domingo, 30 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 10

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Lázaro se apagou. É noite.

Foi assim que terminei na última vez. Lázaro se apagou. É noite. Mas Marta e Maria, não. Elas não se apagaram. E para elas continuava dia.

Por que as mulheres não se apagam? E por que para elas sempre é dia?

Eu adoraria encontrar registros de teólogas influentes na igreja primitiva, na era medieval, na igreja da reforma. Mas não existem. Quando acabei de escrever a palavra “teólogas”, o computador acusou a palavra como errada por ser inexistente. Nem o computador reconhece que existam “teólogas”. Embora as mulheres estivessem certamente presentes e tenham sido fundamentais na vida espiritual das igrejas do cristianismo ao logo de sua história, até recentemente nenhuma delas foi capaz de influenciar de modo considerável o curso e a direção da teologia das igrejas.

Mesmo se a Igreja Latina Católica Ocidental reconheceu Catarina de Sena, Teresa de Ávila e Teresa de Lisieux como “doutoras da igreja”, elas não são propriamente teólogas: são místicas. Se as doutrinas espirituais são parte da teologia, nem por isso os místicos, que ensinam mística, ensinam teologia, a ponto de serem chamados de “doutores”. Francisco de Assis é um místico, OK? Mas não tem o título de “doutor da igreja”. O que faz crer que o título dado a essas três mulheres tem muito mais o sabor de prêmio de consolação do que o de um real reconhecimento por aquilo que as igrejas cristãs tenham a aprender das e com as mulheres.

O fato é que existem os “pais da igreja”, mas não existem as “mães da igreja”. E o evangelho é rico dessas mulheres. Marta e Maria, por exemplo.

Li outro dia uma tese interessante sobre teologia. O autor dizia que a teologia é um exercício intelectual, uma manobra de idéias, um jogo expansionista cujo objetivo é anular a posição do antagonista. Segundo o autor, a proposta da teologia não é apenas a de estabelecer contornos para a imponderável verdade espiritual; seu objetivo declarado é vencer e eliminar a oposição pela manobra rasteira do convencimento. Nesse jogo do “quem é mais forte” ou do “quem está mais certo”, sem dúvida, sempre esteve presente o tabuleiro dos interesses masculinos.

É que a teologia – ria, por favor – sempre foi escrita por homens que não estavam fazendo sexo. Tem um monte de outras coisas que você pode fazer enquanto não faz sexo. Acontece que historicamente – ta lá, nas linhas e nas entrelinhas – a teologia foi escrita por homens obcecados por sexo, e pelos motivos errados. A teologia, sobretudo, a medieval, mas não apenas esta, foi o esforço masculino de demonstrar que a verdadeira espiritualidade exige afastamento do mundo real. Daí a abstinência, a assepsia das idéias, o caráter infantilmente conduzido das discussões. Coisa de homens. Minto. Coisa de meninos.

Vamos falar claro: as mulheres não têm esse problema sexual. Não dessa forma. As mulheres não acham necessário contrastar a vida cristã com o que quer que seja, qualquer que seja a delícia da realidade física. Foi por isso que Marta e Maria renderam-se imediatamente ao charme de Jesus de Nazaré, o contador de histórias, que se recusava a rebaixar-se à especulação teológica e abraçava o mundo dos sentidos com mais avidez e candura do que o mundo das idéias.

As mulheres sabem que espiritualidade não é coisa da cabeça, mas do coração. Elas sabem que o que existe de relevante na mensagem de Jesus se manifesta em pés empoeirados, em abraços, unhas sujas, panelas de comida, manchas difíceis de sair, cafunés, consolos, longas conversas na madrugada, na cabeceira de doentes, na limpeza das secreções, nas lágrimas, na confecção de presentes, na sustentação de relacionamentos, na visita aos esquecidos, no repartir do pão, no sorriso dividido, no dilema de consciência, na intimidade da cama, na companhia silenciosa, na ausência impensável. Ops! Ninguém precisa queimar sutiã. Essas são atitudes que Jesus teria. Você escolha.

Em 1º de abril de 1933, aos 91 anos, Julie Bonhoeffer, avó de Dietrich Bonhoeffer (teólogo alemão morto num campo de concentração por discordar de Hitler), atravessou desafiadoramente o cordão de isolamento das tropas alemãs no boicote imposto aos estabelecimentos judeus. Ela caminhou, além da linha divisória dos soldados perplexos, e foi fazer compras na loja dos judeus que costumava freqüentar.
Marta e Maria? Maria, não sei. Marta faria a mesma coisa. Se resta na Terra evidência que honre a herança de Jesus, isso não se deve aos meandros e aos quiabos da teologia. Mas aos muitos joãos-ninguém, e às muitas Martas e Marias.

Devo um monte dessas idéias a um autor muito interessante.

sábado, 29 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 9

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11



“Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”.
(Jo 11,23)
A sua presença, por si só, o arrancaria da escuridão da melancolia, das trevas interiores de todos os amores que ficaram pela metade, dos apegos e preocupações materiais, da luta ingrata por conforto e bem-estar. Porque o sentido da vida não pode estar nessa engrenagem louca que humilha a nossa existência. Assinado: Marta.

“Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”.
(Jo 11,32)
Nem teria experimentado qualquer apelo sedutor de matéria, onde o que sobrou de alma se perde. Não teria conhecido nem ouvido as mentiras com cara de cheque-frio que nos passam. Se o Senhor estivesse aqui, Lázaro não estaria sozinho. É que a solidão – não sei se o Senhor sabe – é a pior e a mais pesada de todas as cargas humanas. Não há ombros... Não há ombros... Peço desculpas; decerto o Senhor sabe! Assinado: Maria.

Marta e Maria têm um caminhão de razão ao repetirem a mesma frase: “Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”. Jesus era o mapa do tesouro para Lázaro. Lázaro cavou no lugar do X. E encontrou o vazio.

Tão logo, as duas sabem da chegada de Jesus, saem em abalada correria com o grito na garganta de uma frase obsessiva, repetida para si mesmas e muitas vezes e o tempo todo: “Se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido.”

