quarta-feira, 30 de novembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 13

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Quem ler o capítulo 5 de João encontrará a história de um paralisado à beira de uma piscina de águas mortas chamada Betesdá. Betesdá em hebraico significa “o fosso”. O autor do Evangelho de João não deixa dúvidas a respeito do que pensa e sente das instituições: para ele, são todas piscinas/fosso de águas mortas. Muita promessa, pouco cumprimento.

O paralisado do capítulo 5 se encontra à beira de uma dessas instituições-fosso. E tem tanto medo de tudo o que o cerca, que não consegue alcançar o tom do próprio desejo, sequer consegue saber o que quer.

Jesus lhe pergunta: “Você quer viver?” Ele responde: “Mas eu não tenho ninguém que me leve à piscina.” Observe que Jesus não faz menção alguma a tal piscina. É o medo que o paralisado sente que o faz inserir a “instituição-piscina” onde Jesus havia perguntado sobre “desejo-vida”. O medo que o paralisa não o deixa saber de si, nem do que quer nem o que do que tem. Só sabe o que não tem: “Não tenho ninguém...” Abandonado, ali, por conta própria, jamais alcançará as tais águas que se movem. E ainda que as alcance, elas de nada lhe servirão. Por quê? Porque ele não sabe o que quer.



Marta está paralisada. Maria, ainda mais. Marta, pelo medo. Maria, pela dor. Paralisadas!

Quando Maria repetiu diante de Jesus a mesma fala de Marta, aquela frase, na verdade, nem era dela nem lhe pertencia. Maria estava apenas repetindo o que, provavelmente, ouvira da irmã. É que lhe faltava a possibilidade de descolar-se da irmã – como faltou também a Marta ter se descolado de qualquer outrem – para poder sentir a própria dor, como sua, e só assim conseguir alvará de licença para exprimir seus sentimentos com o direito que lhe cabia na sua parte de dor.

Paralisadas!

Marta cobra a presença de Jesus. “Se o Senhor estivesse estado aqui, meu irmão não teria morrido”. Mas, na verdade, a cobrança é apenas um soluço disfarçado, já que ela é a primeira que não pode se deixar alcançar pelo acontecimento. Marta pergunta. Mas a pergunta é a de uma adolescente perguntando: O Senhor não olha mais pra nós? Nem se importa mais com a gente? Marta questiona. Mas o questionamento não é o de um adulto: tem nuances de criança perdida e desamparada, prestes a desatar o choro e segurar a primeira mão estendida.

“Se o Senhor estivesse estado aqui...” Essa queixa, na boca de Marta, é uma projeção maciça de sentimentos culposos e raivosos, consigo mesma, em relação à perda do irmão. Se essa Marta for a mesma que aparece no Evangelho de Lucas, ela estava sempre fazendo, sempre indo, respondendo por tudo, colocando tudo no devido lugar. Marta sempre deu conta de tudo. Como é que agora vai conseguir “dar conta” do fracasso de “não ter dado conta” do irmão que morreu?

A pergunta de Marta é obsessiva, mas sua estratégia é histérica. Como assim?

É que Marta interroga o que o outro quer, mas com o único objetivo de saber onde ela mesma pode aninhar o seu próprio desejo. A questão não é saber do outro, é saber de si. E a questão tampouco concerne a um outro qualquer: um semelhante. Marta se dirige a um outro, mas que para ela é um Outro: é determinante. É o calibre de ser determinante que confere a esse Outro o poder que falta à Marta. Qual? O de ela própria poder desejar. Mas desejar, mesmo, o quê? Marta não sabe. Como também o paralisado não sabia. “Se o Senhor estivesse estado aqui...” (de Marta) é o equivalente ao “Não tenho ninguém...” (do paralisado). Com uma diferença: Marta sabe que lhe falta um saber. E que ela precisa alcançar algo que se esconde dentro dela (um segredo? uau!), mas que isso não está relacionado ao saber. Está relacionado ao querer.

Marta não sabe do que ela quer. Então, ela empurra a bola para que um Outro saiba. Quem sabe! Melhor ainda, para que um Outro queira.

Mas ele quer?

“Se o Senhor estivesse estado aqui...” é, na certa, uma paródia (algo dito), afim de que se possa conseguir verbalizar (algo não dito). A pergunta de 1 milhão de dólares era se Jesus (ele, sim!) queria ter estado ali. Ele queria? Mas demorou-se! Se queria, então, por que fez que não quis?

