sábado, 28 de janeiro de 2012

ALQUIMIA

Os humanos são as únicas criaturas do mundo para quem existir já é um problema. A gente não se conforma com muita coisa da vida, e a morte é a maior delas. E a inconformidade é, ao mesmo tempo, o nosso grande problema e a nossa maior força. (Durma com um barulho desses!)

Veja o João-de-Barro: não é inconformado, mas não é feliz! Alguém por acaso já recebeu carta ou e-mail desse ilustre cidadão contando da nova casa que construiu ou, melhor, alguém já recebeu convite de casamento do João-de-Barro? Tai um cidadão plenamente conformado. No entanto, o que o João-de-Barro nos faz pensar não é o fato dele ser conformado. Na verdade, ele nem é conformado nem inconformado nem feliz nem infeliz. Ele é apenas João-de-Barro. E é isso que aciona a locomotiva do pensamento: ele ser apenas João-de-Barro!

Nós humanos queremos ser tanto. E, no entanto, somos tudo isso e nada disso e quase sempre ao mesmo tempo: conformados, inconformados, felizes e infelizes. Ou não! Nós humanos somos humanos. Apenas, humanos. Mas isso cansa e de certa forma nos horroriza. A gente não queria ser apenas humano. A gente queria ser mais.

E aí, nesse afã de ser mais, a gente provoca mudanças.

Aconteceram mudanças muito rápidas no panorama mundial nos últimos 50 anos. Há 50 anos, tudo estava no lugar, tão bonito e certo que dava gosto de ver! Até os inimigos mundiais eram claros: capitalismo de um lado, comunismo do outro. EUA X Rússia. Havia em quem jogar todas as bombas e todo ódio. O inimigo (sempre precisamos de um) era de uma obviedade maçante.

Hoje, aquele mundo confiável implodiu. As pessoas se sentem inseguras sem as certezas de antes, sema s crenças de antes e sem os inimigos de antes, pra ter onde botar a culpa de tudo. O cardápio do mundo em que vivemos exige adaptação constante, e temos muito maior dificuldade em nos adaptar a uma nova realidade todo dia. Novos padrões trazem novas exigências. Veja as novelas: são os novos padrões globais de família, honestidade, sexualidade, relações humanas. Há também os padrões que não são globais. Mas esses nem contam.

Enquanto grandes mudanças foram acontecendo do lado de fora, ainda maiores mudanças vão acontecendo do lado de dentro. Da gente, claro. Era muito mais fácil viver na infância adocicada, sem os perigos da vida adulta. Mas você teve de crescer e crescer é complicado e dá trabalho. Para crescer, você teve de fazer escolhas e renúncias. Numa palavra, tivemos de desejar. E desejar implica e subentende correr riscos. “Será que vai dar certo?”

A pergunta que vale 10 milhões de Euros (porque dólar já não vale muita coisa!) é essa: Era isso mesmo que você queria da vida? Aquilo que você quer, você pode? Aquilo que você pode, você tem coragem? Dia desses um sujeito me confidenciou: “Eu já havia me encontrado naquilo que queria... Mas não tive coragem de ir adiante, e mudar minha vida!”

Quem perde a coragem de ir atrás do desejo, se deprime. O gatilho dessa depressão é o recuo diante do desejo. Essa situação poderia ser comparada à depressão do animal do zoológico. O tigre anda pra lá e pra cá, pra lá e pra cá... Até que se deita e não faz mais nada. Bem que os tratadores tentam ao máximo transformar a jaula em habitat natural. Mas jaula alguma é habitat natural! O animal se deprime, não come, derruba o pelo, acaba morrendo. Melhor, acaba se deixando morrer.

Não somos animais de zoológico. Mas a cada dia fica mais difícil saber o que queremos. “To com vontade de comer alguma coisa, mas não sei o que é.” A insatisfação invade, empurra, congela, exige, afronta, amedronta... Muitas vezes, deprime. Tanto é possível ficar deprimido quando o sujeito não tem o que quer, quando ele alcança mais do que quer. Sabe por quê? Porque nunca é o que ele queria. Já se declamava na escola Dona Maria Carneiro, o famoso “Grupinho”: “Felicidade é a árvore de dourados pomos, que sempre pomos onde não estamos e sempre estamos onde não a pomos.” Vê lá se a gente entendia qualquer coisa desse amplo espectro da existência humana naqueles idos dos passados 9 anos! Mas declamava! E ficou. Pra eu me lembrar hoje. Valeu, Elisinha!

A nossa é a primeira sociedade da história a tornar as pessoas infelizes, simplesmente, por não serem felizes. Vivemos a época da “felicidade compulsória”: Tudo começa na prateleira do supermercado e termina na lata de lixo. (Acho que já falei isso, mas adoro essa frase!) O fato surpreendente é que as pessoas pagam caro por uma satisfação que não tem. Adições, drogas, medicamentos, diversão, consumo... A vida ficou cara. E sem graça. Somos infelizes pelo simples fato de não sermos felizes. “Onde estiver o seu tesouro, aí estará o seu coração.” (Alguém procure a citação, por favor, e obrigado.)

O gatilho dessa depressão é o recuo diante do desejo. Mas como assim? As pessoas não andam justamente realizando o seu desejo? Cada um, hoje, não tem justamente a oportunidade de fazer o que bem entende? Sim. E não. Porque a pergunta continua insistindo: Você já sabe o que quer? E você já sabe o que não quer? Fazer o que bem entende significa entender o que foi declarado ”bem entender”. Mas, realmente, entende?

O recuo diante do desejo não é o recuo de realizar o desejo, mas o recuo de reconhecer o desejo. Esse é o grande mal estar contemporâneo. Que haja pessoas fazendo o que querem à hora em que querem não significa que elas saibam o que estão fazendo a ponto de poderem reconhecer como sua a realização daquele desejo. Que, pensando bem, sequer é desejo. É apenas ímpeto, impulso cego, fazer por fazer, gozar a qualquer preço. Os nossos avos queriam, mas não tinham. Os netos deles tem... mas não querem. Bela troca!

Se você é o maior responsável pelo que deu certo e pelo que deu errado na sua vida, só você pode mudar. A primeira coisa a fazer é não terceirizar a vida. Diga: Sou eu! É comigo! Esse é o começo de todas as mudanças. Diga: Eu quero! Sou eu que quero! Esse é o começo das transformações.

Essa é a alquimia possível. Mudar ferro-velho em ouro... humm! Não sei! Mas mudar você em você mesmo, e ainda melhor, e ainda mais dono de si, pronto a ir apenas aonde você se levar, parece ser uma alquimia exigente. Mas é inteligente. É real. É ouro.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

KYRIE

Senhor Deus, tende piedade de mim
pois sou o pecado.

Confesso que sou humano, da terra, do solo.
No entanto, destinado a voar e a velejar com os ventos.

Confesso o pecado da idolatria: levo-me em consideração demais.

Ao meu “eu” chamo “Monarca”,
inclino-me ao altar do meu desejo,
aborreço-me com o desejo dos outros.

Confesso que não danço.
A dança cósmica é muito perigosa.
E a dança pessoal é muito reveladora.

Confesso que não rio com abandono.
Meu frágil “eu” permite apenas sorrisos apertados.

Confesso minha vaidade, meu orgulho exposto.
Minha dignidade desdenha da liberdade dos simples.

Confesso meu medo, minha angústia, minha docilidade, e o pior, minha inveja.
Meu medo é pecado: ele mascara minha ausência de fé.
Minha angústia é traição: ela revela minha falta de esperança.
Minha docilidade é deferência: ela expõe meu medo de ser livre.
Minha inveja é ácida: ela corrói o que ainda resta da caridade com que fui amado.

