sábado, 31 de março de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 24

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

No fim das contas, onde ficou Marta? Marta não ficou, saiu. Não aparece mais em lugar algum. Não é estranho que, entre as mulheres, ao pé da cruz, não se encontrassem as duas irmãs de Betânia? Até a geografia contribuía. Mas não estão lá. Marta some do mapa, torna-se invisível. Como uma figura emblemática, ela condensa o feminino de todos os tempos, e o horror à mulher compartilhado pelos homens, desde a noite dos tempos. Tirada da costela de Adão, coparticipante do mesmo projeto divino, igual em dignidade e valor, nada disso foi ou continua suficiente para fazer da mulher uma... igual.

Ao perfume de Maria “que encheu a casa toda” corresponde o mau cheiro anunciado por Marta. Perfume e mau cheiro falam de uma mesma percepção, avaliada diferentemente conforme a situação que em cada um se encontra. O perfume evoca sublimação, um conceito difícil de entender.

Sublimar é morrer um pouco.

há diferentes perfumes. Os perfumes, de Maria e de Nicodemos, aparecem na proximidade, ainda que contingente, da morte. Mas observem que algo muda: muda o modo e a quantidade como aparecem no texto. Maria leva 1 libra. Nicodemos, 100 libras. São intensidades diferentes numa mesma relação. Para Maria, existe uma relação onde investir. Se o que ela leva é uma libra de perfume, nem precisa mais: é nardo puro, raro e de valor excepcional. A casa toda se enche com o perfume de Maria (Jo 12,3). Tal como a sua relação com o Rabi. É o perfume da vida.

Para Nicodemos, ao contrário, a relação não existe mais, porque nunca existiu. Nicodemos foi aquele que se encontrou com Jesus, à noite, por medo. Que relação consegue se constituir em meio ao medo? Que eu saiba, nenhuma, sadia. O perfume de Nicodemos é o perfume do medo no umbral da morte. Tal como a sua relação.

Sublimar é morrer um pouco.

Mas é a morte da semente, e só. Morre-se semente, para voltar árvore. É impressionante a contemporaneidade do evangelho! O que mal sabemos, hoje, eles, bem lá atrás, já conheciam.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 23

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Ainda que Marta tente interceptá-lo, nada consegue abalar a sua disposição em resgatar da morte alguém que ainda vive. Ainda que ela insista que “já cheira mal”, que decida que não há mais lugar para a esperança, que opte por uma eutanásia simbólica, ele segue seguro. Quem já mostrou a direção da vida a tantos, não vai se intimidar com inibições neuróticas, seja lá de quem for, e que prefira pulsar a favor da morte.

Marta é presença constante no vai-e-vem da vida.

Penso nela, toda vez que me deparo com uma família cujo filho enveredou pelas adições ou qualquer outro caminho que desemboque no corredor da morte. “Ele já cheira mal.” Não há mais o que fazer! Ou à beira do precipício de um paciente terminal, onde já foi decidido não haver mais espaço para a esperança, e que resta cuidar de quem resta inconsolável. “Ele já cheira mal.” Não há mais o que fazer! É difícil o momento de conceder-se a prerrogativa de decidir pelo outro, quando é que ele não pode mais acalentar nenhuma esperança. O filho drogado que já quebrou ou vendeu tudo é o mesmo que também já voltou, muitas vezes, pedindo ajuda e prometendo não recair mais. É o mesmo que, desta vez, garante que “é pra valer”! Quando ninguém acredita mais, quando lhe viram as costas, e ele abandona até os cuidados básicos da alimentação e do banho, literalmente, “ele já cheira mal.” Como continuar apostando nele, quando nenhuma ficha sobrou?

Olhando de perto a situação, não é que Marta tem razão?

Mas é uma razão que não opera nada, que não transforma realidade alguma. O filho drogado não brotou drogado da barriga da mãe, como um cogumelo venenoso. Querendo ou não, desta ou daquela forma, ele é fruto da neurose familiar. Pode ser que tenha experimentado a droga apenas por curiosidade. Muita gente já foi nessa e, nem por isso, acabou dependente. A situação não faz o ladrão – ela revela o ladrão. Para quem não é ladrão, situação alguma o torna. Não é a curiosidade que gera a dependência. A dependência é anterior à curiosidade. Existem dependências que são alimentadas, anos a fio, no cotidiano das neuroses familiares.

E mais. Uma família não é um sodalício. Numa família, todos estão envolvidos com todos, simultaneamente. Quando brota um cogumelo num lugar assim, ou a responsabilidade é de todos ou não pertence a ninguém.

Difícil é convencer as famílias de que elas é que estão doentes – por inteiro – e que o filho doente é apenas um tumor que vazou. Os grupos familiares são regidos por contratos tácitos, acordos silenciosos: todos sabem e ninguém sabe, ao mesmo tempo. Todos falam, mas ninguém disse nada. Em certas famílias, determinadas palavras não podem ser ditas. Passam-se anos sem que se discuta o porquê dessas palavras não poderem ser faladas. O silêncio, contudo, continua e é “ouvido” por todos, a todo instante. A família não é o lugar mais conveniente de se dizer a verdade. No entanto, onde mais?