Marta provoca Jesus para que ele lhe dê respostas. E o leitor se espanta ao ver que Jesus entra no jogo dela, e começa a lhe dar respostas. Curioso é que Jesus nunca foi de dar respostas. Em certas horas, que resposta responde? Que sentido faz sentido? Marta está atuando todas as defesas de um ego frágil que passou pelo rolo compressor dos últimos acontecimentos. Ela não tem escolha e se defende da maneira que pode. Marta racionaliza.

A racionalização é um mecanismo semi-consciente pelo qual interpretamos o que está sendo dito de forma a não ser ouvido, e, caso seja, não tenha nenhuma conseqüência para nós. A racionalização é um filtro mental pelo qual transformamos o profundamente revolucionário e radical no totalmente irrelevante.

Marta racionaliza. Mas, afinal, racionaliza o quê?

Racionaliza o fim, o vazio, o sem palavra, o sem sentido, o buraco negro da vida, o impensável da morte.

Marta racionaliza. Mas, afinal, racionaliza para quê?

Racionaliza para dar conta da angústia, para fugir da dor que a comprime, para fazer alguma coisa que lhe impeça de pensar a questão impensável. Afinal, Lázaro morreu porque abandonou Jesus ou porque Jesus o abandonou? Qual resposta seria preferível, quando até a pergunta é difícil de fazer? O texto diz que Jesus se demorou a ir ao encontro do amigo astenon. Demorou? Que demora foi essa? E por que se demorou? Diante daquilo no qual nem se pode pensar, Marta busca refúgio nos arcaicos mecanismos de defesa com os quais construiu e manteve um ego, agora, fragilizado.

Lázaro... Marta... Maria... O desespero pegou todo mundo por lá. Na traseira, veio a depressão.

Na verdade, seria melhor falar em melancolia. Pra quem olhar de fora, a diferença pode ser sutil. Mas para um olhar de dentro, a diferença é grande. A princípio, o que se nota, seja na fala dos deprimidos seja na fala dos melancólicos é uma relação muito próxima e dolorosa com a falta e a perda, ambas, insuportáveis. Já, naturalmente, insuportáveis. Mas ainda mais insuportáveis para um deprimido melancólico. Perda e falta abrem o chão debaixo dos pés e não permitem nem andar nem viver.

Na depressão, algo foi perdido, e há a denúncia de uma perda. Com muita freqüência, o deprimido se lastima daquilo que teve e não tem mais. Ele repete: “Tive e perdi, não tenho mais!”

Na melancolia, algo que deveria estar lá, não está, e a falta sequer é denunciada. O melancólico pouco ou quase nada fala. Se falar, será algo como: “Eu nunca tive!” A melancolia é uma situação complexa, ainda mais do que a depressão. Daquilo que foi perdido resta a chance e a espera de que seja encontrado. Mas ao que nunca foi tido, que chance e expectativa restam de que possa vir a ser? Se eu nem sei onde está, se nem sei se esteve, se nunca saberei onde estará, para onde olhar? Que rumo tomar?

À noite, o fantasma da depressão fica maior. No escuro da noite, o monstro sem cabeça mostra garras agressivas. Para um deprimido, sobreviver a uma noite de vazio, só mais uma, é uma vitória. Ele sabe que haverá ainda outra e ainda outras noites sem dormir. Mas, essa, pelo menos, foi atravessada em paz.

“Não são doze as horas do dia? Se alguém caminha de dia, não tropeça, porque vê a luz. Mas quem caminha de noite, tropeça, porque nele não há luz. O nosso amigo Lázaro adormeceu. Vou despertá-lo” (Jo 11,11-12).

Lázaro se apagou. É noite.

domingo, 23 de outubro de 2011

DIVÃ 16

Segue em frente a renomada série: “Divã”!

Lembra da última vez que a gente falou que recalcar significava colocar no freezer o que você vê e sente. É assim: a gente vê; vê, sim. A gente sente; sente, sim. Mas nem bem vê o que vê nem bem sente o que sente. A gente “pula essa parte”. Entendeu? O resultado disso nem sempre é bom, e nem pode ser, né! Pode surgir daí uma aridez emocional e uma falta de vontade pra tudo na vida, que não deixa nada ir pra frente. Se você regar, não molha. Se plantar, não brota. Se brotar, não vinga.

Mas preste atenção a uma coisa: o recalque é seletivo. Nem tudo é recalcado. Lembra da idéia e do afeto? O que foi recalcado foi a idéia: as lembranças que deveriam ter ficado passeando na mente. Essas idéias somem. É o famoso: “Deu um branco!” “Não me lembro de nada.” “Não lembro nada da minha infância.” “Esqueci!...”

É que a idéia foi recalcada. Mas e o outro componente, o afeto? Lembra dele? Pra onde foi?

Foi pra lugar nenhum. Ele fica solto, desligado, aprontando das suas. Dessa forma, provoca sintomas, doenças, mal estar, depressão, dependência, desatino de vida... É ele, o afeto.

É que existe uma geografia política dentro da gente. Freud nos mostrou que somos internamente divididos. Não existe o indivíduo: o indivisível. Somos divididos. E quando as autarquias internas não se dão bem, quem paga o pato é o sujeito: você, mesmo!

Não importa como essas divisões sejam enunciadas. Freud falou de Id, Ego, Superego. Não. Ele não falou em nada disso. Freud falou de “Isso”, “Eu” e “Supereu”. O Isso é aquilo que não tem nome. Quando as coisas estão ruins aí dentro, você diz: tem uma coisa ruim, “isso” não ta bom! O Eu é quem, coitado, tenta dar nome às coisas e aos sentimentos. Nomear não significa apenas chamar pelo nome. Nomear é delimitar, comportar, suportar. O Eu é o gerenciador do sistema. O Supereu é o capataz encarregado da ordem na fazenda. Quando ele abusa do poder, quem apanha é o Eu.

O Eu sofre pressões de todo canto e de toda ordem. Sofre pressões do Isso, ávido de satisfação. Sofre pressões do Supereu, sádico, sacana. Sofre pressões do meio ambiente, e aí a lista das exigências é grande: trabalho, família, tradição, cultura, sociedade, religião...

O Eu sabe que qualquer concessão que ele faça, pode despertar o Supereu sádico com a arma que ele tem: a culpa neurótica. Onde se falou de culpa neurótica, leia-se ansiedade. E aí a coisa fica feia, porque Dona Ansiedade é de matar.