“Se o Senhor estivesse estado aqui...” é, também, sem dúvida, a “melhor” maneira que Marta encontrou de perguntar, a si própria, se ela (ela, sim!) queria estar ali. E se esteve o tanto que quis ter estado para que o irmão não morresse. Ou se não quis tanto assim. Vai saber!

O que Marta perguntou foi, afinal, se aquele fracasso não era, na verdade, um fracasso seu.



Com honras e salamaleques, dedico esse trabalho a Neuza, e ao pessoal da clínica que não faz outra coisa na vida senão dizer a quem quer que seja o Lázaro da vez: Sai dessa, rapaz!

sábado, 19 de novembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 12

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Marta, perdida, racionaliza. Aliás, Marta é a rainha da racionalização. Se ela levar Jesus pelo mesmo caminho, se ele ficar perdido com ela, será que isso poderá abrandar a sua dor? Se ela envolver Jesus na trama das suas racionalizações, poderá diminuir sua angústia? Parece que é o que ela pensa. Note que Marta foi a primeira a se levantar e a ir ao encontro de Jesus. É que Marta está sempre saindo, sempre fazendo, sempre indo, sempre acontecendo. Marta está o tempo todo no ar. Já Lucas sabia disso (Lc 10,38).

Mas, por que Marta corre tanto de um lado para o outro? Por que não consegue parar? A resposta é simples! Marta não consegue parar para não pensar. Não consegue parar porque não pode pensar. “Não, não posso parar, se eu paro eu penso, se seu penso eu choro...” (A letra é de autoria de Marta.) Sair, correr, arrumar, reclamar... Tudo isso tem um significado, aponta na direção de armar defesas contra a angústia. Qualquer coisa, menos pensar. Essas defesas são infantis. E embora as angústias não se resolvam quando o adulto se defende delas, como fazia na infância, na maioria das vezes, é assim que ele continua fazendo. Quando a criança, enfastiada com o brinquedo ou a história, pergunta: O que é que a gente vai fazer agora?, ela, na verdade, está lançando as pontes por onde o sujeito vai passar em futuro bem próximo. “Fazer” é o verbo preferido das crianças. O verbo, adulto e satisfatório, será o verbo “pensar”. Mas pensa que é fácil?

O pensamento que Marta pensa, quando conversa com Jesus, não é pensamento. Aliás, o diálogo de Marta não é diálogo. Marta fala a fim de ouvir a própria voz. Marta se enreda na própria dor e emite frases desconexas. O diálogo entre ela e Jesus parece um diálogo de surdos. Eles se falam. Mas ninguém ouve o outro. Ambos perderam alguém querido. Ambos estão sufocados pela dor. A dor não deixa pensar. A dor prefere repetir, qualquer coisa, um movimento involuntário, mesmo que ele traga ainda mais dor. A dor repete qualquer coisa, para ver se a dor passa. Mas não passa. Enquanto repetir, não.

Marta repete duas vezes a expressão “eu sei”. Ela parece saber muitas coisas. Mas no fundo, não sabe nada e nem quer saber. Quem diz muito “eu sei”, será que sabe?

Marta só quer o irmão de volta. É só isso o que ela quer saber, é só isso o que ela sabe, é só isso o que ela quer. Mas, do que fez o irmão desandar, disso, ela nada quer saber. É provável que o que fez o irmão desbarrancar pela via da morte seja uma realidade que também atinja a ela e a sua irmã. Por isso, ela não quer saber nem ver. Marta se torna cega porque é surda. Não quer e não pode enxergar. Mas, o que ela não quer e nem pode, na verdade, é ouvir. Marta tem medo de ouvir seu mundo interno. Esse medo, que tudo paralisa, travou-a, cegou-a, ensurdeceu-a. Pobre Marta! O medo tomou conta dela: o medo de saber.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 11

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11



Muitas vezes, e de muitos modos, creio, você já se sentiu frágil diante das exigências que tem de suportar, todos os dias. Há tanta cobrança pedindo atenção, solicitando opinião, exigindo atuação que, de repente, a vontade mesmo é de sair correndo por aí, gritando: Não estou mais aqui!

Né?

Isso, que sobe e aperta, e quase nos ameaça implodir, tamanha exigência com que se impõe, tem nome: chama-se angústia. A palavra vem do latim: angus, significa lugar apertado. É isso que você sente quando está angustiado.