Confesso minha respeitabilidade.
Ponho minha imagem acima da espontaneidade e da liberdade do espírito.

Senhor Deus, tende piedade de mim,
pois sou o pecado.



Senhor Deus, tende piedade de mim,
pois sou a graça.

Em vossa graça eu nasço outra vez,
transformado, renovado, sadio.

Embora eu mal conheça a profundidade do meu pecado,
ele é tocado e abraçado,
é aliviado pelo óleo do perdão, que cura,
pelo bálsamo da misericórdia, que restaura.

Minha escuridão, vós superastes.
Minha culpa, vós desfizestes.
Minha angústia, vós acalmastes.

Senhor Deus, tende piedade de mim.

Confesso que sou o pecado. Confesso que sou a graça.

E em meu pecado, e em vossa graça, confesso que sois Deus.

E em pecado e em graça, doente ou são,
permaneço vosso amigo amado.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A FASE ANAL

Toda criança, entre 1 ano e ½ e 3 anos (aproximadamente), passa por uma fase que a psicanálise clássica chama de fase anal.

Toda criança, antes desse período, passou pela fase oral. Fase oral é aquele primeiro momento da vida em que a sensibilidade do pequeno ser, toda ela, se concentra na boca, e isso é fundamental para a sobrevivência: ele precisa mamar. Logo, logo, o pequeno cidadão descobre que a boca, além de lhe oferecer os recursos necessários para o sugar do leite materno, fonte de toda vida, também lhe oferece recursos extras (bônus, entendeu?) de saborear o contato íntimo com algo maior do que, simplesmente, leite: o seio materno, fonte de todo bem. Tudo o que buscarmos mais tarde, toda ânsia por encontrar o Shangri-La perdido, para sempre perdido, toda fome “não sei bem do quê”, toda vontade de comer “alguma coisa que eu não sei o que é”, toda ansiedade que me faz morder os dedos, tudo isso e muito mais, tudo, tudo, tudo, praticamente, se ancora lá, naquele momento mítico-mágico, quando ao mamar leite, a gente mamou seio e olhar.

É que só encher a barriga é pouco, muito pouco. Gente humana quer mais.

Quando se erra na dose, quando o apelo daquilo que ficou pra trás se torna irresistivelmente forte, então, certas fixações acabam sendo re-vividas de forma doentia. Fumar, beber demais, drogar-se, consumir em demasia, assaltar geladeira, numa palavra, exceder-se além do permitido pelo próprio excesso, são ancoramentos na fase oral que já deveriam ter sido ultrapassados. A não-resolução traz conseqüências psicopatológicas desagradáveis e desastrosas, cujo inventário posso me dispensar de fazer aqui, nesse momento, por não ser esse o escopo da conversa.

Como iniciei dizendo, a segunda fase que se segue, e que abrange de 1 ano e ½ a 3 anos, é a fase anal. Todo investimento até então depositado na região oral é deslocado para as redondezas do perímetro anal. Já viu né! Nenê gosta um bocado de mexer nos próprios produtos. Se a mãe permitir, ele leva à boca. Afinal de contas, foi ele quem fez. Uma vez tendo errado na dose desta fase, as complicações não são nem piores nem melhores, maiores ou menores, do que na fase oral. São, simplesmente, complicações anais.

As fixações orais trazem complicações orais: comer, beber, ansiar..., basicamente tudo que esteja ligado à questão “por pra dentro”. As fixações anais trazem complicações anais: reter, soltar, prender, não saber lidar..., basicamente tudo que esteja ligado à dificuldade do “por pra fora”.

Há complicadores. Na fase oral, por exemplo, o vômito (bulimia) é a recusa em “por pra dentro”. Na fase anal, a constipação intestinal (prisão-de-ventre) é a recusa em “por pra fora”. O vômito pode ser transformado no contrário: recusa em se alimentar (anorexia). A prisão-de-ventre pode virar diarréia.

Seja como for, as duas primeiras fases da vida são assim: aceitar o mundo como ele é, rejeitar do mundo o que ele não pode ser. Gente, o mundo é bom! Então, põe pra dentro. Gente, esse trem não presta! Então, põe pra fora.O objeto oral, via de regra, vira dejeto anal. E assim caminha a humanidade. Pondo pra dentro e pondo pra fora. Pra dentro, pra fora, pra dentro, pra fora... Simples assim!

Algumas espécies engolem o próprio vômito. Não é o nosso caso. Outras, comem o dejeto. Também não é o nosso caso.

A não ser...

Numa raríssima exceção apresentada em horário nobre e apreciada por milhões. Mas aí, não se trata propriamente da espécie humana. Seria uma espécie de sub-espécie, sub-gente. Entende? Uma raça dentro da espécie que engole vômito e se alimenta dos dejetos dos outros.

Realmente, não sei onde classificar essa nova espécie recém descoberta. Cachorro, eu sei, lambe vômito. Galinha, que eu saiba, come dejeto. E outros tantos espécimes catalogados que não teria condição de elencar.

Mas onde catalogar essa nova espécie? Em certos aspectos, ela se apresenta por demais elegante: freqüenta lugares de fina estampa. Em outros aspectos, ela é, sobretudo, refinada: possui paladares de fino aparato. E, no entanto, contemplem o disparate: ei-la, diariamente, fartando-se do dejeto alheio.

Caso isso seja “gente”, onde dependurar essa nova categoria de “gente”? Ainda não foi possível encontrar uma brecha nosográfica (no catálogo de doenças) onde inserir (ou seria enfiar?) essa nova entidade do candomblé humano.

De verdade? Acho que nós é que somos atrasados. Enquanto procuramos respostas para as pequenas e grandes questões existenciais, enquanto nos consumimos de horror diante dos excessos destrutivos, enquanto perguntamos a Deus se é a poluição que não o deixa ver os desmandos cá de baixo, o comando da sub-gente descobriu que nada disso vale a pena. Se existe algo que importe – vamos lá, gente! – é “espiar”. E pensar que um dia levei uma reprimenda, justamente, por olhar por um buraco de fechadura! O condenável de ontem virou o aconselhável de hoje. O mesmo Heráclito de Éfeso estava certíssimo: tudo flui, panta rei! O bife de ontem é o picadinho de hoje e o croquete de amanhã. E, depois de tudo, claro, o vaso sanitário! A felicidade começa na prateleira de supermercado e termina na lata de lixo. Ou além.

Nós é que estamos atrasados. Ao invés de conhecer, espiar. Quem sabe, numa dessas, atrás de um buraco de fechadura côncava ou de uma tela plana, encontremos o que nenhum livro, nenhuma biblioteca, nenhuma universidade, nenhuma fonte de conhecimento nos possa alcançar? Quem sabe se trocando conhecer por espiar, a gente volte a ser macaco, ou um primo distante dele, de onde viemos, e para onde voltaremos se continuarmos... espiando?

A fase anal é o início de uma intensa corrida epistemofílica da criança. Acho que posso traduzir esse palavrão pelo termo “curiosidade”. Quando a criança aprende a falar, ela preocupa-se em compreender o que se passa nessa terra incógnita, onde ela vive experiências dolorosas de abandono, angústia e solidão. Do cocô pro barro, do barro pra massinha, da massinha para o conhecimento. Tai o extraordinário percurso humano! Fazer o trajeto de volta (massinha-barro-cocô) não parece uma boa alternativa, no entanto, é o que se faz, de novo, a cada memorável início de ano, quando falta conteúdo alimentar e sobra resíduo fecal.