Por falar nela, você conhece essa senhora?

sábado, 22 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 8

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Se você leu o capítulo anterior, poderá perceber o alcance das palavras de Marta e Maria: “Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11,21-32). As duas repetem a mesma frase: Se o Senhor estivesse aqui, não apenas num momento, mas o tempo todo, Lázaro não se teria perdido, não teria abandonado aquilo pelo qual tanto lutou, sofreu, se entregou e viveu. Lázaro tinha um sonho. Pois, então, ele estava morrendo, justamente, por ter abandonado o sonho. Morto o sonho, morre o desejo.

Melhor dizer que Lázaro não morreu. Ele foi se deixando morrer. Sem ver. Como um homem que salta do 30o andar e ao passar pelo 20o afirma “Até aqui, tudo bem!”, Lázaro deixou de enxergar a própria vida. Não seria de estranhar que deixasse de enxergar a própria morte.

Mas há algo ainda pior que a morte?

O universo, a história humana e a biografia de cada um são marcados profundamente por dois princípios: eros e thânatos – o amor e a morte. Neles, o simbólico e o diabólico convivem juntos. O diabólico dilacera. O simbólico sutura e cura a ferida.

Essas duas forças antagônicas caminham juntas, dividem espaço, alternam-se e, por incrível que pareça, produzem a vida que, às vezes, conduz à morte, e a morte, que, às vezes, antecede a vida. E, por incrível que pareça, uma não existe sem a outra. Quando elas se desagregam, quando resolvem seguir separadas por rumos próprios, abre-se um vão perigoso, como um rio que abandonou o curso e deixou atrás de si apenas o leito vazio de areia seca: um vão, um vau.

Uma depressão.

Que chega devagarzinho. E você nem percebe. E só sabe que os dias não são mais como antes. Ficaram todos da mesma cor e com a mesma cara: manhã de segunda-feira chuvosa. De repente, eles começam sem vontade e continuam sem vontade, mas só um pouquinho, só um pouquinho mais. E de pouquinho em pouquinho, você vai ficando cada dia mais sem vontade. E tudo o que você fazia – antes tão cheio de alegria – torna-se um peso. Esse peso arca as costas e faz você caminhar olhando mais para o chão do que para o céu.

No começo, a gente ainda discutia com todo mundo: mulher, filhos, chefe, colegas... Todo mundo! Ou, então, exigia de todos que tudo estivesse no lugar exato onde deveria estar. Olhava as coisas ao redor e, onde estivessem, você sabia que não deveriam estar ali. Você começava a não gostar mais daquilo que via. Tudo, de repente, havia ficado feio, desarrumado, sem graça.

No começo, é possível que a gente se transformasse naquilo que as pessoas chamam de “grosso” ou ”sistemático”. Mas, com o tempo, a atitude mudou. É quando passamos da agitação à apatia. Fomos ficando distantes, de olhar perdido, buscando lá longe aquilo que já não se encontrava mais nem onde estava antes nem em lugar algum. Esse é o momento em que o sujeito se acostuma a se debruçar à janela para olhar o nada passando lá fora. E se alguém lhe pergunta: O que é que você tem? A única resposta que ele consegue arrancar desse nada é... “Nada!”.

Pois é, a depressão se instalou, tão de mansinho, que ninguém viu. Agora, ela estava aí. E era difícil lidar com esse monstro sem cabeça. Quem já lidou, sabe que afundou tanto no buraco da solidão, que já não conseguia mais erguer a própria cabeça, nem mesmo, pra dizer o que se passava dentro dele.

Se contar, quem entende? Quem acredita? Tudo dói. Mas o que mais dói, nesse momento, é não ter ninguém com quem repartir a dor. O monstro sem cabeça o deixa absolutamente só. Cheio de gente ao redor. Mas, sozinho, por dentro.

Lázaro estava só, trancado por dentro, na sua gruta. Gruta, em grego, é “speláion”, que vem de “paláion”, antigo, donde, paleontologia. Lázaro estava só na sua gruta de vidas mortas.

A melancolia havia seqüestrado Lázaro. Jesus devolveu Lázaro a si mesmo. Na verdade, todos aqueles que foram “curados”, foram devolvidos para si mesmos. A nenhum deles, Jesus disse: Agora, vem, comigo! Foi sempre: Vai! Agora, você é livre: vai!

Com a família de Lázaro não poderia ser diferente. Jesus poderia ali mesmo ter começado uma parceria institucional. Lázaro ficaria com a diretoria, Maria, com a propaganda e Marta, claro, com o setor do dízimo. Poderia. Mas não fez.

A religião não existe para retirar as pessoas do mundo e criá-las num viveiro, cuidadas e cativas. A religião existe para inserir as pessoas na realidade do mundo, mas de uma outra forma, uma forma como o mundo não consegue inserir sem ferir. Esse é um paradoxo e uma tensão, eu sei. Mas quem disse que a vida não é feita de paradoxos e tensões?

sábado, 15 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 7

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11



“Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11, 21.32).

Betânia distava apenas 3 km de Jerusalém. Você podia ir a pé de uma cidade a outra. Pertinho! No entanto, escondida nas paredes daquela casa, pulsava uma vida que expulsava Jerusalém, no mínimo, pro outro lado do mundo, um planeta distante, onde nem se ouvisse falar da podridão da capital, com sua rede de intriga, desprezo e ódio. Dentro daquela casa, Jerusalém só existia como uma ameaça distante, que ali, apesar da proximidade, ficava ainda mais distante, na intangível casa de Betânia.

Os grandes personagens desse drama são os três irmãos de Betânia. Os três mais achegados e leais amigos de Jesus. Era para aquela casa que ele se retirava sempre, para repousar e fugir da agitação do mundo. Aquela era a casa para onde ele voltava. Aquela era a sua casa. Ele se refugiava ali para amar e ser amado. E para os três inseparáveis irmãos, estar com ele supria e completava tudo o que se esperava da vida.

