sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

CAMA DE PROCUSTO

Leia com atenção o trecho abaixo. Depois eu digo de onde eu o tirei e aonde quero chegar.

“- Mentira! Vou te mostrar os livros; segundo eles, todos os crimes se devem ao ambiente insalubre, e nada mais. Frase magnífica! De onde se deduz que, se a sociedade estivesse normalmente constituída, então acabariam todos os crimes, visto que já não haveria contra o que protestar e todos passariam instantaneamente a ser inocentes.

E a natureza? Não a levam em consideração. Puseram-na no olho da rua. Não toleram a natureza. Para eles não é a natureza que, desenvolvendo-se de um modo histórico, vivo, até o fim, acabará por se transformar ela mesma numa sociedade normal, mas, pelo contrário, será o sistema social que, brotando de alguma cabeça matemática, procederá em seguida a estruturar toda a humanidade e, num abrir e fechar de olhos, a tornará justa e inocente, mais depressa do que processo vivo, sem seguir nenhum caminho histórico e natural. Por isso, eles sentem instintivamente aversão pela história... Por isso, também, eles não amam o processo vital da vida, não querem nada com a alma viva. A alma viva da vida tem exigências, a alma viva não obedece mecanicamente, a alma viva é suspeita, a alma viva é retrógada. E eles não podem construir nada com alma de borracha... que não será viva nem terá vontade, será uma escrava e não se revoltará...

É simplesmente impossível saltar com a lógica por cima da natureza. A lógica pressupõe três casos, mas há milhões deles. Pois façam tábua rasa desses milhões e reduzam tudo ao simples problema do conforto! Essa será a solução mais fácil do enigma. Ela é de uma clareza sedutora e, sobretudo, evita o incômodo de pensar. Porque o essencial é isso: não ter que pensar. Todos os mistérios da vida podem ser compreendidos em duas folhas de papel impresso. O meio significa muito na criminalidade, isso eu afirmo. Mas um quarentão desonra uma menina de dez anos. Foi o meio que o induziu a isso?”


Parece coisa nova. Mas não é, não, viu! Ficha completa: Dostoiévski, em “Crime e Castigo”, de 1866. Parece coisa nova, mas não é.

Naquela época, discutia-se muito a fundamentação dos delitos e, afinal, das motivações da alma humana. Como as teses socialistas estavam em voga, tudo se reduzia ao “meio”. Mas se um quarentão desonra uma menina de dez anos, foi o meio que o induziu a isso? – pergunta o autor através do personagem.

Lá, o meio. Aqui, o gene. Lá, o lado (de fora) de fora. Aqui, o lado (de fora) de dentro. Mas sempre o lado de fora.

Curiosamente, eu estava lendo justo essa página de Dostoiévski, enquanto a Mônica Waldvogel entrevistava um par psiquiatra-psicóloga que não deixava em nada a desejar daquilo que André Green chamou de “abordagem veterinária” das questões humanas. Coisa que, aliás, os veterinários abominarão se ouvirem. Porque, eles, ao que tudo indica, e ao contrário, humanizaram o atendimento à sua distinta clientela. Já, em outros campos da atividade humana, infelizmente, o atendimento foi robotizado.

Sério!

Acabei de ligar para uma igreja afim de “marcar missa”. Fui atendido por uma máquina que informou os horários e sutilmente me informou que eu estava fora do “horário comercial”. “Para pagar o dízimo, tecle 1; para saber o horário de atendimento, tecle 2...” Caramba!, pensei. A coisa virou comércio, mesmo! Daqui a pouco, vai virar indústria. “Para encomendar água benta, tecle 1...” Não tardará, e ouvirei: “Em caso de angústia, não se suicide: espere até terça-feira, porque na segunda estamos de folga!”

Sério!

Dia desses, custei a agendar o médico. Fui... atendido por um programa de computador. Ele, mesmo, não olhou para mim. Sabia tudo do programa e o programa sabia tudo de mim. Ele, mesmo, o fulano humano, apenas resmungava quando a máquina não respondia. Na outra encarnação – jurei! – voltar bicho, de preferência, canino da Dra. Jackline ou felino da Dra. Eliana. “Vem cá com a mamãe!” Não é muito melhor ouvir isso do que ser atendido por uma máquina e tratado por outra?

“A alma viva da vida tem exigências, a alma viva não obedece mecanicamente, a alma viva é suspeita, a alma viva é retrógada. E eles não podem construir nada com alma de borracha...”

Dostoiévski! Século XIX!

Ta certo. Evoluímos bastante quando instalamos um computador com multi-qualquer-coisa em cada quarto. E mais um punhado de engenhocas multi-facilitadoras-não-se-sabe-bem-pra-quê acopladas a todos os botões multi-facilitadores... (Pula!) Evoluímos quando criamos leis de proteção aos animais. Evoluímos quando já podemos encher a geladeira com mais coisas do que antes. Evoluímos. Evoluímos.

E ainda fazemos guerra. Mentimos. Enganamos. Espoliamos... A lista não tem fim.