É que a fase anal tem o seu irresistível apelo a voltar ao cocô: nosso primeiro orgulhoso produto, nossa primícia dadivosa para o mundo. Mas, vamos combinar que essa sedução excrementícia faz parte de uma fase ultrapassada, OK! Ficou bem lá atrás, numa época em que a gente não conseguia distinguir bem a cor da papinha da cor do cocô. Naquela época, aliás, nem eram muito diferentes. Hoje já bem sabemos definir cores e sabores. E somos até capazes de não mais mergulhar, sequer a ponta do dedo, na m.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

"PINHEIRINHO" DE NATAL

Só a nossa espécie, só ela, possui a característica de sentir com o outro o que o outro sente. Inventamos palavras para designar esse aparelhamento sofisticado que só ocorre entre nós: simpatia, empatia, compaixão...

Nem bem foram desmontados os pinheiros de natal, nem bem os acordes natalinos foram embora, e já acordamos num triste domingo sob o impacto da vitória da experiência sobre a esperança. Pra que esperar que algo mude na sociedade humana? Pra que ter esperança na espécie humana? Chamem-se as forças, derrube-se à força, incendeie-se, bote-se no chão. Sobretudo, misture-se tudo, crianças inclusive. Queime-se o joio, e o trigo junto. Só espera os dois crescerem quem tem esperança. Nossa sociedade dita humana perdeu a esperança. Pra que ter esperança se a gente tem shopping?

É claro que o problema é grande, que os interesses são ainda maiores, que as mazelas são infinitas. É óbvio que há joio. Ô! Mas será que não temos problemas também dentro de nossas casas? Será que tudo é maravilhoso quando a gente fecha a porta da rua? Será que não temos, também nós, vontades selvagens de botar tudo abaixo? Em determinados momentos, o que a gente não faria com um litro de gasolina e uma caixa de fósforos? Mas fizemos? Faremos?

Há situações sem respostas. Mesmo assim, não percamos a nobre capacidade de manter as perguntas. Isso é nosso. Só nosso. Só do humano.

Assim mesmo, continuemos acreditando que só a nossa espécie, e só ela, possui a característica de sentir com o outro o que o outro sente. E a que as palavras que inventamos para nomear essa aquisição não são apenas vazios semânticos. Existe simpatia, empatia, compaixão. Acreditemos nisso, nem que seja só para poder ensinar a nossos filhos.

Na década de 70 – 40 anos atrás – quando as pessoas eram mais engajadas com o sofrimento social, até porque o sofrimento pessoal era maior também, um sujeito inspirado criou uma música-verdade que foi cantada nas igrejas. Ela foi o símbolo de uma época em que saber o que o outro necessitava e no quê a gente podia ajudar era mais importante do que discutir a tonalidade da cor da tinta do cabelo.

A letra é essa:

Para mim a chuva no telhado
É cantiga de ninar.
Mas o pobre meu irmão,
Para ele a chuva fria
Vai entrando em seu barraco
E faz lama pelo chão.

Para mim o vento que assovia
É noturna melodia.
Mas o pobre meu irmão,
Ouve o vento angustiado
Pois o vento, esse malvado,
Lhe desmancha o barracão.


Como posso ter sono sossegado
Se no dia que passou
Os meus braços eu cruzei?
Como posso ser feliz
Se ao pobre meu irmão
Eu fechei meu coração
Meu amor eu recusei?


Às vezes, fico pensando que mesmo quando não conseguimos resolver o problema, só o fato de tê-lo encontrado e nomeado já significa algum caminho de solução. Às vezes, quero crer que quem sabe, um dia, de tanto não somente engolir o que nos empurram pela goela abaixo, a gente até se salve, da gente mesmo.

Enquanto isso, não percamos a esperança. Foi o que sobrou da caixa de Pandora.

domingo, 22 de janeiro de 2012

SÍNDROME DO PÂNICO (3)

Gostaria que você prestasse bastante atenção a isso que vou lhe dizer. O que mais tarde aparece como doença – Síndrome do Pânico – ela mesma é uma configuração psíquica em forma de defesa organizada para evitar um colapso que já ocorreu.

Como assim, já ocorreu?

O vidro, de antemão, tem seus pontos de clivagem: em determinados lugares do vidro, ele já se encontra quebrado. Isso explica porque uma pedrinha que bate no pára-brisa, às vezes quebra, às vezes não quebra o parabrisa. Sabe aquele copo “cristal bacará-cica” (ex-requeijão) que bate, bate e não quebra? Pois é, às vezes, uma encostadinha na pia e plim! Quebrou. Mas por quê? Por que a pedrinha quebrou o vidro? Quebraram-se, porque foram atingidos nos seus pontos de clivagem, ou seja, no exato lugar onde já estavam quebrados.

Nós temos nossos pontos de clivagem. Às vezes, por nada, uma pedrinha, uma palavra... e a gente se quebra. Há pessoas do nosso entorno que tem o toque cirúrgico, alguma capacidade extraterrestre de saberem exatamente onde a gente se quebra. Aí, vão lá, e plim!

A Síndrome do Pânico é uma configuração psíquica em forma de defesa organizada para evitar um colapso que já ocorreu. Ou seja, a gente tem medo de quebrar o que já está quebrado. O sujeito que não queria se referir aos pais em sua prosa, na verdade, o que não queria era expor-se a alguma quebra que já havia dentro dele. O medo de ter medo é o pior medo.

Você não veio pronto. Você teve de aprontar-se. O psíquico teve de se alojar no corpo. Ma não como um espírito que cai das alturas. O psíquico se alojou no corpo porque já estava ali, desde o primeiro momento, alucinando com a boca a primeira mamada assim que a fome visitava o ser desamparado. Como o psíquico se alojou no corpo? Isso só foi possível mediante suas primeiras relações. A mãe tem papel fundamental na apresentação do mundo à criança e da criança ao mundo. É com esse mundo que a criança irá se relacionar. É esse mundo que vai fazer dela o que ela será.

A apresentação do mundo acontece mediante o holding materno. Holding é um termo técnico criado pela Escola Inglesa para indicar o embalar materno, o sustentar nos braços e não deixar cair, a capacidade da mãe em apoiar o pequeno ser desde sempre – por que não pensar? – desde a nidação no útero. Esse não é um aprendizado cognitivo, mas emocional. Para a criança, não basta saber o que é o mundo. Ela tem de saber como é o mundo e, sobretudo, que o mundo é confiável. O holding materno faz do mundo um lugar confiável. Só existe relação onde existe confiança. Não há contrato humano que substitua ou dispense a confiança.

Esse espaço de confiança só pode acontecer num mundo previsível. A criança precisa de uma mãe consistente, regular, monótona, previsível. Nada pode acontecer “no susto”. Como disse Winnicott, no texto citado, nada pode acontecer “por coincidência”. Não é uma coincidência que a mãe esteja ali, onde o seu pequeno ser precisa que ela esteja. Não pode ser fruto do acaso o fato de a mãe acorrer ao chamado do filho, seja por choro ou alegria. Pelo menos, não deveria ser. É por evitar essas “coincidências” e ”acasos” que a mãe presente se faz presente de forma, apenas, suficientemente boa. Vamos ver, mais tarde, que essa presença materna deve ser apenas suficiente: nem mais nem menos.

Entre a mãe e o bebê, o espaço deve estar “sempre cheio”. Nesse espaço “sempre cheio” não sobra lugar para suspenses, sustos, irregularidades. Se o filho chora, ele sabe que a mãe está ali. “Mamãe ta aqui, mamãe ta aqui...” Se a mãe se ausenta, o espaço “sempre cheio” permitirá que o bebê suporte a ausência.