Mas, quando João escreveu essa história, ele, na verdade, não queria apenas narrar um drama familiar, com todos os recheios de dor e alegria que fazem parte de qualquer família. O que será que João tinha em mente quando contou a história de Marta, Maria e Lázaro? Seja lá o que for, na época, todos sabiam. Ouviu essa? Vou repetir: seja lá o que for, na época, todos sabiam. Ninguém na época precisou explicar. Seja lá o que for, nós não sabemos. E é por isso que precisamos avaliar um fato, provavelmente, escondido atrás da história.

A primeira pergunta é: houve algum fato real que permaneceu escondido (desde sempre perdido) nos bastidores do drama de Lázaro? Se houve, será possível reconstituir a “cena do crime”, tanto tempo depois? Por outro lado, se houve um fato real, não terá sido dele que o drama extraiu toda a sua força e o seu potencial?

Observe! Nós todos somos habitantes de um planeta louco, no século XXI, sem tempo de cuidar decentemente de nós mesmos e de quem amamos. E assim mesmo estamos debruçados sobre uma história que nem sabemos direito se realmente aconteceu! De onde, então, brota a força que essa história tem? De onde vem o seu irresistível poder de sedução?

Você concorda comigo, meu amigo, agora, constituído detetive da história, que é preciso responder a essa questão? Você concorda comigo que muito dessa resposta abre horizontes no entendimento que podemos alcançar de nós mesmos e de nossa interioridade? A grande Teresa d’Ávila dizia que um minuto de auto-conhecimento vale mais que muitas horas de oração. Você concorda comigo, digo, com ela? É a Teresona!

Então, é bastante provável que um fato real tenha acontecido e que ele, justamente, ele é que esteja por detrás da narrativa do Lázaro. E que esse fato tenha ocorrido por volta do final primeiro século, no momento em que o evangelho de João era escrito. Um fato real. Qual?

Pense nalgum líder de comunidade. Agora, pense nalgum líder de comunidade, daquela época. Aproveite, também, e imagine que esse líder se chamava Lázaro (e por que não?). Imagine que ele houvesse perdido o entusiasmo, o élan, a garra de continuar acreditando e lutando pelos seus ideais. Imagine que era justamente aquilo em que ele acreditava que mantinha seu desejo de viver. Que suas crenças eram a viga que sustentavam a casa. Imagine que ele nem quisesse mais viver! Já imaginou onde vai dar isso? Quem perdeu isso, perdeu tudo. Perdeu a si mesmo. Morreu. Morreu para a vida do espírito. Matou a vida em vida. Bem pior que a morte, né!

Se isso aconteceu, a bem da verdade, não foi nem a primeira nem a última vez. Essas coisas acontecem todos os dias, e sempre desembocam nos mesmos resultados, com uma previsibilidade espantosa. Seja como for, toda vez que alguém abandona, vende ou troca os seus ideais por qualquer moeda corrente, confundindo isso com o nobre mister de cuidar da própria vida, toda vez que isso acontece, esse sujeito morre. Mas não morre sozinho; com ele, um punhado de gente morre junto.

O que eu estou querendo dizer é o seguinte: é bem provável que lá pelos idos do final do primeiro século, algum líder da comunidade (cristã) tenha perdido os ideais em que acreditava. Morreu a morte do espírito.

Alguém viu aquilo, associou com algo que ele conhecia de uma antiga história envolvendo uma família de Betânia, juntou as duas histórias, e encontrou um meio de contar o que estava acontecendo, ali, por perto. Um meio como nenhum outro relato jornalístico seria capaz de descrever de forma tão envolvente. Como uma metáfora. Quem lesse uma, entenderia a outra.

Consegui ser claro?

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 6

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Que ligação é essa entre o amor e a morte? Ainda não tive ocasião de voltar a essa pergunta que ficou dependurada ali atrás. Antes preciso falar de Betânia. Foi lá onde tudo começou. No começo do evangelho, João menciona Betânia.

Compare João 1,28: “Essas coisas se passaram em Betânia, do outro lado do Jordão, onde João estava batizando.”

Com João 10,40: “Novamente, se retirou para além do Jordão, para o lugar onde João batizava no princípio, e ali permaneceu”.

Parece que o autor do evangelho de João moldou esse “lugar onde João batizava no princípio” para estar no começo de tudo: quando tudo começa, no capítulo 1, e quando tudo recomeça, no capítulo 11.

Na verdade, esses lugares não existem. Eles só existem na topografia simbólica do evangelho de João. Esse lugar é um lugar imaginário, o lugar ideal da comunidade dos discípulos, onde eles podiam conviver, ao mesmo tempo dentro e fora da influência das autoridades judaicas e do perigo que os rondava: “Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do mal” (Jo 17,15). Perigos, sempre existiram.

O evangelho de João é datado entre 95 e 100 DC, provavelmente, logo em seguida à morte de Domiciano e o início do governo dos chamados “cinco bons imperadores”, que promoveram a paz no império e, sobretudo, não importunaram os cristãos. Domiciano havia promovido a segunda grande perseguição aos cristãos. Agora, abria-se um tempo de relativa paz.

É nesse contexto que o autor do evangelho de João escreve. Há paz. Mas ainda há medo. Em todas as reuniões, comparecem cristãos mutilados pelas torturas. As famílias choram seus mortos. O perigo ainda ronda e nunca se pode subestimar o inimigo. Na situação dos discípulos de João, os inimigos se escondiam atrás das portas. Eram os judeus da seita dos fariseus, que haviam fugido para a Ásia Menor, na época chamada de Anatolia, hoje, a Turquia. Lá, vivia a comunidade fundada por João. Para lá, fugiram os judeus. Essa mistura não ia dar certo.

Pois bem. É nesse contexto de pororoca que o evangelho de João foi escrito. Forças contraditórias espremiam um pequeno grupo de cristãos, ilustres joão-ninguém dissidentes, que não sabiam direito nem qual era o seu rumo nem qual era a sua identidade. Na carteirinha de afiliação não havia nada escrito.

Betânia, portanto, não é um lugar, é uma situação. Se você conferir, no início do relato do capítulo 11, os discípulos relutam em concordar que Jesus possa passear pela Judéia incólume. “Disse Jesus: Vamos outra vez à Judéia. Os discípulos contestaram: Mestre, agora a pouco os judeus queriam te apedrejar, e vais de novo para lá?” (Jo 11,8).