Mas, sobretudo, será mesmo que evoluímos ao perder de vista a sofisticação da alma humana ao coisificar os sentimentos? Certas abordagens fazem-me sentir uma ameba impulsionada por estímulos eletros-químico. Vou acabar tendo inveja do cachorro do vizinho!

A maioria conhece Procusto. Segundo uma lenda grega, ele era um bandido que oferecia hospitalidade aos viajantes perdidos. Ele os deitava numa cama de ferro e, quem fosse mais longo do que a cama, ele cortava o que sobrava; quem fosse mais curto, ele esticava até ficarem do tamanho da cama. Procusto era um normalizador. Sempre senti vontade de fazer dele o patrono daqueles que aplicam testes, contam com algum tipo de reeducação ou reduzem o insaciável desejo humano a um corriqueiro e banal “sonho de consumo” normativo.

Não seria a tal razão da vida algo a ser situado num horizonte mais além? Não será a razão de uma pessoa descobrir-se para tornar-se – não conforme a norma, a moda, a etiqueta ou a bula – simplesmente, aquilo que é?

RECUSE-SE

No ano que vem,
recuse-se a cair.
Se não puder se recusar a cair,
recuse-se a ficar no chão.
Se não puder se recusar a ficar no chão,
eleve seu coração
e,
como quem tem fome,
peça que o encham.
E ele será cheio.
Podem empurrá-lo para baixo.
Podem impedi-lo de se levantar.
Mas ninguém poderá impedi-lo
de elevar seu coração.
Só você.
É no meio da aflição
que tantas coisas ficam claras.
E se alguém diz que nada de bom
resultou disso
é que ainda não está escutando.

Não é 2012 que será diferente.
É a gente.

OFERTÓRIO

Se nada tens a oferecer ao Senhor,
apresenta tuas dores, tua fadiga apenas.
Quanto custou a tanta gente,
este pedaço de pão colocado na patena!

Se tens as mãos vazias e a boca amarga e seca,
oferece o coração machucado, meu amigo.
Para que o vinho espumasse nesse cálice
foi preciso - não foi? - pisar a uva e moer o grão de trigo.

Se nada tens em ti mais que amargura e pecado,
o cansaço de vier e a angústia que incendeia,
que tuas mãos elevem para o céu estas míseras coisas,
pois o Amor, de antemão, as acolheu na ceia!

E se nem forças tens para ofertar e implorar,
se em ti tudo é abandono e solidão tremenda,
silenciosamente aceita - e é só - que um Outro,
te receba, vele por ti e sejam um só dom
o ofertante e a oferenda.

(Daniel Rops - 1901-1965)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 16

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Não deixa de instigar um calafrio de sentido o fato de que, justamente, quando me propus a acompanhar Lázaro, em sua ida e volta ao mundo do sem-sentido, fosse também eu enredado nos mesmos sentimentos e no mesmo vazio de significado de Marta e Maria.

“Se o Senhor estivesse aqui, meu irmão não teria morrido”.

Vida esquisita, essa, sô! Há mais estranhezas entre o céu e a terra do que suponha...




Pois é. Depois da conversa entrecortada com Jesus, Marta volta para casa, vai ao encontro de Maria e lhe diz em segredo: “O Mestre está aí, e chama você”.

“Tendo dito isso, foi chamar sua irmã Maria. Falou com ela em voz baixa: O Mestre está aí, e chama você. Quando Maria ouviu isso, levantou-se depressa e foi ao encontro de Jesus” (Jo 11,28-29).

A palavra grega, traduzida por “em segredo” (em algumas versões) ou “em voz baixa” (em outras), é “efónesen”, que significa “disse sem dizer”. O versículo 28 ficaria assim: “Tendo dito isso, foi chamar sua irmã Maria e lhe disse sem dizer: O Mestre está aí, e chama você.”

Há um trocadilho interessante entre o verbo usado para Marta (efónesen) e o verbo usado para o Mestre (fonei). Observe o prefixo “e”. Enquanto Marta diz sem dizer, o Mestre diz, dizendo. O Mestre chama.

É o começo das mutações em Maria. Mas é também o começo das mutações em Marta. Chega a hora na vida em que todos precisam mudar. Um antigo formador dizia que “água parada junta bicho!”

Ter ido ao encontro de Maria, indicar a ela a direção do Mestre – que a chama, realmente, chamando – significou para Marta não guardá-lo exclusivamente para si mesma, não retê-lo, não privá-lo dos outros e nem os outros dele. O Mestre não pertencia nem a ela nem a Maria nem a Lázaro. O Mestre, simplesmente, “não pertencia”. Marta tinha dono. (Quem não tem!) Por isso, dizia coisas sem dizer. Jesus não tinha dono. Quando dizia, dizia. Se chamava, queria. Ele sabia o que queria, sabia querer e podia querer.