O caos se instaura se o espaço entre o bebê e sua mãe estiver “sempre vazio”. A resultância disso pode aparecer numa sensação de aniquilamento e loucura: a tal angústia impensável. A mãe precisa assegurar sua permanência no mundo e tecer sua presença constante. Daí a indispensável regressão materna nos últimos meses de gravidez. A mãe regride para poder falar a língua do “seu outro” do jeito como ele entenda: “Mamãe ta aqui, mamãe ta aqui...”

Esse “espaço sempre cheio” ficou conhecido como “preocupação materna primária”. Cabe à mãe saber o que o bebê necessita, sem que ele tenha a menor condição de se expressar. Mas uma vez, insisto: isso nada tem a ver com inteligência ou aprendizado cognitivo. Esse aprendizado não se alcança em livros ou revistas especializadas. Essa capacidade vem da própria saúde emocional da mãe. Em suma, essa capacidade resulta do que aconteceu com ela, do modo como aconteceu, do modo como ela enxergou e processou o que teria sido a “preocupação materna primária” da sua própria mãe, da mãe da mãe.

A falha (lembra-se dela?) recebe o nome de trauma. O que é o trauma?

O trauma é a quebra do sentimento de confiabilidade, no momento em que o ambiente fica imprevisível. O colapso vem da perda de confiança. Usem isso para todas as situações conhecidas em que houve a irrupção de um trauma psíquico. O que foi quebrado foi a confiança.

Nesse contexto, diria que as pessoas podem ser divididas em duas categorias: as que carregam e as que não carregam consigo a memória perdida da angústia impensável. As que carregam a memória de uma angústia impensável construíram a sua vida dentro dos muros de um castelo invisível, para ser uma organização defensiva contra o mundo e todos os seus perigos e ameaças, na maioria, imaginários. Isso gera uma situação de dependência permanente, para não se voltar ao colapso sofrido.

A mãe é suficientemente previsível, não quando ela não falha, mas quando ela não é uma falha. O bebê se apropria do sentido de previsibilidade. Só aí ele pode enfrentar a imprevisibilidade intrínseca da vida. Porque a vida é constituída de situações imprevisíveis e o escapismo não é a solução. Enfrentar a vida, do jeito como ela se apresente, sem se esconder de medo na couraça da covardia nem se aventurar em atrevimentos perigosos.

O pânico surge onde o colapso já existiu. O medo da perda acontece porque algo já foi perdido. O medo da morte existe porque ela já foi, de alguma forma, experimentada.

A “mãe suficientemente boa” não é aquela que evita todas as instabilidades. Isso não prepararia o sujeito para a vida. A “mãe suficientemente boa” permite que o bebê passe pela sensação de instabilidade, porque ela está ali, e ela sempre vai estar ali para garantir a volta da estabilidade e da segurança.

Foi assim que você foi psiquicamente constituído. Você foi constituído nessa dinâmica de perda-encontro, montando o equilíbrio de segurança-insegurança-segurança. A vida sempre será insegura, instável, precária e transitória. Saber como lidar com isso é o seu segredo. Será sempre o seu maior segredo.

SÍNDROME DO PÂNICO (2)

Mas o que ocorre numa Síndrome do Pânico? Melhor: o que se esconde numa Síndrome do Pânico?

Para entender essa questão, é preciso ir à base do edifício humano.

Parêntesis. Dia desses, um sujeito chegou, entrou, sentou e me disse: “Vim aqui, mas não quero falar nem do meu pai nem da minha mãe.”
- Resposta número 1: Então, ta! Tchau!
- Resposta número 2: Você mesmo já falou!
- Resposta número 3: Quem você eliminaria do BBB?
Qual das três você acha que eu empreguei na ocasião? (... ... ...) Errou! Simplesmente, fiquei quieto e esperei que ele mesmo se desse conta da inadequação da própria postura. Sorte minha: ele era inteligente! Foi só um escorregão.

Na base do edifício humano, encontramos duas sensações fundamentais, sem as quais um dia a casa cai: previsibilidade e confiança. Um ambiente previsível e confiante garante uma experiência de continuidade na existência da criança. A falha no ambiente produz angústias impensáveis no pequeno ser. Essas angústias impensáveis produzem um colapso nos processos que deveriam estar acontecendo naquele momento: integração, personalização, contato com a realidade. A criança não sabe o que está acontecendo. Caso falte confiança e previsibilidade, só o que ela sabe é que tudo está ruim. O ambiente precisa prover que o primeiro contato com realidade mostre a ela que a vida não é ruim. Nesse processo, o quesito mais importante é, de longe, a confiança.

Uma criança saudável, que teve continuidade da existência, que se personalizou, que se integrou, a quem a realidade foi apresentada desde o início como boa, confia neste mundo. Se o mundo for estável, ela confia que ele não vai falhar. Se confiar no mundo, pode também confiar nos outros, ficar tranqüila e brincar. Mais tarde, no mundo adulto, terá uma chance muito grande de apreciar-se a si mesma, de gostar do que faz e fazer bem feito. Confiança é tudo!

Daí, a gente entende que pessoas não consigam confiar. Faltou um ambiente previsível. Ambiente previsível é aquele que não vai mudar a toda hora. Pensem numa mãe depressiva, com transtorno bipolar ou pânico. Imaginem uma mãe que abandona facilmente o pequeno ser nas mãos do primeiro que se apresentar, por ter “algo mais interessante” a participar. Imaginem uma família sem condição de oferecer previsibilidade, que muda de casa e de cidade a cada estação.

Conheci um padre que criava galinhas. O bispo o mudava tanto de paróquia, que se dizia que quando ele chegava perto das galinhas, elas erguiam as asas pra ele pegar. Mas ele era sozinho, e as galinhas não precisavam de nenhum ambiente tão previsível e confiante. Pelo menos, não como uma criança necessita.

Um ambiente previsível gera confiança. Confiança gera estabilidade. Estabilidade é o antídoto do medo. “Desenvolvendo-se num ambiente em que os cuidados maternos sejam contínuos e tenham como característica a regularidade, a monotonia, a evitação de coincidências, e onde a mãe é consistentemente ela mesma, o nenê pode permanecer por tempo suficiente num mundo subjetivo no qual o mundo da realidade externa não se intromete” (Winnicott, psicanalista inglês).

Esse ambiente torna a criança capaz de prever. A confirmação regular das suas expectativas forma a base de apoio para a confiança. A isso se dá o nome de ambiente facilitador. Facilitador do quê? Facilitador de que as primeiras experiências boas possam ser repetidas. Quais? Previsibilidade e confiança. Para quê? Para acreditar no mundo, apesar dele mesmo, e acreditar em si, apesar de si mesmo.

Nesse estágio inicial, o nenê vive na dependência absoluta da mãe. Se ele conseguir induzir a si mesmo a pensar e a crer que a mãe não vai falhar – se ele chorar e a mãe estiver ali, por exemplo – ou seja, se ele repetir a sensação de que o ambiente é previsível e confiável, ele vai crescer com confiança no mundo. Repito, apesar de o mundo não ser lá grande coisa! Mas a chance dele ficar melhor será maior se os seus habitantes planetários conseguirem confiar até mesmo na incrível capacidade dele ser melhor e na ainda mais incrível capacidade deles serem melhores.

