sábado, 22 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 8

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Se você leu o capítulo anterior, poderá perceber o alcance das palavras de Marta e Maria: “Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11,21-32). As duas repetem a mesma frase: Se o Senhor estivesse aqui, não apenas num momento, mas o tempo todo, Lázaro não se teria perdido, não teria abandonado aquilo pelo qual tanto lutou, sofreu, se entregou e viveu. Lázaro tinha um sonho. Pois, então, ele estava morrendo, justamente, por ter abandonado o sonho. Morto o sonho, morre o desejo.

Melhor dizer que Lázaro não morreu. Ele foi se deixando morrer. Sem ver. Como um homem que salta do 30o andar e ao passar pelo 20o afirma “Até aqui, tudo bem!”, Lázaro deixou de enxergar a própria vida. Não seria de estranhar que deixasse de enxergar a própria morte.

Mas há algo ainda pior que a morte?

O universo, a história humana e a biografia de cada um são marcados profundamente por dois princípios: eros e thânatos – o amor e a morte. Neles, o simbólico e o diabólico convivem juntos. O diabólico dilacera. O simbólico sutura e cura a ferida.

Essas duas forças antagônicas caminham juntas, dividem espaço, alternam-se e, por incrível que pareça, produzem a vida que, às vezes, conduz à morte, e a morte, que, às vezes, antecede a vida. E, por incrível que pareça, uma não existe sem a outra. Quando elas se desagregam, quando resolvem seguir separadas por rumos próprios, abre-se um vão perigoso, como um rio que abandonou o curso e deixou atrás de si apenas o leito vazio de areia seca: um vão, um vau.

Uma depressão.

Que chega devagarzinho. E você nem percebe. E só sabe que os dias não são mais como antes. Ficaram todos da mesma cor e com a mesma cara: manhã de segunda-feira chuvosa. De repente, eles começam sem vontade e continuam sem vontade, mas só um pouquinho, só um pouquinho mais. E de pouquinho em pouquinho, você vai ficando cada dia mais sem vontade. E tudo o que você fazia – antes tão cheio de alegria – torna-se um peso. Esse peso arca as costas e faz você caminhar olhando mais para o chão do que para o céu.

No começo, a gente ainda discutia com todo mundo: mulher, filhos, chefe, colegas... Todo mundo! Ou, então, exigia de todos que tudo estivesse no lugar exato onde deveria estar. Olhava as coisas ao redor e, onde estivessem, você sabia que não deveriam estar ali. Você começava a não gostar mais daquilo que via. Tudo, de repente, havia ficado feio, desarrumado, sem graça.

No começo, é possível que a gente se transformasse naquilo que as pessoas chamam de “grosso” ou ”sistemático”. Mas, com o tempo, a atitude mudou. É quando passamos da agitação à apatia. Fomos ficando distantes, de olhar perdido, buscando lá longe aquilo que já não se encontrava mais nem onde estava antes nem em lugar algum. Esse é o momento em que o sujeito se acostuma a se debruçar à janela para olhar o nada passando lá fora. E se alguém lhe pergunta: O que é que você tem? A única resposta que ele consegue arrancar desse nada é... “Nada!”.

Pois é, a depressão se instalou, tão de mansinho, que ninguém viu. Agora, ela estava aí. E era difícil lidar com esse monstro sem cabeça. Quem já lidou, sabe que afundou tanto no buraco da solidão, que já não conseguia mais erguer a própria cabeça, nem mesmo, pra dizer o que se passava dentro dele.

Se contar, quem entende? Quem acredita? Tudo dói. Mas o que mais dói, nesse momento, é não ter ninguém com quem repartir a dor. O monstro sem cabeça o deixa absolutamente só. Cheio de gente ao redor. Mas, sozinho, por dentro.

Lázaro estava só, trancado por dentro, na sua gruta. Gruta, em grego, é “speláion”, que vem de “paláion”, antigo, donde, paleontologia. Lázaro estava só na sua gruta de vidas mortas.

A melancolia havia seqüestrado Lázaro. Jesus devolveu Lázaro a si mesmo. Na verdade, todos aqueles que foram “curados”, foram devolvidos para si mesmos. A nenhum deles, Jesus disse: Agora, vem, comigo! Foi sempre: Vai! Agora, você é livre: vai!

Com a família de Lázaro não poderia ser diferente. Jesus poderia ali mesmo ter começado uma parceria institucional. Lázaro ficaria com a diretoria, Maria, com a propaganda e Marta, claro, com o setor do dízimo. Poderia. Mas não fez.

A religião não existe para retirar as pessoas do mundo e criá-las num viveiro, cuidadas e cativas. A religião existe para inserir as pessoas na realidade do mundo, mas de uma outra forma, uma forma como o mundo não consegue inserir sem ferir. Esse é um paradoxo e uma tensão, eu sei. Mas quem disse que a vida não é feita de paradoxos e tensões?

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