Lucas avisou que Maria havia escolhido a melhor parte (Lc 10,42). Se essa Maria de João for a mesma de Lucas, pelo fato de ter escolhido a melhor parte, é provável que já conhecesse esse viés do Mestre. Por isso, pôde ficar onde deveria estar para ocupar o lugar que era só dela e de nenhum outro. Se ela, naquele momento, se encontrava imobilizada pela dor, e se esse era o seu lugar, era ali mesmo que ela deveria ficar, para sentir o que estava sentindo, permitir acontecer o que estava acontecendo, passar por aquele processo e elaborar a frustração. O Mestre chegaria. Não era a hora de sair correndo, desatinada, gritando uma dor que ainda não se havia permitido sentir, por inteiro. O momento era de luto. E o Mestre chegaria. O que Maria fez, nesse momento, era tudo o que precisava ser feito, nada menos, nada mais: passar pelo luto. Esperar pela chegada do Mestre. O Mestre chegaria.

Maria não se faz de vítima. O sofrimento abate? Ela verga. A dor verga? Ela não se quebra. Mas não fica contando com o consolo dos judeus que a foram “consolar”, porque sabe que não é bem consolo o que eles se propiciam a oferecer. Maria se permite sofrer. Ficamos com a falsa impressão dela se ter trancado em sua via dolorosa. Mas não é verdade! Maria só se fecha em si para alcançar a si, sentir até onde vai o sentimento e aprender a se conhecer, lá, onde geralmente todos se escondem em escapismos e evasões. Iludir, no caso, é eludir.

“O Mestre está aí e te chama”.

Só a menção do Mestre, mesmo dita sem dizer, a tira do engessamento da dor. Então, Maria corre e se prostra. Prostração é adoração – proschynesis – o grego não deixa dúvida. Mas o mesmo verbo se presta à demonstração da geografia interior de sua ama. Ela se prostra porque está prostrada. Quem não estaria?

Motivos não lhe faltaram. Lázaro cansou-se, desiludiu-se, frustrou-se, desanimou, morreu. Entregou-se à banalização da vida. Tornou-se apenas mais um. E não era para ser apenas “mais um” que Lázaro havia sido amado. Ninguém que é amado é apenas mais um. Ninguém se é amado consegue ser apenas mais um. Lázaro engordou a estatística das honrosas exceções dos visionários que não enxergam.

Pois é. Maria se dá conta disso. E, quando a ficha cai, ela se encontra à beira de onde Lázaro jaz em sua vida de morte. Daí, não tem jeito, não: ela se prostra e, por que não, morre um pouco, também. E daí, não tem jeito, não: ela repete o mesmo mote de Marta.

“Se o Senhor estivesse aqui, meu irmão não teria morrido.”

O sinal de que Maria morrera um pouco da mesma morte interna de Marta é que ela repete a frase da irmã. E repete, sabe por quê? Por pura repetição. Aquela frase não cabe nos seus lábios nem nos seus sentimentos. Observe que, de repente e sem mais, ela abandona o título íntimo de “Mestre” – Didáskalos – e chama Jesus de “Senhor” – Kyrios – título solene e formal. Esse é o sinal do distanciamento. Sinal de que, nesse momento, mas só nesse momento, Maria havia morrido também. Mas é também sinal de que, na morte, desponta o que vai além da morte. “Senhor” – Kyrios – era o título do Ressuscitado.

Mais um detalhe de suprema importância passa despercebido. Maria se lança aos pés de Jesus (11,32). Marta não fez isso. No capítulo seguinte, no banquete de Lázaro, depois da tsunami, é Maria quem vai ungir os pés de Jesus. Marta não fará isso. É que Maria foi aquela que escolheu a melhor parte. Lembra-se? Lançar-se aos pés, na intimidade de noiva com o noivo, indicava que “a melhor parte” de Maria permanecia sadia.

domingo, 25 de dezembro de 2011

ÉRAMOS SETE

Éramos sete. Ficamos seis.

O tempo parou numa manhã de Natal, num domingo, cedinho, num silêncio de cortar com faca, interrompido apenas pelo canto de pássaros que voavam baixo e pelo som da pá de pedreiro raspando cimento na laje fria.

É que ninguém acreditava naquilo e esperava a qualquer momento despertar do pesadelo. A pá do pedreiro terminou o trabalho, calafetou as fendas e o milagre não aconteceu. Nem mesmo por ser manhã de Natal.

Éramos sete. Sobramos seis.

Peraí. Na verdade, nunca fomos sete, sabe, o número sete: um, dois, três... Nós já fomos seis, cinco, às vezes, quatro. Sempre estivemos espalhados, por aí. Éramos sete. Mas nunca fomos sete, direito. E agora, a menos que não seja verdade, daqui pra frente, seremos só seis.

Mas quando éramos sete, os sete juntos, inteiramente sete, aí a gente “aprontava o sete”.

Você se lembra daquela vez em que a gente literalmente barreou a porta da insuportável vizinha jogando bolinhas de barro? A bem da verdade, não foi exatamente “barro” o que a gente atirou àquela porta, mas poderia manchar a reputação dizer aqui o material artístico exato de que foi composta a obra.

E você chegou a contar quantas telhas da vizinha do quintal de baixo a gente quebrou naquele bombardeio de manga verde? E você se lembra das imprecações da senhora sua mãe a respeito de uma certa torre de antena encostada no alpendre? Não subam aí!, ela disse. Bastou sair e... Bem, o resto já está nos autos.