Toda pessoa é dotada de uma tendência ao amadurecimento e à integração numa unidade. Ou seja, toda pessoa vem com um chip que proporciona crescimento afetivo ao lado do amadurecimento biológico. Mas isso depende do ambiente facilitador, isto é, de um ambiente que ofereça cuidados suficientemente bons. Se o ambiente não for facilitador, não oferecer cuidados suficientemente bons – se a mãe apenas não estiver ali quando se precisar dela e só isso – pode acontecer uma falha (diria, brincando, geológica) no psiquismo. Nessa falha, a criança vive uma angústia impensável, perde a confiança e se desintegra. Futuramente, o nome da grande desintegração poderá ser psicose. Mas há também outros nomes mais brandos. Síndrome do Pânico é um deles. Seja o que for, o pior de todos os tormentos é a incapacidade de, simplesmente, o sujeito conseguir confiar.

SÍNDROME DO PÂNICO (1)

É o sofrimento psíquico do momento presente. Diria que é o fruto podre do mal-estar contemporâneo.

A primeira coisa que chama a atenção é a via sacra do paciente. Geralmente, ele procura o clínico geral, que o manda para um cardiologista, que lhe diz que o seu problema é um caso para o neurologista, que lhe diz “sentir muito, mas o caso é um assunto da psiquiatria”, que depois de medicá-lo, sutilmente, tenta fazer com ele procure um psicanalista, para ouvir do paciente, no final dessa odisséia: “Mas eu não sou louco, doutor!”

É assim.

Os sintomas surgem subitamente, sem causa aparente, “do nada”, como se fosse uma preparação do corpo para alguma "coisa terrível" que vai acontecer. Naturalmente, diante de qualquer perigo, o organismo aumenta a irrigação de sangue no cérebro e nos membros em detrimento de outras partes do corpo. O objetivo é fugir. A reação natural é acionar os mecanismos de fuga. Cai num curral de boi bravo, só pra ver!

Esse é o “sistema de alerta" normal do organismo: um conjunto de mecanismos físicos e mentais que permite que uma pessoa reaja a uma ameaça, real ou imaginária. Esse sistema tende a ser desencadeado desnecessariamente na crise de pânico. Por que desnecessariamente? Porque na Síndrome do Pânico não há perigo real iminente. O sujeito não foge de um perigo, ele foge da ameaça de um perigo. Se a ameaça for interna, o sujeito foge é dele mesmo. O Pânico é um despertador que toca na hora errada.

As estatísticas, geralmente, dos EUA (eles resolvem tudo com estatísticas), informam que 2 a 4% população mundial sofrem da Síndrome do Pânico; sendo 3 mulheres para cada homem, na faixa etária entre 21 a 40 anos.

O perfil do portador (como se fosse um pacote!) da Síndrome do Pânico é bem característico. São pessoas que se encontram no auge da vida profissional, pessoas (em geral) extremamente produtivas, ótimos profissionais, que assumem cargas excessivas de responsabilidades e afazeres, muito exigentes consigo mesmos, portanto, não aceitam erros e imprevistos, preocupam-se excessivamente com problemas cotidianos, extremamente criativos e perfeccionistas (com expectativas muito altas), controladoras (ou seja, necessitadas de aprovação), de pensamento rígido, de comportamento competente e confiável, propenso à repressão de sentimentos negativos (daí o orgulho e irritação), e com tendência a ignorar as necessidades físicas do próprio corpo. Tudo assim, numa frase só!

Amigo ou amiga, um conselho: se você marcou X em mais da metade disso tudo aí atrás, procure ajuda. Agora, se você gabaritou a prova, exija aumento de salário: você é um fenômeno! Sorte de quem trabalha com você!

Esse jeito de ser predispõe “os portadores” a situações de stress total. O stress aumenta a atividade em determinadas regiões do cérebro e desencadeia um desequilíbrio bioquímico nos neurotransmissores. Ok, ok, ok, já sei! Conversa do “Fantástico”, na competência cirúrgica daquele programa em transformar o resto do domingo numa lata de lixo cheia de casca de frutas com as drosóphilas voando por cima.

Agora, aponte o lápis para marcar X nos sintomas da Síndrome do Pânico: contração e tensão muscular, palpitações cardíacas, tontura, atordoamento, náusea, sensação de debilidade, dificuldade para respirar, boca seca, calafrios ou ondas de calor, sudorese, sensação de "estar sonhando fora da realidade”, conseqüente distorção da percepção da realidade, terror (sensação de que algo inimaginavelmente horrível está para acontecer), confusão mental, pensamento rápido demais, medo de perder o controle, de fazer algo embaraçoso, de morrer.

Quantos Xis? ...

Uma crise de pânico pode durar vários minutos e se estender durante anos. É uma das situações mais angustiantes que podem ocorrer a um humano mortal. (Desculpe-me a redundância: é que tem humano que não se percebe mortal, e tem mortal que não se percebe humano.) Quem tem uma crise, se não se tratar, é propenso a ter outras. Quando alguém tem crises repetidas fica extremamente vulnerável e ansioso, com medo do que virá pela frente. É nesse momento que a medicina diz que o paciente é “portador” de uma Síndrome ou Transtorno do Pânico.

sábado, 21 de janeiro de 2012

AS TAIS RELAÇÕES HUMANAS

Em latim, dizia-se que a natureza não faz saltos, “Natura non facit saltus”. A natureza não, mas a cultura faz. Aliás, a cultura só avança aos saltos. Um deles aconteceu por volta de 9.000 AC, quando a História humana deu um salto incomparável: o homem inventou a agricultura. Dali pra frente, era preciso determinar os espaços de cada um, cercá-los e respeitá-los. Dali em diante, era preciso deixar a água limpa para o outro que morasse abaixo, ou o de cima sofreria retaliaçõe. Pronto. Estava criado um novo modelo de relação humana diferente de quando o homem saía em bando para caçar e não “tava nem aí com nada!” O homem começava a ser um ser social.

Um modelo sempre puxa outro modelo. A partir desse novo modelo, surgiu o patriarcado. Os homens passaram a trancar suas mulheres em casa: era preciso ter certeza de quem era a cria que herdaria a possessão. A partir daí, os homens passaram a enterrar os mortos. Quem sabe também eles não brotariam como as sementes? A partir daí, o homem se encasquetou com a vida eterna. Claro! Se os homens não brotavam aqui, na certa, estariam brotando em outro lugar. A partir desse simples fato de enterrar a semente e vê-la crescer surgiria, aos poucos, como broto de planta nova, a extraordinária capacidade simbólica que só, veja bem, só o humano é capaz de ter. (E vê se não inventa que é por causa de glândula pineal ou isso ou aquilo. Não.) A capacidade simbólica do humano surgiu por causa da necessidade que só, veja bem, só humano tem de encontrar respostas para poder fazer novas perguntas.

Estava definitivamente instalada a relação humana. “E foram felizes para sempre!”

Bem, não tanto assim. É importante perceber que as relações humanas não são naturais. São culturais. Nada no humano é natural. Desde que nasce – desde a chupeta – tudo é cultural. Até fazer cocô é cultural. Uai! A gente teve de aprender onde, quando e como. Cachorro aprende? Aprende. Papagaio aprende? Não. Papagaio aprende a repetir, mas não sabe fazer o número 2 no lugar certo.

Assim que nasce, o pequeno ser é encharcado por um mar de cultura. Antes de entender qualquer palavra e apesar de não entender nada, a mãe já conversava com seu nenê. E ele se arrebentava de tanto rir só por ouvir aquela voz. A mãe-cuidadora estabelece esse vínculo emocional. E o pequeno ser cresce. A mãe-chocadeira, na verdade, realmente, providenciou tudo o que o pequeno ser necessita. Mas não “conversou” com ele. E ele adoece.