Quando qualquer angústia ameaça a sua integridade, a primeira coisa que lhe parece viável é dar um jeito de manipular a percepção para que você mesmo, já desnorteado, não sucumba diante de uma angústia sem nome e sem tamanho.

Entra em cena a manipulação da percepção. É simples! Você viu o que não queria ver? Então, faz que não viu. E faz tão bem feito que acaba não vendo, mesmo aquilo que viu. Você ouviu o que não precisava ouvir? Então, faz que não ouviu. E faz tão bem feito que acaba não ouvindo, mesmo aquilo que ouviu. Segue por aí. Quando alguém não quer se dar conta de algo – vendo, ouvindo, tocando, cheirando, sentindo – simplesmente, gira a chave, manipula a percepção, e nada disso acontece. O segredo estava naquilo que deveria ser percebido. Se não é mais... não é mais. O que não se encontra nos autos, não existe no mundo. Não é assim que se exprime a vetusta magistratura jurídica? Você que não é nem vetusto nem magistrado nem jurídico, sabe que é melhor não ver ou ouvir, do que ver e ouvir e se angustiar.

Entendeu?

O importante é reter isso: quando alguém manipula a percepção de algo, ele não “faz de conta” que não viu ou ouviu o que não queria ver ou ouvir. Ele realmente não viu nem ouviu. Ele baniu a percepção. A manipulação, quando bem feita, atinge pontos de excelência tão grandes, que aquilo que a pessoa não quer ver, ouvir ou sentir, simplesmente, sai do campo da percepção. Ela não vê, mesmo. Não ouve, mesmo. Não sente, mesmo. Dá até para mudar o antigo provérbio: “Pior cego é o que não quer ver”. Daqui pra frente, que tal “Melhor cego é aquele que não quer ver”?

E tudo por causa de quê? Tudo por causa dessa senhora incômoda chamada angústia. Ela é uma boa atriz. Ela convence. Convence você! Quando ela resolve aparecer, demais, faz estragos.

E aí, os mecanismos de defesa entram em cena para defender as suas fronteiras. As fronteiras do ego, pobre coitado, precisam de um “ministério da defesa” interno atuante para se defenderem. Mas o ministério falha (ta na moda isso!). E quando nada funciona, quando os mecanismos de defesa não dão conta das fronteiras internas, ainda resta um último mecanismo, forte, cansativo, difícil de ser contornado. É a racionalização: o último reduto de um ego sitiado num beco sem saída.

Racionalizar é diminuir o impacto de qualquer percepção ao mínimo ponderável possível. É quando a gente quer explicar tudo, pra gente mesmo e para os outros, mesmo aquilo que a gente já sabe que não tem explicação. Fazemos isso o tempo inteiro.

De repente, numa tarde quente de um dia de semana, estou eu no shopping com um baita sorvete na mão, quando sou abalroado por um indiscreto conhecido. Que logo vai disparando: Aí, Renato, passeando, hein! (Como se ele também não estivesse fazendo a mesma coisa!) E eu, constrangido, imediatamente, saco do bolso uma resposta que nem havia pensado antes: Não, só vim aqui pagar uma conta! Pobre di eu!

Não é assim? E precisa ser assim? Claro que não! Quando o outro disparou o “passeando, hein!”, eu poderia perfeitamente responder qualquer coisa como “Pois é!”. Teria sido, simplesmente, mais fácil e econômico concordar com ele, virar pro outro lado, e continuar minha vida e meu sorvete na tarde quente, não devendo nada pra ninguém. A vida é simples!

O fim do mundo é que, nesses casos, o raciocínio não conduz a cena dos muitos artistas no palco de mim mesmo. Pelo contrário, confunde ainda mais. Apaga fogo com gasolina. Quando mais se racionaliza, pior fica. No fim, o que eu quero dizer é que a racionalização, como todo mecanismo de defesa, é sempre a saída infantil à investida de um adulto.

Você, – digo eu – adulto, não precisamos disso.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

UMA PARÁBOLA QUE SERVE PRUM PUNHADO DE COISA

Numa praia deserta de mar agitado, um pequeno grupo se dedicava a salvar vidas. Sabe, aquela coisa, de gente se afogando e gente correndo pra desafogar? Era assim.