E você se lembra do dia em que encheu o banheiro (o único) da casa com anfíbios canoros (ditos sapos!) e da gritaria da ala feminina do consórcio familiar? Naquele dia, você apanhou legal! Pela “Sociedade Protetora das Mães” a gente já estava em cana, faz tempo!

Como podia esquecer quando você começou a Odonto e trouxe para dentro de casa (observe o advérbio “dentro”) uma caveira humana numa sacola de papel, debaixo do braço – assim – como se fosse pacote de compras?

E você se lembra daquela vez em que (você) teve a elegante idéia de estabelecer uma ligação direta do bocal da lâmpada com um fio de arame, e só a sorte não nos deixou segurar diretamente no arame? Foi fogo pra todo lado. Caramba! A gente podia ter colocado fogo na casa e isso ia ser o de menos! Naquele dia, éramos dois. Mas valíamos pelos sete. É que, geralmente, éramos sete. Mas valíamos – por baixo? – por dez!

Mas agora somos, irremediavelmente, seis.

Você quis tanta coisa! Mais coisas do que cabia em você! E agora que você foi embora ficamos mais sozinhos, bem mais vazios e muito mais pobres. Muito mais pobres do que a simples humanidade nos condiciona a ser. Nunca mais aquele riso em cascata. Nunca mais as tiradas de humor. Nunca mais as explicações sobre o funcionamento do universo. Nunca mais as “coisas de Aloísio”!

Éramos sete. E sem você não somos nem seis, nem cinco, nem...

Ta certo. Nós construiremos um monumento, contaremos suas histórias, guardaremos as lembranças. Parece que é assim que se faz. Mas nenhum monumento terá o seu tamanho, nenhuma história, a sua cor de voz, nenhuma lembrança, o seu perfume de alma. É que você não era daqui. (Tem gente que não é!) Não fazia parte desse sistema. Você não se enquadrava, não cabia, não se satisfazia, apenas.
Mas tem mais. Você se recusou a se enquadrar e a caber. E ainda menos a se satisfazer, apenas. Você era único. Sem você, isso daqui onde o resto cabe e se enquadra e se satisfaz, ficou bem menor e sem graça.

Éramos sete.

E vamos continuar sete, viu, Sérgio!

Minto.

Pressinto que seremos oito. Há uma lembrança que preencherá o oitavo lugar desse trem que, só momentaneamente, descarrilou. Só momentaneamente! Seremos oito. O seu lugar será preenchido de histórias. E esse será o milagre da vida. Será o seu milagre. O primeiro. Se alguém contou a última história, não foi você. Você? Ara! Jamais. Nem que quisesse. Nem que quisesse.


(Aloísio Lobo da Costa saiu pra visitar Deus no dia de Natal de 2011. Pelo tanto de histórias que ele tem pra contar, decerto, não volta tão cedo.)

domingo, 18 de dezembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 15

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


O contrário do ético é o mecânico. Terminei assim da última vez.

Quando a medicina só enxerga aparelhos e exames, ao invés de olhar e ouvir o paciente, ela se mecanizou. Se a política só consegue ver o valor agregado da economia em lugar das pessoas a quem ela serve, ela se mecanizou. Quando a religião responde com respostas prontas, ela se mecanizou. Nesses e noutros casos, a ética ficou pra lá de Bagdá.

É que a ética não responde a questões como “faça isso, não faça aquilo”. Esse é o campo da moral. À ética se coloca uma única questão básica, que torna as outras, praticamente, irrelevantes senão desnecessárias: “Se eu for por esse caminho, aonde ele vai me levar? Se continuar onde estou, aonde chegarei?” Essa é uma questão ética. Essa é a questão ética.

É por isso que o contrário do ético é o mecânico. A ética é dinâmica. Não que o mecânico não possa ser. Mas a ética é dinâmica em si mesma. Aliás, ela é o dinamismo. É por isso que, quando perguntado sobre a ética da psicanálise, Lacan respondeu: A psicanálise é uma ética.

O dinamismo ético pulsa nas forças humanas a que chamamos “virtudes”: polidez, fidelidade, prudência, temperança, coragem, justiça, generosidade, compaixão, gratidão, humildade, simplicidade, tolerância, pureza, doçura, boa-fé, humor, amor... E também em todos os seus contrários. Aqueles são vetores éticos, portanto, dinâmicos, que apontam para uma humanidade que se recusa a estacionar-se mecânica. É o dinamismo que existe no amor maduro e na crueldade crua, no ódio in natura e no perdão in cultura, na boca escancarada da fome e na boca ainda aberta da saciedade, e em tudo o que se disser daqui pra frente “ao infinito e além”. É esse dinamismo que provoca o humano e é nele que repousa a contradição do nosso desassossego. Santo Agostinho queria “repousar”. Ó Agostinho, logo tu!

Desse dinamismo de vetores desponta o vetor da misericórdia: o mais dinâmico, o mais sutil e o mais difícil. Mas o que é misericórdia e onde ela entra e cabe nesse texto?

A palavra misericórdia, literalmente, indica o coração voltado para miséria: miseri+cordia. Trocando em miúdos, a misericórdia é a virtude do verbo perdoar, é a sua força e a sua verdade.

Mas, e perdoar, o que é isso?

