não, viver com ele? Por que, justamente, morrer com ele? Por que, afinal, morrer? Que ligação é essa entre o amor e a morte?

Como sempre digo, temos conversa!

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