Se não houver relação humana não haverá ser humano. E vice-versa. Acontece que as relações não são um dado, são uma conquista, uma construção do dia-a-dia. E não é fácil. Imagine que toda estrutura jurídica de um país só existe porque as relações não subsistem por si mesmas. As relações são sempre estadas de mão-dupla. Há sempre toda possibilidade de choque nesse caminho, há perigos nas encruzilhadas, mas não há como não compartilhar essa jornada. E quando o caminho se faz difícil, a última coisa a ser feita é apontar com o dedo indicador na direção do outro, com aquele solene: “Foi por sua causa!” Os dois estão a caminho, os dois são responsáveis por todo êxito e por cada fracasso. Discutir ad nauseam a porcentagem de culpa de cada um não leva a lugar nenhum e só causa ainda mais sofrimento e dor.

É justamente aí que o Evangelho linka com a experiência humana. O Evangelho recria as estruturas antigas e as faz novas: vinho novo em odres novos (Mt 9,16). Ele faz novas todas as coisas.

Jesus não curou fígado, estômago, rins, aparelho reprodutor, sistema cardiovascular... Será que não havia nenhum hipertenso por ali? Mas Jesus curou olhos (que não enxergam a realidade do outro), ouvidos (que não conseguem ouvir o outro), a fala (de quem se recusa a se comunicar), a lepra (para que o sujeito possa se deixar tocar pelo outro) as mãos (sobretudo, as secas) os pés (sobretudo, os coxos)... Ou seja, ele curou os órgãos das relações humanas. Melhor: o que ele curou foi a própria relação humana doente.

O protótipo das relações humanas é o casamento. Se não for onde mais as relações adoeçam, pelo menos, é onde mais demonstram sua capacidade inerente de adoecer.

Tudo começa na paixão. Mas paixão é só a primeira marcha: só serve para tirar o carro do lugar. E ninguém dirige na primeira marcha, isso detona o carro. O amor vem da segunda marcha em diante. Dependendo do terreno, do carro e da perícia do motorista, o carro-casamento pode andar até na quinta marcha. Se a estrada não for boa, a subida for íngreme, ou você precisar reduzir a velocidade, a marcha terá de ser reduzida. Enquanto você não souber dirigir, não ultrapasse. Se você não estiver em condições de dirigir, não corra. Se beber, não dirija.

Por falar nisso, você é vinho. Suas relações dependem do tipo de vinho que você é. Vinho ruim, com o tempo, avinagra. Vinho bom, com o tempo melhora. Todos os nossos atos, gestos, atitudes e relações são um brinde à vida. Então...

Saúde!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

NORMOPATIA

Normopatia é a patologia da normalidade. A palavra vem de NORMO (normal) + PATIA (doença, sofrimento, paixão).

O termo foi criado para retratar um certo tipo de pessoa aparentemente bem adaptada e normal, sem nenhum conflito psíquico ruidoso, neurótico ou psicótico. É uma beleza de sujeito! Sério, honesto, trabalhador, cumpridor dos deveres, bom que dá gosto! Vai à missa todo domingo, confessa e comunga.

No entanto, tudo que esse sujeito faz, acaba num impasse. Ele nunca é “sim” e “não”, ele é “nim”. Não é que ele não “saia de cima do muro”: ele é o muro! Como não consegue fazer um mergulho profundo dentro de si, acaba sendo o famoso “sem sal”. Geralmente nem consegue terminar as coisas que começa. Muita iniciativa, pouca continuativa, nenhuma acabativa.

Mas por que normopatia e não normalidade? Porque é uma normalidade falsa ou apenas aparente. É uma normalidade estereotipada ou reativa decorrente de um processo de sobreadaptação defensiva. O sujeito não é aquilo que aparenta. Aquilo é apenas a blindagem com que ele se protegeu para sequer entrar em contato consigo mesmo. É que lá dentro habitam desejos inconfessáveis.

Onde encontramos essa “normalidade”? Encontramos, sobretudo, em gente refratária: aqueles que não sentem, não choram, não se condoem. Mas também vamos encontrar essa configuração psíquica entre somatizadores, desviantes sexuais, drogadictos...

Esses sujeitos possuem pensamento operatório. Pensamento operatório é aquele tipo de pensamento feito para resolver problemas, consertar coisas, trocar pneus. Se você furar o pneu do carro, precisa ter um sujeito desses do lado. Mas precisa dizer pra ele que o pneu furou, senão ele nem vê. Eles até são capazes de resolver coisas práticas. Mas para conviver e conviver com eles é dureza! Ele transita pelo mundo com uma pobreza muito grande de expressão simbólica: dá a impressão de ser um robô. É um sujeito feito para casar, mas não para namorar!

Se você for adiantado em anos, certamente, vai se lembrar do Sr. Spock, o vulcano da Jornada nas Estrelas. Ele não entendia como os humanos não se expressassem diretamente naquilo que queriam. Ele era normopata. Aliás, nem isso, ele não era humano. Nós, os humanos, não expressamos diretamente aquilo que queremos. Com exagerada freqüência, fazemos SP-Rio via Moscou. Não existe sequer uma trilha no meio do mato em linha reta. Os humanos não andam em linha reta.

O normopata anda apenas em linha reta. Uma pessoa assim só fala de coisas atuais. Dá a impressão de que não tem história nem recordações. E, se tem, nunca se refere a elas. É um sujeito com a profundidade de um pires e a cara de azulejo de parede. Se você jogar tinta, ela escorre.

Um normopata não pede ajuda. Para ele, “está tudo bem!” Se chega a pedir ajuda, é sempre para os outros: os filhos, os pais, os cônjuges... Eles é que precisam de ajuda, ele mesmo, ara, jamais! Ele não sofre nada. Se sofre, é por causa “desses aí”. Nem preciso dizer o quanto um sujeito (ou sujeita) assim foge dos compromissos consigo mesmo. Eles escondem o problema e se escondem atrás do “está tudo bem!” O mundo é que está errado, os outros é que estão errados. Com eles, está sempre “tudo bem!”

É que o neurótico (gente comum como a gente) tem queixas. O normopata, não, ele em teorias. Tudo para ele está previamente teorizado e enlatado. A vida para ele é um bolo-de-caixinha e a receita para todas as questões existenciais é sempre a mesma. Até porque, para ele, não existem questões existenciais. Um bolo-de-caixinha ou um sorvete de máquina são muito mais variados que o modo como esse sujeito enxerga a existência.

Por demonstrarem pouca capacidade afetiva, é difícil para um normopata chorar, e a impressão de que deixam é a de serem pessoas “secas”. Vários normopatas privilegiam apenas o aspecto material da vida. “Primeiro, você ganha dinheiro, depois vem os amigos!” Já ouvi de um deles, em priscas eras. É que foi removida a capacidade de sonhar e o devaneio, tão próprios, aliás, tão exclusivos da espécie humana.

De certa forma, todos somos normopatas em algum grau. O que varia é a intensidade: o botão do volume. Também como eles, muitas vezes, atravessamos a vida presos à realidade como um náufrago a uma pequena tábua de salvação. O fato é que todos nós nos agarramos à pequena tábua de salvação apenas até que apareça um barco salva-vidas. No caso em questão, na vida de um normopata, a tábua já serve de barco salva-vidas. Tudo o que ele tem é só o que ele tem e nada mais. Triste, não?

Vem cá, como isso aconteceu? Ou o quê aconteceu pra isso acontecer?