Betânia, colada em Jerusalém, tinha para aquele pequeno grupo o significado de “perder a noção do perigo”. Nesse sentido, Betânia era justamente uma metáfora daquilo que os cristãos da época de João, ano 100 DC, viviam: o perigo mora ao lado, talvez, dentro. Não tem como, às vezes, rendo-me a Sartre: em não poucos casos, “l’enfer c’est l’autre”.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 5

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11



Lázaro foi um caso de amor. O amor é sempre transferencial. Uai, que novidade é essa: amor transferencial?

Amor transferencial é uma forma de amor, mas é, também, uma ferramenta de trabalho. Trata-se de um fenômeno que surge espontaneamente na clínica, no encontro entre paciente e analista. Freud batizou esse fenômeno de “transferência”. O paciente vive com o analista uma espécie de amor que, em tudo, repete maneiras antigas, moldes anacrônicos de amar. Mas, amar o quê, a quem? Ora, só duas pessoas são os modelos originais da vida: pai e mãe. O resto é cópia. Pela vida afora, o que você fez foi repetir o jeito como amou e se sentiu amado por aqueles modelos originais da vida. São os moldes primeiros do amor. E eles retornam dessa forma, nisso que se chama transferência. Não importa quem ocupe aquele lugar. Pode ser o analista, o médico, o professor, o padre, o tio, ou qualquer outra figura, e tudo isso no feminino também. São os objetos de amor, as maneiras com que cada um construiu a sua marca registrada de amar: uma espécie de impressão digital do amor.

Numa família, pode haver muitos irmãos. Não importa! Cada um vai amar de um jeito, viver de um jeito, existir do seu jeito. Quando chegar a hora, cada um vai morrer do seu jeito. Na vida e na morte, cada um é absolutamente ele mesmo. No entanto, a existência vai recortando moldes e imprimindo em cada um a sua tipografia gráfica. Nesse sentido, cada sujeito humano nasce original e morre cópia. Estamos sempre repetindo, cada um a seu modo e na sua originalidade, porém, repetindo. Pode conferir por aí: só existem duas ou três histórias humanas diferentes, que se repetem furiosamente, como se nunca tivessem existido antes.

Esse é o amor transferencial. Mas se for assim, afinal, que amor não é transferencial?

Foram esses amores, os mesmos, que tornaram plena a vida daquela insólita família de Betânia e daquele hóspede singular. O capítulo 11 de João nos mostra, a quente, a intensidade de uma relação de amor transferencial, transbordando em Marta, Lázaro e Maria.

Agora, se essa história de “amor transferencial” parecer complicada demais para você, então, mude os termos. Jogue fora o adjetivo “transferencial”. E fale apenas de amor. Afinal, era isso que eles sentiam por Jesus e Jesus por eles. Era uma relação de amor. Com todas as letras, escritas, sublinhadas e piscando em néon colorido.

Os três amavam Jesus. Como amavam! Amavam demais. E ele tinha tudo pra ser amado, demais. Né! Se você estivesse lá, se vivesse em Betânia, acho que amaria, demais, também.

E Jesus correspondia àquele amor. Demais? Não acho difícil responder que demais, sim. Até porque é muito provável que ele não soubesse amar... de menos. Não tem a cara dele fazer coisa que seja de menos.

ROLDANAS DA VIDA

Na minha terra viviam dois médicos. Certa vez, estando eu por lá, faltou-me um determinado medicamento. Telefonei para uma das duas opções da cidade para pedir a receita.
- Vem cá!
Fui. Ele simplesmente abriu-me a porta e me esticou a receita, conforme eu a havia pedido.
- Quanto, doutor?
- Ara!

Passou o tempo.

Volto à cidade (ia lá muito naqueles tempos), e, de novo, sem o tal medicamento. Ligo para o mesmo médico. Sem tempo de dizer o que pretendia, ouvi o mesmo “Vem cá!”
Fui, certo de levar uma bronca. Bati à porta e uma mão esticou-me a receita, com as mesmas especificações de anos antes, sem que eu precisasse abrir a boca. Simples assim! Lá, era assim.

Na minha terra vivia um padre, não um padre qualquer, mas um daqueles de antes, que eram padre e só padre, e para quem estava muito bom que fosse assim. Quem pedisse missa, ele celebrava, no dia. Quem pedisse confissão, ele atendia, na hora. E, de bônus, carregava nada mais nada menos que a hóstia consagrada no bolso (é!) para dar a comunhão a quem pedisse. Confessou? Comungasse! Onde? Ali mesmo. Simples assim! Lá, era assim.

Na minha terra havia um prefeito. Até aí... Mas era um prefeito sem gabinete. Atendia na rua, em qualquer uma, a qualquer um. Resolvia na hora.
- Ô Zé, manda um trator pra estrada de Luminosa!
- Ô “Das Dor”, vê se a cobrança foi feita correta!
- Ô fulano, manda um carro buscar a fulana que ela tá na hora! (“Tá na hora”, queria dizer que a criança estava nascendo.) Era assim, lá.

Na minha terra, havia um diretor de colégio que vivia todas as horas do dia ao inteiro dispor dos alunos, e carregava aluno para o hospital no próprio carro, e visitava as Repúblicas barulhentas calmando os ânimos, e até tirava os rapazes da cadeia quando a bebedeira os havia convidado ao pernoite na delegacia. Ah! Ia esquecendo. E providenciava almoço e jantar dentro da escola, para que os alunos, sobretudo, os de fora da cidade, se alimentassem devidamente. E atendia a cada um, um a um. Simples!

O médico, o padre, o prefeito, o diretor, eram acessíveis. Assim!

Ah! E havia também um juiz que despachava na casa dele, um farmacêutico que abria a farmácia à noite para vender um (1) Dorflex, um dono de posto de gasolina que vendia o produto para o cliente ir em casa buscar o dinheiro, um dono de banca de revista que trocava a revistinha que a gente já havia lido, um porteiro de cinema que permitia novamente a entrada gratuita de quem já houvesse visto o mesmo filme. (Pra ver de novo não precisava pagar, né!) Simples de tudo.

Dizer que eles não tinham o quê fazer, não era verdade. Só não tem nada pra fazer quem não quer fazer nada. Eles tinham, sim. Mas tinham disposição e disponibilidade. E havia a simplicidade de disporem de si mesmos, do tempo, da vida.