Se você entende que perdoar é apagar a falta, esquecê-la, considerar a falta nula ou, simplesmente, não acontecida, sinto informar-lhe, mas esse é um poder que não temos ou uma tolice (perdão) imperdoável. O passado é irrevogável. Toda verdade é eterna. Descartes dizia que nem Deus pode fazer com que o que foi feito não o tenha sido. Nós também não. Parafraseando Aristóteles: ninguém está obrigado ao impossível.

Quanto a esquecer a falta, a menos que seja num caso de demência, é uma tolice ou uma irresponsabilidade, dessas que trinca a moralidade ao faltar com a fidelidade à vítima. Quem esqueceria Auschwitz e os crimes do nazismo, só pra citar um caso? Quem poderia esquecer? Só quem não esteve lá.

Numa tábua de catre num campo de concentração, alguém deixou escrita a seguinte mensagem: “Se for possível compreender, não será preciso perdoar”. Forte, né! Isso mexe nas entranhas do ser e aterrissa no campo verde da liberdade, o único lugar onde é possível ser. Sem liberdade não é possível ser por inteiro e nem há ser inteiro.

Mas, e a tal liberdade? Liberdade, segundo Spinoza, é a liberdade de conhecer as causas verdadeiras. Conta-se que ele mesmo, tendo sido apunhalado por um fanático, conservou a vida inteira o seu gibão furado, para não esquecer nem o acontecimento nem a lição que aprendeu. Isso não significa que ele não fosse livre para perdoar, que não tivesse usado sua liberdade nem tivesse perdoado. Isso significa que perdoar não é nem apagar nem esquecer.

Mas, então, o que é isso: perdoar?

Perdoar é cessar a voz do ódio. E é essa, justamente, a definição da misericórdia. A misericórdia é a virtude que triunfa sobre o ódio (mesmo) justificado, sobre o ressentimento, o rancor, o desejo de vingança, de punição, enfim, de justiça. A misericórdia triunfa sobre a justiça.

É isso aí! A misericórdia é a força que perdoa, não suprimindo a ofensa, a falta e a falha – impossível! – mas cessando os seus efeitos destrutivos. A misericórdia não é a clemência, que só renunciou a punir (na verdade, podemos odiar sem punir ou punir sem odiar). Também não é a compaixão, que só simpatiza no sofrimento (podemos ser culpados sem sofrer ou sofrer sem sermos culpados). Não é sequer a absolvição, um poder – que só poderia ser sobrenatural – de anular pecados e faltas. A misericórdia é mesmo uma força singular e bastante difícil de ser definida. Seja como for, cometemos faltas demais, somos miseráveis demais, fracos demais, vis demais... para que ela não seja necessária.

A propósito, prefiro trocar a palavra “virtude” por “força”, porque é isso mesmo que ela significa. Virtus, em latim, é força: em latim, uma palavra masculina.



Essa arenga toda apareceu aqui por causa de...

Marta! Ora vejam! Só Marta aprontaria uma digressão desse tamanho!

E para entender Marta, precisamos entender...

Maria.

Nada melhor do que olhar o outro lado do tapete, para admirar a tapeçaria. Só numa tapeçaria perfeita você nunca sabe qual lado olha. Esse é o valor. Marta e Maria: tapeçarias persas, digo, hebréias, da melhor qualidade.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

VERDADE E METÁFORAS

Em certo país, dava-se o nome de metáfora a qualquer recipiente que contivesse algum líquido. Havia nesse país uma fonte de água cristalina. Porém era tão amarga que se dizia bastar um único gole para matar de desgosto um homem adulto. No entanto, o que se dizia, também, era que diluída em pequenas doses essa mesma água tinha propriedades medicinais.

Deram, então, a ela o nome de Verdade.

Levas de peregrinos acorriam incessantemente à fonte. E depois partiam para suas casas levando a Verdade nos vasos das metáforas.

Porém, uma rigorosa seita acreditava que a Verdade deveria ser experenciada sem o auxílio das metáforas. Em nome de sua verdade, essa seita atacava as caravanas de peregrinos que buscavam a Verdade. Querendo ensiná-los a obter a Verdade em estado puro, os sectários destruíam a pauladas as metáforas que a continham. Quebrados os recipientes, a Verdade se derramava e desaparecia no solo, ficando sem ela peregrinos e sectários.

Certa vez um rapaz voltava da fonte levando a Verdade em sua metáfora, quando viu de longe a aproximação dos sectários, não querendo ver derramada e perdida a Verdade que trazia consigo, não hesitou e bebeu toda água da vasilha.

- Onde está a Verdade que você trazia nessa metáfora? – perguntaram os sectários.

- Eu bebi. – Desafiou o rapaz. Agora, a Verdade está dentro de mim.

E os sectários mataram-no a pauladas.

Em compensação, começou a correr a notícia de que a Verdade, embora amarga, não era mortal. E que o recipiente próprio para conter a Verdade poderia ser um humano. Com o passar do tempo, os próprios homens criaram metáforas. Mas conta-se também que, com isso, eles se afastaram da Verdade, transformando-se, eles próprios, cada um numa verdade.

domingo, 11 de dezembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 14

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Quando o autor do Evangelho de João juntou o trio Jesus, Marta e Maria, na verdade, ele tinha em mente um outro trio bastante conhecido, sobretudo, deles, dos leitores da época. O trio era Jacó, Lia e Raquel. Jacó, Isaac e Abraão foram os pais de Israel. Raquel, Lia, Rebeca e Sara foram as mães de Israel.