Uma das funções da Mãe é manter a constância. Constância proporciona sensação de segurança. Se o bebê experimenta Mãe como inconstante, isso gera angústia. E o bebê resolve a angústia suprimindo a Mãe e colocando no lugar dela uma parte de si mesmo. A Mãe deixa de ser o espelho gerador de confiança. Com isso, não é mais a Mãe que fascina o bebê: ele próprio se fascina.

Viram que escrevi Mãe com maiúscula. Não se trata apenas da figura física. Mãe não é figura física (com CPF e RG). Mãe é figura jurídica (tem CNPJ). O senso comum sabe que mãe não é aquela que gera, mas a que cuida. Até o senso comum sabe que ser Mãe: cuidar, amar, zelar, é mais do que simplesmente ser mãe: gerar, parir, procriar.

Daí pra frente, durante a vida, esse sujeito sempre irá substituir a outra pessoa por qualquer outro objeto harmônico toda vez que precisar sustentar sua própria fragilidade e a procura de tranqüilidade. O objetivo será sempre eliminar a tensão. Na verdade, todos queremos isso. A diferença é que o normopata quer eliminar toda tensão.

Mas o que fazer, se as relações são sempre conturbadas? O normopata não tolera isso. Ele procura quem os idealize, quem os estime como um objeto superior. Para tanto, projeta no outro sua baixa-estima: o outro não presta. Para tanto, encontra no outro sua própria imagem idealizada. Quando ele diz: Como esse sujeito é bom! – na verdade, está apenas dizendo: Como eu sou bom!

O normopata não tolera diferenças. O fato, em si, de existir a diferença é difícil de suportar. A estratégia empregada será a de achatar as diferenças entre ele e o outro. Ele só procura objetos em comum com quem possa sustentar e manter a imagem ideal de si mesmo. Imagem ideal, portanto, frágil.

Esse sujeitos são propensos à harmonia. Mas, não se enganem, é uma falsa harmonia. Como eles rejeitam a diferença, são avessos a acolher as complexidades da convivência humana, porque nessa, eles vão encontrar as diferenças que detestam. Dessa forma, evitam questões internas complexas, reduzem a vida social, e só a mantém em alta quando se trata de lugares onde possam exibir sua superioridade estereotipada. “E aí? Como vai? Tudo bem, né!” Eles mesmos perguntam, eles mesmos respondem, e ai de quem ousar responder.

O objetivo de evitar qualquer encontro mais profundo com o outro é se proteger de qualquer encontro mais profundo consigo mesmo, naquilo que nem sempre é possível querer encontrar dentro de si mesmo. Para poder se conduzir na vida sem nenhum atropelo, um normopata se refugia no pedestal que construiu, onde ele mesmo, na certa, morre de solidão. Mas fazer o quê? É o pedestal que lhe dá a garantia da distância da diferença que ele não suporta. A Igreja Católica conhece São Simeão Estilita (não estilista, stylos é pilar em grego). Ele era um asceta sírio do século V, que passou a vida em cima de uma coluna de pedra de dezessete metros de altura. Vai entender!

Daí que esses sujeitos acabem sendo enfadonhos. No casamento, geralmente, procuram um parceiro vigoroso e interessante, desde que ele não constitua um desafio à baixa auto-estima. Uma geladeira sempre procura outra geladeira; vez ou outra, procura um fogão. Os parceiros são o objeto de idealização. Mas é preciso muito cuidado: a imagem que ele faz do outro se quebra com muita facilidade. O vidro desse espelho é muito fino. É preciso sempre pisar em ovos, “pois qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água!” Para o espelho não se quebrar tem sempre que dizer “sim”. “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?” Nesses casos, existe sempre um espelhamento empático: como o do bebê e sua mãe. Lembram-se que o bebê não mama leite? O bebê mama olhar. Mas o bebê cresce, não é!

Essas pessoas não suportam críticas nem julgamentos. Diante de qualquer crítica, desponta vigorosa a agressividade. Toda vez que o espelho se quebrar, surge a ansiedade, ansiedade gera vazio interno, vazio interno produz agressividade. Ataques de ansiedade geram descarga de pânico. Esse pânico é a raiva projetada a fim de restaurar a harmonia.

Esses ataques, panicosos ou agressivos, removem a alteridade diferenciada. O outro (diferente) é uma ameaça que precisa desaparecer. O normopata faz tábula rasa da vida. Porém, responda, há castigo pior? Esse procedimento empobrece os sentimentos, a criatividade, a vida. Desaparece a expressão criadora. Desaparece a capacidade de luta. Lutar implica reconhecer diferenças. O normopata se refugia com medo da diferença. Que sujeito “sem sal”!

O homem, antes de ser um animal racional (como propôs Aristóteles) é um animal simbólico. O homem e o castor fazem a mesma coisa: diques e pontes. O homem e o joão-de-barro fazem a mesma coisa: casas populares. O homem e o macaco procriam: geram prole prolixa! A diferença é que o homem convida para a inauguração, corta a fita, chama a banda, faz churrasco, mostra a casa para os amigos, dá nome aos filhos e sonha com o que eles serão quando crescerem. Nenhum outro animal faz isso.

O homem cria símbolos. O símbolo vem da capacidade de sonhar e do devaneio. A conseqüência da ausência de símbolos se traduz numa ausência de afeto e num sério transtorno cognitivo. Para quem lida com a questão religiosa, está aí a raiz do materialismo ateu. O normopata é um ateu, mas nem isso ele sabe de si.

Perdoe-me o pleonasmo, mas o homem é uma singularidade única. Você é uma singularidade única! O que faz de você “essa singularidade”, o que faz você ser você e não outro, a sua impressão digital da alma é a sua capacidade de sonhar e de se expressar cognitiva e afetivamente através de símbolos.

Você é singular. Não existem estatísticas a não ser para a matemática. A normalidade não tem nada a ver com estatística. A normalidade só pode ser concebida de acordo com a lógica interna de cada um, na sua relação consigo mesmo e com os outros.

Mas, e agora, como definir o que é normal? Direto para o início da vida! No início da vida, você não tinha recursos para distinguir o normal e o anormal. Aliás, naqueles gloriosos dias, você sequer tinha recursos para distinguir realidade e alucinação.

O primeiro passo da criança diante da fome é alucinar o seio. Ela vive um estado inicial de fusão entre ela e a mãe. A mãe e ela são uma coisa só. Aos poucos, ela vai perceber o seio como separado dela. Isso acontece depois de muitas e sucessivas experiências de satisfação e frustração. Essa alternativa – satisfação-frustração – possibilita a construção de uma noção de realidade. Começa bem cedo a mais importante aquisição da nossa espécie: a distinção entre eu e não-eu, entre eu e outro. Sim, porque no comecinho, tudo é só “Eu”. Muita gente permanece assim até o finzinho!

Quando essa distinção não é feita, a criança continua pensando que ela e mãe são uma coisa só. Conseqüência Nº 1: o mundo e ela são uma coisa só. Conseqüência Nº 2: o mundo tem de se adaptar a ela e fazer só o que ela quer. Vocês conhecem pessoas que só aceitam o mundo do jeito delas?

A primeira lei do pensamento é essa: tudo o que acontece é percebido e tudo o que é percebido deixa rastro. Aristóteles dizia que nada está no intelecto sem que primeiro não tenha passado pelos sentidos. A gente percebe até quando dorme: é comum sonhar com campainha quando o relógio toca.

Portanto, se algo aconteceu e não deixou rastro, alguma interferência muito séria houve. Algo entrou aí, nesse meio, e interceptou a comunicação de tal forma que, você sabe que deveria estar, mas não está. Quando a interferência é muito séria, ocorre da marca ser apagada antes de ser produzida. Nesse caso, o rastro do percebido não chegou a ser incluído para depois ser excluído. Ele não é nem incluído nem excluído, e nem por isso deixa de ser. Quando isso acontece, o que fica no lugar é um vazio.