Quando foi, por que foi, e em troca de quê perdemos essa simplicidade?

Hoje, pra marcar médico, a gente corre o risco de morrer antes. Pra falar com o padre, a gente corre o risco de ir pro inferno antes. Pra falar com o prefeito... nunca falei, não, senhor! Juiz? Isso é coisa de um outro mundo. As roldanas da vida, que existiam para fazer da vida um período de leveza, acabaram tornando-se ainda mais pesadas do que a própria vida. É como dizia papai: O molho saiu mais caro do que o peixe.

E se as coisas fossem mais simples? Ganharíamos todos, não?

Para içar o peso da engrenagem social foram montadas roldanas. Acho que é assim que se chama aquele trem que gira uma cordinha e levanta o peso. A roldana não pode fazer o peso ficar mais pesado nem pode ser mais pesada que o peso. Acho que não! Se ficar... Uai?

Quero aproveitar para agradecer àquele médico, que me arrumou gentilmente as receitas de que precisei. (E ao Gustavo e à Neuza que me atendem prontamente, também). Quero aproveitar para agradecer àquele padre, por ter me ouvido quando precisei, da forma mais gratuita que pude esperar um dia ser ouvido. Quero aproveitar para agradecer aos prefeitos e juízes e delegados e sei-lá-mais-quanta-gente, por viabilizarem tantas soluções encrencadas de tantas vidas encrencadas. E a todos os diretores e diretoras do que quer que seja, de onde quer que seja, e seja lá quem forem, que tenham sob si o cuidado de outrem. E que transformem esse poder em agradável serviço. Não basta só ser serviço. Tem de ser agradável também. Ah, tem!

Aproveito para agradecer a quem tenha o dom de transformar a vida simples numa coisa ainda mais simples. Seja como for, ela vai passar. Pensando bem, já está passando. Quando menos se vir, passou. Não vale a pena que não seja simples. Não vale a pena se ficar pesada. Não vale a pena se as roldanas emperrarem de vez.

Só será bom se for leve, assim. Se em qualquer “lá”, a vida for assim: simples, assim.

domingo, 9 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 4

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Começo lembrando algo que copiei da minha guru-master: que não é possível que um texto em cartaz há 4.000 anos não tenha nada a dizer. Se o texto bíblico caiu no vão da defasagem da vida foi muito mais pelo anacronismo dos seus “defensores”, que propriamente pela sua força interna.

Vamos ao texto.


“Um tal Lázaro de Betânia, aldeia de Maria de sua irmã Marta estava enfermo” (Jo 11,1).


Não podia haver jeito mais impreciso de começar um texto: “Um tal Lázaro...” Pois é assim que o texto começa. E essa forma de começar esse texto denuncia que algo estranho pode estar acontecendo. Não são os três, amigos de Jesus? Lázaro, em especial, não é “aquele que amas”, como disse o mensageiro? Então, como assim, “um tal Lázaro...”? Ou esse Lázaro é muito importante para ser simplesmente “um tal” ou esse “um tal” quer apontar, justamente, para que tio de importância se trata nesse texto, de que amor esse texto se impregna e de que, afinal, estamos tratando aqui.
Sendo assim, a primeira pergunta é: O que estamos tratando aqui? O que temos neste texto?

Temos um trio de pessoas, bastante diferentes das outras pessoas. Na verdade, bem esquisitas. Lázaro, Marta e Maria são três solteirões, sem pai nem mãe nem filhos nem sobrinhos, vivendo apenas um para o outro. No Oriente Médio, na época de Jesus, seria uma família fora do prumo.
Observe que esse trio de irmãos não parece em lugar nenhum dos outros evangelhos, só aqui. Lucas fala de duas irmãs chamadas Marta e Maria que recepcionaram Jesus (Lc 10,38) e em outro lugar conta a parábola de Lázaro, um mendigo (Lc 16,20). Mas em lugar nenhum eles estão juntos e muito menos são irmãos.

Então, a montagem dessa família por João segue critérios que não são exatamente histórico-biográficos.

E temos Jesus, o hóspede. Mas não um hóspede qualquer. Jesus foi chamado, angustiosamente, esperado. As irmãs mandaram chamá-lo quando o irmão caiu enfermo. E ele chegou. E ao ouvirem que ele havia chegado, as duas saíram correndo ao seu encontro, e disseram a mesma coisa: “Senhor, se você estivesse aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11,21.32). As duas apostaram todas as cartas nele. Concorde: ele não era um hóspede qualquer. Era especial. Mas também concorde: aquela família era, no mínimo, esquisita. Vá lá: especial!

A segunda pergunta é: O que amarra e o que prende quem a quem, no texto? Não seria a intensidade dos amores que ligavam aquele trio a Jesus e Jesus a eles? Observem: eles amavam Jesus, mas, também, Jesus os amava. Todos estão ligados a todos por vínculos poderosos que podem conduzir à vida e à morte. Vínculos de vida também podem conduzir à morte. Tudo depende da intensidade com que as cordas sejam amarradas.

Eles abriram a porta de sua casa e Jesus entrou. Jesus abriu a porta de sua intimidade e eles entraram. É bom não esquecer que a porta que o outro escolheu para entrar na sua vida foi justamente aquela que você escolheu para abrir.

Outra coisa que não se deve também esquecer é que a vida não é feita de altruísmos. A vida é feita de trocas. Só é bom se for bom para ambas as partes. Só é bom quando existe troca.

Para poderem viver a própria vida com liberdade, aqueles três irmãos – Marta, Maria e Lázaro – precisam perceber que o amor entre eles não pode ser exclusivo nem paralisante. Por outro lado, para poder morrer a própria morte com liberdade, Jesus terá de realizar mudanças nítidas e radicais em relação a eles. Jesus terá de soltá-los e soltar-se deles. “Desamarrem e deixem que ele ande” (Jo 11,44). Soltem Lázaro, para que Lázaro consiga ser Lázaro. Se Lázaro não for solto, se não for livre, ele adoece e morre. Gente presa, dentro de qualquer situação, acaba doente e meio morta. Terrível, isso!