Com o tempo, o grupo cresceu, ficou famoso. É claro! (Preciso lembrar que a fama é sintoma de incompreensão?) Então, como o grupo ficou famoso, mais gente foi chegando pra salvar gente, e quem não podia chegar mandava gente em seu nome, pra salvar gente, e depositava quantias no banco, pra salvar gente, e muita gente doou tudo o que tinha, pra salvar gente, sem falar, quanta gente morreu na praia deserta de mar agitado... só pra salvar gente.

Com o tempo, o grupo ficou mais famoso ainda. Óbvio!

Com o acervo das doações, surgiu a necessidade operante de construir uma sede. Sim, aquela tapera antiga onde eles começaram a abrigar os náufragos já não servia mais. Sim, porque era preciso mostrar resultados mais assertivos, leia-se: proativos. Sim. Então, uma grande sede foi erguida com o nome do Fundador para que a sua memória fosse mantida, já não tanto por causa da estatura dos salvadores, mas, sobretudo, pela estatura da construção. Tijolo é tudo!

E, é claro, o grupo ficou mais famoso ainda. Desculpe-me repetir isso.

Na medida em que o grupo crescia em famosidade, diminuía em operacionalidade. Se me faço entender, o que eu quero dizer é que as pessoas continuavam se afogando muito por ali, porque embora a praia não fosse mais deserta, o mar continuava agitado. O perigo era sempre iminente. O que não era eminente era a deliberada vontade de se atirar às ondas para salvar os náufragos. Se bem me lembro, criou-se até a tese de que os afogados tinham direito a se afogarem pelo simples fato de se terem afogado por livre e espontâneo afogamento. Vê!

E assim e dessa forma a sede crescia e necessitava de braços e mãos para a organização interna e, daí, menos mãos e braços sobravam para a única razão de ser daquilo tudo ali, que era, justamente, aquilo tudo ali: o mar agitado, os afogamentos... Ara, você já sabe!

Contudo, não se canse de perceber que o tempo altera as prioridades. Já não era mais importante o tecido da roupa náutica que os salvadores usavam ao resgatar em alto-mar, mas o tipo de tecido com que se apresentassem nas horas vagas de salvamento. Não se detenha muito na qualidade do perfume que usavam, porque não era a mesma que os náufragos exalavam ao saírem das águas. Não se canse de observar que as pessoas ao redor, fascinadas pela fama do grupo, perdiam de vista o que o grupo também já perdera em capacidade de se encontrar.

É que parecia tão normal que já não se resgatasse náufrago algum, que passou a correr mundo a ideia de que os náufragos já não existiam porque as pessoas haviam aprendido a não se afogar. Impressionante!

Mas o mar continuava agitado. E outras praias continuavam desertas. Só que agora os poucos náufragos resgatados, pingando água e sujeira, só entravam pela porta da frente, só pisavam o tapete da entrada, caso houvesse mídia para apresentar o fato. De resto, entravam pela porta dos fundos. Sujos, né!
Mas o mar continuava agitado, muito agitado.

Incomodado com aquela situação esdrúxula, um pequeno grupo dentro do grupo antigo resolveu colocar as cartas na mesa.
- Não havia sido aquela a intenção do Fundador – disseram.
E apesar da sede carregar nome e estátua e sei-lá-mais-o-quê do Fundador, nalgum momento, havia sido traída a Ideia Fundadora. Desde o princípio, havia vigorado o Conceito Fundador que estabelecia o resgate aos náufragos como a identidade-missão do grupo. De repente...

Lembram que eu falei que a fama é sintoma de incompreensão? Pois é. A fama empurrou a Ideia Fundadora pela enxurrada em algum bueiro. E ela se perdeu. Mas a fama também impediu que o grupo percebesse internamente o que todos já haviam registrado externamente.

Então, aquele pequeno grupo se separou do grupo antigo, desceu praias abaixo, ergueu outra pequena cabana, incorporou trajes de salva-vidas, e mais que traje, a ideia, e começou tudo outra vez.

Mar agitado. Praia deserta. Náufragos. Salvamentos. Intenções genuínas. Gente salva. Doações. Mar agitado. Praia deserta. Náufragos. Salvamentos. Náufragos. Doações. Sede nova. Praia cheia. Tudo de novo. Tudo de novo. Tudo de novo.

(...)

Quem passar por aquelas paragens verá inúmeras sedes institucionais carregadas das melhores intenções de salvar náufragos. O mar continua agitado. Gente continua se afogando. Parece que ninguém mais se dá conta.