A princípio, existem duas realidades: a realidade externa e a interna, o mundo de fora (que chamamos de “realidade”) e o mundo de dentro (que chamamos de “fantasia”).

Mas, agora, nós sabemos que existe uma terceira realidade. Primeira realidade: a interna. Segunda realidade: a externa. Terceira realidade: o vazio. O vazio é o externo que não virou interno. Ele ocupa tanto espaço e é tão denso que dá até pra cortar com faca.

O normopata não confunde os dois mundos: interno externo. Para ele, os limites desses mundos são muito claros, até porque, para ele, o que existe é só o mundo externo. O mundo interno, povoado de desejos e fantasias, não existe. “É coisa de quem não tem o que fazer!” É que ele vive no terceiro mundo: o vazio. Ele se aloja no vazio. Como um caramujo que carrega a concha e se protege, mas sozinho, dentro dela.

A realidade interna é suprimida. A realidade externa é super-investida de modo compensatório. Na verdade, compensatório, do quê? Da perda das associações. Porque as associações vão trazer lembranças, as lembranças trarão diferenças, e as diferenças incomodam tremendamente. E é disso que o normopata foge: das lembranças e das diferenças. “Para mim, só interessa o presente, o hoje.” “Quem vive de passado é museu.” “Eu não me lembro de nada” (Um caso sério de amnésia!) “Só lembro daquilo que eu quero.” (Chave de disjuntor?) Quanto mais frágil o objeto blindado, maior há de ser a blindagem. Não se lembrar de nada é uma boa blindagem.

Pois é, que bom se fosse assim! Que bom se a gente tivesse o controle onipotente de tudo! Seria tão fácil fazer regime! Mas a vida não é assim.

Qual é o resultado da normopatia?

Resultado para a vida emocional
O sujeito funciona como um robô impessoal e estereotipado, se tratando sempre na 3ª pessoa (a gente!). Há quem atenda ao telefone e responda: “Ele!”, no lugar de “Eu!” Contam que Edinho, filho do Edson Arantes do Nascimento, um dia, abriu a porta e gritou: Mãe, o Pelé chegou! Era tamanha a distância entre eles que o menino conhecia o Pelé da TV, mas não o pai. O resultado...

Resultado para o corpo
Angústias difusas: sobressalto, inquietude, ansiedade expectante. Insônia, vertigens locomotoras, agorafobia ou claustrofobia, maior sensibilidade à dor, afecções psicossomáticas e alimentares.

Resultado para as relações
Casamentos desastrados já na lua-de-mel. Empregos e faculdades que começam e não vão em frente. Alguém traduziu isso assim: “Muita iniciativa, pouca continuativa e nenhuma acabativa!” Retração narcísica e embotamento afetivo. Desinteresse pela vida, por tudo e por todos. Perda do sentido da transcendência (tudo é só aqui e agora).

A maior tarefa para quem acompanha um sujeito assim é ajudá-lo a construir a própria história. Construir mesmo, entende? Há pessoas além do peso e da idade, mas sem nenhuma história pessoal. É preciso colar as figurinhas no álbum. Em muitos casos, é preciso, até, inventar as figurinhas para serem coladas. Dá uma canseira! Eu brinco sempre que, geralmente, as pessoas nos procuram para desatar os nós. Nesses casos, diante de um normopata, a gente tem de inventar a corda.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

CONSÓRCIO-DIVÓRCIO

Só mesmo a gênia da lâmpada Gigigih pra ter uma idéia dessas e, perplexo, eu não sei como as grandes redes ainda não pensaram no assunto por esse viés.

De que vivem as grandes redes de lojas? De vendas, claro! Fora do calendário da histeria coletiva (natal, dia das mães...), quando é que as lojas mais faturam? A cada divórcio, claro! Montem-se tudo outra vez. Então, fica aqui a idéia para as Casas Bahia (Dedicação total a você), Lojas Cem (Ainda em que tem...), Magazine Luiza (Vem ser feliz) e as lojas da Praça do Mercado de Brazópolis. É o Consórcio-Divórcio.

Funciona assim: no ato de mobiliar a sua casa para o dia mais feliz da sua vida, você ganha um Consórcio-Divórcio com algumas primeiras tantas parcelas já pagas. Quando consorciado, você automaticamente ganha um mega-desconto para suas novas compras, claro, assim que for remontar a sua casa nova no segundo dia mais feliz da sua vida: o segundo casamento. Nesse dia, data venia, você ganha outro Consórcio-Divórcio. Sim. Porque vai haver um terceiro dia mais feliz, um quarto, um quinto... Quem sabe? As construtoras, as corretoras e as lojas sabem. Outra casa, outro fogão, outra geladeira, microondas, lavadora de roupas, lavadora de louça, garfo, colher, faca e todos os panos. Como diria Tia Ordália: “Enxovar compreto”.

Sei que isso pode parecer bizarro. Mas a bizarrice perde em todos os quesitos depois que inventaram a tremenda cara-de-pau de indicar o número da conta bancária para depósito em dinheiro pró-noivos-e-lua-de-mel. Algo mais deveria espantar? O casamento de Caras... Mas, melhor não comentar!

Outra idéia oriunda da sábia Gigigih é o “convite genérico”. (Essa vai na veia das gráficas.) “Eu e meu noivo ou noiva e nossos pais” convidamos você e os seus, porque decerto haverá um “seus” em algum lugar seja lá como for onde quer que seja, e nem o “eu” nem o “meu noivo ou noiva” precisam ser nomeados, tampouco os “nossos pais”. Questão de economia. Afinal, como se diz, a fila anda.

Santo Antonio que o diga! Dia desses, num seriado de TV, a personagem principal foi agradecer ao Santo pelo casamento que ele havia arranjado. No caso, o Santo da devoção aparecia e falava com ela. No que ela O convidou para o casamento, ele se esquivou “porque tinha outra pessoa para ajudar”. A noiva insistiu e ele respondeu:
- No próximo, eu vou.
- Como assim, no próximo?
- É... no próximo! Vocês estão sempre se casando de novo!

Mas será o Benedito! (Não, é o Antonio.)

Depois de tudo isso resta, mesmo, é dar o braço a torcer e reconhecer que, pelo menos, num ponto, a Santa Madre Igreja foi astuta, assertiva e tem total razão: casamento é um só. Se o primeiro foi muito bom, e o cônjuge – que tristeza! – enviuvou-se cedo, quem sabe, uma próxima tentativa pode lhe cair bem e até dar certo. Uai!

Mas se o caso for outro (até mudei de parágrafo) se o primeiro, realmente, não prestou, e se não valeram a pena nem as prestações que ainda não foram pagas, caro amigo, amiga dileta, antes de tentar se atirar de novo da ponte, faz favor, examine bem a sua parcela de responsabilidade no fiasco. Porque, que tem, tem. E muita sabedoria havia nalguns povos antigos que escreviam nas lápides o nome do médico, e permitiam de bom grado o sadio costume de consultar o antigo cônjuge do recém adquirido parceiro sobre a validade da nova parceria. Ele muito teria a dizer. “Ficha compreta! (Tia Ordália, de novo.)

O segundo casamento é a vitória da esperança sobre a experiência. Em certos casos, casar duas vezes – repito: sempre depende do caso – seria o equivalente a suicidar-se duas vezes. Se bem que, em assuntos dessa última pertença, às vezes, há salvação.