Você pode entender, então, a localização desse texto da morte e ressuscitação de Lázaro – inexistente nos outros evangelhos – imediatamente antes do relato da morte e ressurreição do próprio Jesus. O capítulo 11 de João é o momento de mutação urgente e necessário de pessoas que não podem mais continuar sendo exclusivistas e fechadas, em nenhuma de suas relações. É o ponto de mutação, a hora da muda, nos personagens da trama e na trama dos personagens. São mudanças necessárias. Mudanças que não precisam ser trágicas, mas são quase sempre radicais.

O amor dos três para Jesus era pleno, conturbado, perigoso. Era um amor carregado de uma voltagem que, naturalmente, não pertencia nem cabia ao amor. Um amor capaz de tudo transformar. De dar a vida. De conduzir à morte. Aliás, no caminho para Betânia, quando Jesus determina que vai entrar na zona de perigo dos judeus, Tomé anuncia justamente isso: “Vamos lá para morrer com ele” (Jo 11,16). Ô Tomé, por que não, viver com ele? Por que, justamente, morrer com ele? Por que, afinal, morrer? Que ligação é essa entre o amor e a morte?

Como sempre digo, temos conversa!

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! - 3

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)


Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Como já disse, João escreve sete sinais. O “sinal” de Lázaro é o sétimo e o que mais chama a atenção.

1. Pela extensão do relato;
2. Pela quantidade de detalhes;
3. Pela maneira como os sentimentos são expostos à flor-da-pele;
4. Por anteceder imediatamente o relato da Paixão;
5. E, principalmente, porque, neste sinal, ao contrário dos outros seis anteriores, Jesus se envolve emocionalmente na trama.

Aliás, é isso mesmo. Esse é o único “sinal” em que Jesus se envolve, até o choro. Nos outros “sinais”, ele participa, intervém, faz acontecer, mas não se envolve nem com a problemática nem com a solucionática.

Aqui, existe envolvimento: Jesus chora. E os judeus observam: “Veja como ele o amava!” (Jo 11,36). E tendo comprovado esse amor explícito, claro, não deixaram passar batido: “Ele que abriu os olhos ao cego, não poderia também ter evitado que também esse morresse?” (Jo 11,37).

No “sinal” de Lázaro, Jesus se abre, revela-se, não se esconde nem esconde o jogo. Visivelmente fragilizado pela proximidade da “sua morte”, é aqui, neste ponto, que Jesus é mais Jesus. Todas as demãos futuras de tinta que foram passadas por cima do texto, não conseguiram apagar sua força primitiva. Neste “sinal”, Jesus tem... hesitações.

Enquanto, nos outros sinais, ele age e se move com leveza e liberdade, neste, Jesus se encontra “atado” por sentimentos e apelos que não consegue nem definir nem se desembaraçar. Quando, no final, ele ordena que desatem Lázaro, para que ele se vá, quem, na verdade, estava sendo desatado era Lázaro ou Jesus? Desde o início do texto, quando Jesus ainda se demora dois dias, para só depois avançar o passo e sair do lugar, o relato segue hesitante o tempo todo. É um texto “amarrado”. E termina, como disse, com Lázaro, saindo do túmulo amarrado. “Desatem e deixem-no ir” (Jo 11,44). Mas quem? Do quê? E pra onde?

Durante o texto, todos os personagens estão amarrados: Marta, Maria, Lázaro (esse, literalmente) e Jesus. Como já disse, nos outros sinais, ele sabe o que fazer, vai lá, e faz. Neste, a impressão que se tem é a de que ele não sabe direito o que fazer, demora a sair do lugar, demora em ir, e quando chega, não faz. “Ele que abriu os olhos ao cego, não poderia também ter evitado que esse morresse?” (Jo 11,37). Repito: neste sinal, não há nem leveza nem liberdade. Todos estão amarrados. E aquele era o momento de romper laços. Também Jesus, às vésperas da morte, tem de romper laços. Você nunca pensou nisso, né?

O capítulo 11 de João é reticente do começo ao fim.

Nesse sentido, os evangelhos se encontram entre os grandes exemplos de honestidade intelectual. Nenhum deles, nem o gnóstico João, manteve pruridos moralizantes de estampar um Jesus humano demais: um Filho de Homem. Na ética do Evangelho, a dúvida também tem lugar.

Mas, vou logo explicando que estou lidando com um texto e é só o texto que interessa.

Você pode analisar a Bíblia, como qualquer outro texto, olhando apenas para o texto. Da mesma forma como pode analisar qualquer outro texto. O que existe é o que está escrito. No caso da Bíblia, a análise do texto bíblico obedece às normas de uma ciência que se chama Exegese Bíblica. Para ela, interessa tanto o que é dito como o que é omitido. Como em todo relato, em tudo aquilo que a fala humana deixa vazar, “buracos” ficam abertos, “lugares vazios” são tão eloquentes como aqueles em que a palavra toma a palavra. Quando é o silêncio que toma a palavra, um faro de detetive há de ser chamado para ler o que não foi escrito. Aliás, principalmente, o que não foi escrito.

Os Concílios de Nicéia, Éfeso e Calcedônia afirmaram a divindade de Cristo e suas teses continuam inteiramente válidas e respeitadas. Hulalá! Mas, aqui, não estamos falando do Cristo Filho de Deus, mas de Jesus de Nazaré, o homem histórico, com suas pulsões e suas vicissitudes, com seu psiquismo humano, carregado de alegrias, angústias e medos. E, sobretudo, de sua incrível humana capacidade de amar. Marcos observa no relato do episódio do jovem rico, que Jesus olhou para ele e o amou. É esse sujeito que ama que me emociona. Se dobro joelhos a todo amor, que dirá, a esse!

O que me interessa, neste texto, não é nenhum maior esclarecimento sobre a divindade do Salvador, mas o conhecimento da complexidade da alma humana. O que me interessa no capítulo 11 de João não é o quê é dito, mas o como é dito. E, sobretudo, como se movimentam os personagens da trama. Só isso. Mas tudo isso.

O caminho é longo, garanto, e cheio de surpresas. Coragem. Vamos lá!

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! - 2

“Senhor, aquele que amas está astenon” (João 11,3).