Nesse sentido, Jesus, Marta e Maria seriam, propriamente, o quê?

Vamos encontrar esta questão mais adiante, mas eu gostaria que ela ficasse, desde já, como moldura do quadro.



Na última vez que nos encontramos com ela, Marta questionava a ausência de Jesus. Lembram-se? “Se o Senhor estivesse estado aqui, meu irmão não teria morrido”.

Na verdade, tratava-se da plena atuação de um outro mecanismo de defesa: a conhecida projeção. Marta projetou seus sentimentos. Lançou fora de si o insuportável que nos habita e que, no fim das contas, somos nós mesmos – é ela mesma – nossa história de vida, nossa biografia.

Mas, se Marta projetar sua história de vida para fora de si mesma, vai sobrar o quê? Quase nada. E é aí que mora a crueldade da situação. Lázaro estava morto. Tudo o que era vida, começa a cheirar à morte. Inclusive as duas irmãs? “Jesus falou: Tirem a pedra. Marta, irmã do falecido, disse: Senhor, já está cheirando mal. Faz quatro dias” (Jo 11,39). Será que Marta se referia à putrefação dele, ou à estagnação delas?

O diálogo entre Marta e Jesus é uma obra prima da semiótica humana. Marta enxerga, mas não ouve. Ainda não compreendeu que é com os ouvidos que se vê melhor. Jesus fala, ela não ouve: está cega por não poder ouvir.

E a cegueira de Marta quase cega Jesus. Se ele entrasse no jogo dela, os dois iriam ficar multiplicando justificativas e racionalizações, projeções e outros mecanismos de defesa, até não chegar a lugar nenhum, e depois recomeçar tudo de novo, de novo sem rumo, outra vez. Mas ele não entra no jogo dela. Ele corta o palavreado desconexo com uma frase e barra a projeção de Marta: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim não morrerá para sempre. Você acredita nisso, Marta?” (Jo 11,25-26). Foi como se um gongo soasse aos ouvidos surdos, provocando, ao contrário do que se espera, alguma capacidade de ouvir. Marta cede em suas projeções.

Na projeção, a conexão com a realidade encontra-se sempre seriamente avariada. Jesus não se deixa levar pelas projeções da irmã mais velha do morto. Não se enreda no enredo dela. Só um novo significante seria capaz de deslocar Marta do lugar de onde ela flertava com a morte.
Marta tem Jesus onde projetar todo mau cheiro interno. Poderia ser qualquer um, mas quem melhor que Jesus? Quem suportaria uma projeção maciça como aquela? E quem não sucumbiria a ela?

Todos os dias, pessoas projetam sobre os outros as culpas e frustrações de seus malogros. Terapeutas, pastores, professores, médicos, pais... ninguém escapa. O que fazer? Racionalizar, como Marta? Entrar no jogo do outro? Deixar-se conduzir pelo vazio que ele porta, mas não suporta?

E isso acontecer, não sobrará nada, a não ser o sabor do vazio que o outro carrega e descarrega. Esse vazio não pertence a ninguém senão ao portador. Podemos indicar caminhos, viabilizar soluções. Mas preencher o vazio do outro? Ai, ai, ai... Essa é uma pretensão onipotente, que camufla desejos distintos de qualquer finalidade terapêutica, pastoral e afins. Esse caminho é escorregadio.

Marta foi por esse caminho. Se Jesus não tivesse lhe mostrado o caminho de volta a si, Marta estaria, até hoje, resmungando: “Se o Senhor estivesse aqui...”

Jesus mostrou à Marta um caminho ético. “Não são doze as horas do dia? Se alguém caminha de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo” (Jo 11,9). O contrário do ético é o mecânico.

Mas essa é outra conversa.

sábado, 3 de dezembro de 2011

ADMIRÁVEL SÉCULO NOVO

É admirável o século XXI!

Para quem veio de uma época de quase nenhum acesso, o século XXI começou cheio de promessas. Ta certo que a primeira década teve Bin Laden, Bush e outros “Bês”. Ta certo que as palavras “crise financeira” inundam todos os espaços desse início de segunda década. Mas para quem viveu sem computador, telefonia, internet; para quem viu prateleiras de supermercado vazias no Plano Sarney (o zumbi que insiste); para quem viajar de avião era coisa além da imaginação, o século XXI é mesmo novo.

Novo e admirável! Pelo menos, naquela parte do mundo que se autodenomina “livre”, é adorável esse maravilhoso acesso ao pensamento e à possibilidade de fazer escolhas.

Há exatos 100 anos, Freud escreveu uma carta ao pastor protestante Oscar Pfister. Parêntesis. Por carregar a fama de enxergar sexo em cada esquina, há quem imagine que Freud fosse um libertino depravado. Não há nada que fique mais longe da verdade do que essa versão distorcida de Freud. Freud era um pacato cidadão, médico, professor, e pai de família com dez bocas para alimentar.

