domingo, 18 de dezembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 15

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


O contrário do ético é o mecânico. Terminei assim da última vez.

Quando a medicina só enxerga aparelhos e exames, ao invés de olhar e ouvir o paciente, ela se mecanizou. Se a política só consegue ver o valor agregado da economia em lugar das pessoas a quem ela serve, ela se mecanizou. Quando a religião responde com respostas prontas, ela se mecanizou. Nesses e noutros casos, a ética ficou pra lá de Bagdá.

É que a ética não responde a questões como “faça isso, não faça aquilo”. Esse é o campo da moral. À ética se coloca uma única questão básica, que torna as outras, praticamente, irrelevantes senão desnecessárias: “Se eu for por esse caminho, aonde ele vai me levar? Se continuar onde estou, aonde chegarei?” Essa é uma questão ética. Essa é a questão ética.

É por isso que o contrário do ético é o mecânico. A ética é dinâmica. Não que o mecânico não possa ser. Mas a ética é dinâmica em si mesma. Aliás, ela é o dinamismo. É por isso que, quando perguntado sobre a ética da psicanálise, Lacan respondeu: A psicanálise é uma ética.

O dinamismo ético pulsa nas forças humanas a que chamamos “virtudes”: polidez, fidelidade, prudência, temperança, coragem, justiça, generosidade, compaixão, gratidão, humildade, simplicidade, tolerância, pureza, doçura, boa-fé, humor, amor... E também em todos os seus contrários. Aqueles são vetores éticos, portanto, dinâmicos, que apontam para uma humanidade que se recusa a estacionar-se mecânica. É o dinamismo que existe no amor maduro e na crueldade crua, no ódio in natura e no perdão in cultura, na boca escancarada da fome e na boca ainda aberta da saciedade, e em tudo o que se disser daqui pra frente “ao infinito e além”. É esse dinamismo que provoca o humano e é nele que repousa a contradição do nosso desassossego. Santo Agostinho queria “repousar”. Ó Agostinho, logo tu!

Desse dinamismo de vetores desponta o vetor da misericórdia: o mais dinâmico, o mais sutil e o mais difícil. Mas o que é misericórdia e onde ela entra e cabe nesse texto?

A palavra misericórdia, literalmente, indica o coração voltado para miséria: miseri+cordia. Trocando em miúdos, a misericórdia é a virtude do verbo perdoar, é a sua força e a sua verdade.

Mas, e perdoar, o que é isso?

Se você entende que perdoar é apagar a falta, esquecê-la, considerar a falta nula ou, simplesmente, não acontecida, sinto informar-lhe, mas esse é um poder que não temos ou uma tolice (perdão) imperdoável. O passado é irrevogável. Toda verdade é eterna. Descartes dizia que nem Deus pode fazer com que o que foi feito não o tenha sido. Nós também não. Parafraseando Aristóteles: ninguém está obrigado ao impossível.

Quanto a esquecer a falta, a menos que seja num caso de demência, é uma tolice ou uma irresponsabilidade, dessas que trinca a moralidade ao faltar com a fidelidade à vítima. Quem esqueceria Auschwitz e os crimes do nazismo, só pra citar um caso? Quem poderia esquecer? Só quem não esteve lá.

Numa tábua de catre num campo de concentração, alguém deixou escrita a seguinte mensagem: “Se for possível compreender, não será preciso perdoar”. Forte, né! Isso mexe nas entranhas do ser e aterrissa no campo verde da liberdade, o único lugar onde é possível ser. Sem liberdade não é possível ser por inteiro e nem há ser inteiro.

Mas, e a tal liberdade? Liberdade, segundo Spinoza, é a liberdade de conhecer as causas verdadeiras. Conta-se que ele mesmo, tendo sido apunhalado por um fanático, conservou a vida inteira o seu gibão furado, para não esquecer nem o acontecimento nem a lição que aprendeu. Isso não significa que ele não fosse livre para perdoar, que não tivesse usado sua liberdade nem tivesse perdoado. Isso significa que perdoar não é nem apagar nem esquecer.

Mas, então, o que é isso: perdoar?

Perdoar é cessar a voz do ódio. E é essa, justamente, a definição da misericórdia. A misericórdia é a virtude que triunfa sobre o ódio (mesmo) justificado, sobre o ressentimento, o rancor, o desejo de vingança, de punição, enfim, de justiça. A misericórdia triunfa sobre a justiça.

É isso aí! A misericórdia é a força que perdoa, não suprimindo a ofensa, a falta e a falha – impossível! – mas cessando os seus efeitos destrutivos. A misericórdia não é a clemência, que só renunciou a punir (na verdade, podemos odiar sem punir ou punir sem odiar). Também não é a compaixão, que só simpatiza no sofrimento (podemos ser culpados sem sofrer ou sofrer sem sermos culpados). Não é sequer a absolvição, um poder – que só poderia ser sobrenatural – de anular pecados e faltas. A misericórdia é mesmo uma força singular e bastante difícil de ser definida. Seja como for, cometemos faltas demais, somos miseráveis demais, fracos demais, vis demais... para que ela não seja necessária.

A propósito, prefiro trocar a palavra “virtude” por “força”, porque é isso mesmo que ela significa. Virtus, em latim, é força: em latim, uma palavra masculina.



Essa arenga toda apareceu aqui por causa de...

Marta! Ora vejam! Só Marta aprontaria uma digressão desse tamanho!

E para entender Marta, precisamos entender...

Maria.

Nada melhor do que olhar o outro lado do tapete, para admirar a tapeçaria. Só numa tapeçaria perfeita você nunca sabe qual lado olha. Esse é o valor. Marta e Maria: tapeçarias persas, digo, hebréias, da melhor qualidade.

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