“Aquele que amas”, naturalmente, não é uma expressão qualquer. Amor é uma palavra para ser pronunciada pausadamente. “Aquele que amas” deveria ser provavelmente o sujeito com quem Jesus continuasse a conversa de mil anos atrás como se tivesse interrompido ontem. É que o amor faz parte da eternidade. Lázaro, Marta e Maria eram amados por Jesus. Eram “filei”, amigos íntimos, não qualquer um, nem qualquer pessoa, mas apenas aquelas que cabem nos dedos de uma mão.

Lázaro, Marta e Maria: amigos íntimos de Jesus.

Mas será que existiram, realmente? Sim e não, não e sim. Depende do ângulo em que você olhar. É sobre esse ângulo que pretendo conversar com você.

Essa história encontra-se no capítulo 11 do Evangelho de João: o texto da ressurreição de Lázaro. Seria bom ler o texto, para conhecer o enredo de antemão. E a primeira coisa, a saber, a respeito do capítulo 11 é que ele não foi escrito nem agora nem para você. Ele só fará sentido em vista de um outro texto, escrito no tempo quando os campos do Senhor ainda eram verdes.

"Jesus fez muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes sinais foram escritos para que vocês creiam...” (João 20,30-31)


É assim que termina o capítulo 20 do evangelho de João. O evangelho de João tem 21 capítulos, mas o capítulo 21 foi anexado 200 anos depois. Na verdade, o texto original, escrito no final do primeiro século, termina no capítulo 20, com essas palavras que copiei acima. O que significa que...?

Voilá! Temos uma pista. Quem quer que tenha escrito o Evangelho de João deixou pistas, “sinais” pelo caminho, placas sinalizadoras para orientarem o caminho. Então, a primeira coisa a fazer é perguntar: onde estão essas placas? Que sinais são esses?

O evangelho de João não tem parábolas, como Marcos, Mateus e Lucas. Mesmo assim, João conta casos. Só que ele não chama os casos nem de parábolas nem de milagres (muito menos, de milagres!), mas de “sinais”, sêmeia, em grego, donde vem a palavra “semântica”. E João enumera sete sinais. Veja bem: sete! O “sinal” de Lázaro é o sétimo sinal.

Então a primeira coisa a deixar claro é essa: Lázaro é um “sinal”. É essa a primeira e mais importante observação a ser feita. Não é um milagre, como algumas traduções capengas continuam escrevendo. É um sinal. E o que faz um sinal? Um sinal sinaliza. Apenas isso. A placa da estrada que informa “BRAZÓPOLIS 5 KM” não é Brazópolis. É só a placa de estrada. Toda a estonteante beleza arquitetônica e urbanística de Brazópolis, oitava maravilha do mundo moderno, não caberia dentro de uma placa. Placa não é a realidade da coisa. É só um sinal.
Monet pintou um quadro de uma mulher verde. Disseram para ele: Não existe mulher verde. Ele respondeu: Isso não é uma mulher, é um quadro. Sinal não é a coisa. Sinal é sinal de alguma outra coisa. Do quê? Sei lá! O que eu sei é que, aqui, o que eu tenho é só um sinal. Lázaro é (só) um sinal.

Outro dia, um sujeito me disse que havia visitado a casa de Lázaro em Betânia. Eu quase respondi: Perdoe-me desmanchar as fantasias da sua inocência batismal, mas Lázaro não existiu. O que existe de Lázaro é o que está escrito dele. Lázaro é (só) um sinal. Mas é um sinal eloquente de uma realidade muito maior. Se essa realidade não cabe nem nas palavras, que dirá numa casa!

Por que a gente precisa tanto do concreto, se é o simbólico que nos fez humanos?

domingo, 2 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! - 1

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)



Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11



Morte, vela, sentinela sou
Do corpo desse meu irmão que já se vai.
Revejo nessa hora tudo o que ocorreu,
Memória não morrerá.
Longe, longe, ouço essa voz,
Que o tempo não vai levar.
Precisa gritar sua força, é irmão,
Sobreviver!
A morte ainda não vai chegar,
Se a gente na hora de unir,
Os caminhos num só,
Não fugir nem se desviar!


(Milton Nascimento – Sentinela)


“Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”. (João 11,21)



Eu comecei a pensar no Lázaro do Evangelho de João num momento de muita fragilidade em minha vida. Havia escolhas. Escolhas nos deixam frágeis. Fragilidades fazem com que a gente regrida e se infantilize. Fui ler Lázaro e descobri que todos os meus sentimentos estavam lá. Verifiquei que havia, lá e cá, uma extremamente frágil humanidade tentando alinhavar, lá, o relato, cá, a vida. Há momentos, não tem jeito, em que a gente se sente desidratado na alma, esvaziado por dentro, despossuído de si mesmo e, se não bastasse, com mãos gigantes apertando o pescoço.

É Lázaro. Era eu.

Existe em grego uma palavra para esse sentimento: é a palavra “astenon”, que significa debilitado, frágil, enfermo. “Astenon” e seu plural “astenói” são muitas vezes repetidas no texto e ao longo do Evangelho de João. Talvez, a melhor tradução para astenon fosse mesmo “desidratado na alma”. Os místicos de todos os tempos conheceram esse sentimento e o chamaram de aridez, acedia, noite escura da alma. Eles não tinham conhecimento daquilo que hoje se popularizou com o nome depressão. Mas que na verdade, vai além da depressão, pelo menos, além daquilo que pode ser numerado num catálogo de doenças, conforme os americanos gostam de interpretar as oscilações humanas.

Esse era Lázaro. E por que não eu?

Passou o tempo. Guardo lembranças daqueles dias como um momento axial na minha vida. Momento axial é quando a gente desce tudo da prateleira, desenrola os tecidos no balcão e depois recoloca tudo no lugar outra vez. Mas recoloca diferente. Depois de um momento axial, você nunca mais é o mesmo. Tenho a vaga impressão de que foi isso o que aconteceu a Lázaro, ou sei lá quem tenha vivido aquela experiência de ida-e-volta que João nos conta de forma brilhante no capítulo 11 do seu Evangelho.

A partir de hoje, quero conversar um pouco com você sobre Lázaro, aquele que era íntimo de Jesus, amado por ele, e que estava fragilizado, astenon, desidratado na alma, melancólico.

Se puder, leia o capítulo 11 do Evangelho de João. O que precisa ser dito está lá. O que eu vou dizer é só rodapé.