Há 100 anos, naquela carta, Freud se recriminava diante do amigo pastor protestante, justamente, ironicamente, imaginem, por ser um homem escandalosamente pudico. “Acho que análise sofre do mal hereditário da virtude. Ela é obra de um homem decente demais, que também se sabe comprometido com a discrição. Acontece que as questões psicanalíticas só são compreensíveis na totalidade e minuciosidade, assim como a própria analise só anda quando o paciente desce das abstrações substitutivas para os pequenos detalhes. A discrição é incompatível com uma boa análise“.

E arremata dizendo que o analista deveria ser como um artista que compra tintas com o dinheiro do orçamento doméstico e queima os móveis da casa para aquecer a modelo. “Sem tal dose de criminalidade, não há produção correta” (Carta a Pfister, 05.06.1910).

A idéia central da carta era a de que a hipocrisia fazia tão mal quanto a doença. Melhor. A idéia, no final do século XIX, início do século XX, era a de que a doença nascia da hipocrisia. Melhor ainda. A idéia naqueles tempos fundadores era a de que a hipocrisia era a doença. Admirável e corajoso Freud!

Admirável século XXI! Hoje não precisamos mais gastar todas as economias pra comprar tela e tinta e nem queimar os móveis da casa pra aquecer a modelo nua. Entre outras, essa é a razão porque esse século XXI começa admirável e novo. A não ser em setores reacionários da sociedade, cada dia que passa convive cada vez melhor com a pluralidade das possibilidades humanas e convida, dia após dia, a descascar da parede do imaginário social a tinta vagabunda, porém cara, da hipocrisia. Caem os véus, as burcas e as sobras de outros tempos. As pessoas hoje pensam. As pessoas hoje falam. E não mais à boca pequena, persignando-se como quem espanta demônios invisíveis ao menor incréu pensamento ou inadequada palavra perjura. O pensamento corre solto e veloz. A fala soa alta, franca, digna.

Ainda temos guerras (pipocando por todo canto), tiranias (o jeito muçulmano e, por que não, o americano de ser), bossalidades (Hugo Chaves sozinho preenche o quesito), imbecilidades (o Big Brother e, claro, quem “espia”), mentiras, roubalheira e corrupção (parlamentos e governos em geral), intolerâncias (homofóbicas e xenofóbicas lato sensu), diferenças sociais (o quarto de 2x2 da empregada no apartamento de 600 m2) pobreza, miséria e fome (a África, a Índia e o Nordeste brasileiro, não necessariamente nesta ordem) e os quatro cavaleiros do Apocalipse (made in China). O mundo ainda é mundo. Uai!

Mas...

Já vivemos no século XXI. Esse adorável e defeituoso século XXI!

Quando era criança, eu observava que as pessoas abriam apenas uma fresta da porta para receber quem batesse de fora, e se enfiava atrás de cortinas nas janelas para não cumprimentar quem passasse. Mais que hipocrisia, aquilo era medo.

Hoje, cada vez mais, não é mais assim. É claro que nos escondemos atrás de câmeras de segurança, mas essa é outra questão. Já conseguimos nos esconder cada vez menos de nós mesmos. Não precisamos mais disso. Mentir pra si mesmo era a regra, para os outros, a exceção. Acho que já começamos a inventar a exceção da exceção. Ainda mentimos. Mas já sabemos quando, onde e por quê. Sabemos, inclusive, que precisamos cada vez menos elogiar o São Jorge do new rich que acende a luz na boca do dragão cada vez que se abre a porta. É só dizer: É a sua cara!

É que já vivemos no século XXI. Esse problemático século XXI! Esse mais claro e mais aberto século XXI!

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

CREDO NOVO

Creio em Deus, amor infinito, mistério original do ser,
que expressa soberanamente seu ser mais profundo
na evolução do cosmo e na humanidade
e, sobretudo, em cada homem e mulher,
que acredita e vive no amor, apesar de tudo.
E, justamente, por isso se torna expressão máxima
desse mesmo amor infinito,
cada vez que faz o amor superar a indiferença
e qualquer aparência de dor.

Creio em Jesus, o Prometido desde sempre,
imagem única de Deus,
nascido de pais humanos e do jeito humano de nascer,
sem precisar de milagres desnecessários
nem de anjos voadores,
sem, contudo, ser apenas obra humana,
mas inteiramente fruto da graça salvadora de Deus.

Creio que Jesus, o Humano para sempre,
fez parte da nossa História refazendo a História,
vivenciou as limitações da existência e da morte,
foi crucificado por ordem do poder e da ganância,
sob o governo do procurador romano Pôncio Pilatos,
realmente, morreu, e foi sepultado.

Mas creio que ele vive em plenitude – só não me perguntem como, não sei.
No entanto, é nisso que creio, absurdamente:
que a morte não teve nele a última palavra
e não a terá em mim.
Tudo porque ele se abriu e foi inteiramente absorvido em Deus.
Apesar de toda aparência em contrário,
repito, a vida é maior do que a morte
e a força do bem supera a força do mal,
nem que seja por uma questão de sanidade.

Tem de ser assim.

Por isso, ele se tornou uma força de cura,
e assim pode libertar a humanidade de si mesma
e levá-la à plenitude do projeto inicial.

Creio na ação inspiradora do sopro de vida de Deus,
que antes do início dos tempos,
na noite escura do mundo,
pairava sobre a fecundidade da vida,
para torná-la, não uma vida qualquer,
mas a vida plena de Deus.

Creio que é esse mesmo Espírito criador
que conduz e renova a comunidade dos que crêem em Jesus.
E creio nessa comunidade universal dos que crêem nele,
onde quer e do modo como ela se apresente,
porque nela Jesus, Cristo e humano para sempre,
continua a viver com rosto humano e a se dar a ver,
apesar de tudo e dela mesma.

Creio no dom de Deus,
que nos cura e nos renova e nos faz sua nova criação
para nos tornarmos, finalmente, humanos,
crísticos e humanos para sempre,
à sua imagem e semelhança.

Creio na vida,
esse, sim, o grande milagre necessário,
sempre repetido, sem jamais cessar.
E que da mesma forma como Jesus foi querido por Deus,
eu fui querido por Deus e você é querido por Deus.

Assim sendo, creio também na subjetividade humana,
que cada um terá a chance de encontrar seu próprio caminho,
que será só seu e de nenhum outro,
sem sair da comunidade humana, mas sem diluir-se nela.
Porque cada um é único, e sua saúde depende disso.

E creio na utopia humana de que seremos finalmente iguais,
em dignidade e valor,
e nos sentaremos de igual pra igual à mesma mesa,
onde acertaremos o futuro divino da humanidade,
um futuro que significa vida sem limites e sem exclusões,
sem qualquer resquício de amargura, intolerância e ódio
e, sobretudo, no amor.

Assim seja.


Este CREDO foi escrito para os que não crêem. Os que crêem já têm suas próprias respostas, seus próprios consolos e suas conclusões.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

CONTO DE NATAL

Durante a Segunda Grande Guerra, uma rede de resistência foi organizada na Bélgica, para esconder as crianças judias, separadas de seus pais. Essas crianças eram confiadas a famílias cristãs, que, por sua vez, ignoravam a identidade dos verdadeiros pais daquelas crianças. Da mesma forma, os verdadeiros pais, por razões de segurança, também ignoravam o paradeiro de seus filhos.

A mesma rede havia organizado uma vigilância para saber para onde as crianças haviam sido levadas, como eram tratadas, e assim por diante.

Um dia, numa daquelas casas, uma daquelas crianças, um menino de seis anos, confiado a uma família católica, foi acusado de haver cometido um roubo. Pânico geral! Na mesma hora, a família que o acolheu entrou em contato com a rede, e uma pessoa foi enviada para se informar do quê estava acontecendo a fim de estudar o problema.

A família, atordoada, só sabia dizer:
- Pegue esse menino e o leve de volta. É um ladrão! Não o queremos aqui.

O agente, arrasado, disse que não poderia tomar aquela decisão, sozinho, e que iria reportar-se ao chefe da rede.

O chefe da rede, mesmo tolhido pelas circunstâncias, resolve ir pessoalmente visitar a família que acolheu o menino, onde o suposto roubo havia acontecido e o pânico se espalhado. Assim que põe o pé na casa, o que ele ouve é a mesma deplorável cantilena que já havia ouvido do agente. A família não só continuava impenetrável em sua suspeita, mas também irredutível na decisão de se livrar do menino. E queria que aquilo fosse feito ainda naquela noite.

O chefe pede para ficar a sós com o menino.
Então, naquele instante, sozinho com o autor da discórdia, prega-lhe um sermão, fala-lhe como se fosse a um adulto, e lhe diz:
- Tem alguma coisa aqui que não bate bem! Essas pessoas arriscam a própria vida para salvar a sua, e você, em agradecimento, não encontra nada melhor para fazer, a não ser roubá-las!

E o que é pior. A família prosseguia dizendo que além de ladrão, o menino era mentiroso. Quando o acusavam de haver roubado, ele negava e negava, obstinadamente:
- Não! Não roubei.

Sem mais, e de repente, o chefe da organização tem uma idéia. Uma dessas iluminações que nos chegam, sobretudo, quando falamos a uma criança. Perguntou, então, ao menino:
- Afinal de contas, o que foi que você roubou? Do que é que lhe acusam ter roubado?

É que, ninguém, até aquele momento, havia se preocupado com a questão material da acusação. Ninguém havia perguntado à família o quê, afinal, havia sido roubado.

Sem levantar os olhos, o menino responde:
- Eles me acusam de ter roubado o Menino Jesus do presépio.

O chefe da rede volta a perguntar:
- E não é verdade?!

E o menino volta a insistir:
- Não, não é verdade.

Ainda mais intrigado, o chefe da rede, arrisca uma última tentativa:
- Mas, então, o que foi que você fez?

E o menino, de olhos baixos:
- Eu não o roubei, eu o escondi.
- Mas por que você o escondeu? – pergunta o chefe.

Dessa vez, o menino ergue os olhos e responde:
- Porque ele também é judeu, assim como eu!