Difícil será convencer Marta de que é dela mesma que ela fala, quando determina que não há mais nada o que fazer, que a pedra já fora afastada outras vezes, e que retirá-la, outra vez, só irá revelar o que ninguém mais suporta ver. O que a pedra esconde, Marta? Você sabe? Retira-la, denuncia o quê?

No fim, a pedra foi retirada e Lázaro saiu do túmulo e foi Maria quem entendeu. A cena do perfume, no capítulo seguinte, vai expressar seu entendimento. Quanto à Marta, o texto, solenemente, silencia.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 22

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Jesus de Nazaré era homem por inteiro. Alguma dúvida?

Com isso, pretendo dizer – ou lembrar – que nele também residia o mesmo narcisismo que habita todos nós, um narcisismo que, na dose certa, constrói um eu forte, capaz, sadio, bom. Sua presença física havia se tornado fundamental na vida de Lázaro e de suas irmãs. Isso, na certa, era confortável para Jesus de Nazaré. Mas o que ele não podia nem devia era continuar fixado nessa complacência, nesse engodo narcisista, necessário e perigosamente presente em cada sujeito que comande o mundo à sua volta.

Quando Jesus conheceu aqueles três e se tornou amigo deles, Lázaro ainda estava ligado às duas irmãs. Era homem adulto, porém solteiro. Isso não cabia na mentalidade da época: pessoas solteiras não eram bem vistas no mundo judaico. Por outro lado, Lázaro estava ligado a duas mulheres, solteiras, também. Mulheres solteiras eram menos bem vistas em Israel, do que homens solteiros. E os três ainda permaneciam na casa dos pais. Como crianças! Parece que o desmame não fora realizado. Parecem trigêmeos que ainda não nasceram para a vida social. Nenhum deles se assume como ser independente do outro e dos outros. Nenhum deles é capaz de seguir o curso das próprias águas.

Das duas moças, sabemos que uma, Marta, trabalhava para Jesus; a outra, Maria, o bebia com os olhos. Agora, ao que tudo indica, também o rapaz seria capaz de morrer se Jesus não estivesse por perto. O mínimo que se possa dizer daquela constituição é a de que aquele era um trio neurótico. Ou, numa palavra mais amena, infantil.

Jesus sabia disso. Na certa, nunca leu Freud. Mas sabia disso. Por isso, declarou a respeito de Lázaro, que “aquela morte era necessária”. “Aquela”. Aquele rompimento era necessário. Para que ele crescesse. Daí, a demora em partir, a demora em chegar e o choro da constatação de como o amor humano é perigoso e do quanto pode ser (auto) destrutivo.

Depois do choro, a pergunta: “Onde vocês o colocaram?”

Agora, observem o seguinte. O evangelho foi escrito num dialeto grego chamado Koiné. Esse dialeto deixava a pontuação em suspenso. Tanto podia ser um ponto de interrogação, ao final da frase, como qualquer outra pontuação. Se, ao invés de um ponto de interrogação, colocarmos um ponto de exclamação, muda tudo. A frase “Onde vocês o colocaram?”, fica: “Onde vocês o colocaram!” Vê? Mudou tudo.

Perceberam o novo significado? É como se Jesus dissesse: “Vejam o estado dele!” Não existe, ali, nada mais que lembre o que houvera antes, nada mais do ser de antes, nada mais do adulto de antes. Apenas um sujeito infantilizado, regredido, ensimesmado, enrolado ao redor do próprio umbigo. Uma criança assustada! E, justo Lázaro, o amigo que tanto compreendia Jesus, que era “o outro” de Jesus! Cadê Lázaro? Onde foi parar Lázaro? Onde ficaram os ideais? Nada daquilo sobrou? Apenas um sujeito que já nem mais é sujeito da própria vida. Não foi pra isso que Lázaro foi amado. Perceberam o alcance do choro de Jesus? É muito mais doído do que um choro de morte. É um choro de frustração. “Onde vocês o colocaram?” Os judeus respondem, prontamente: “Vem e vê”. Venha ver o que sobrou.

No começo do evangelho de João, dois primeiros pretendentes a discípulos lhe perguntaram: “Onde moras?” Ele respondeu, também, prontamente: “Venham e vejam” (1,35). E eles foram e viram e ficaram com ele.

Nesta cena, no caso de Lázaro, o contexto é o mesmo. O que se inverteu foi a situação. Lá, no começo ele lhes havia mostrado o lugar da vida. Agora, eles lhe indicam o lugar da morte.

“Tirem a pedra”.

Marta intervém. Pra quê? Faz quatro dias. Já cheira mal. Não será difícil imaginar que, no inconsciente de Marta, vigora a tentativa neurotizante de inocular culpa e ressentimento no outro. Culpa dela mesma não ter dado conta do irmão que morria. Ressentimento por Jesus não ter acudido no tempo em que ela havia determinado. Até no último momento, Marta ainda pensa com os conceitos do seu pequeno mundo neurótico, onde os horizontes terminam do outro lado da rua. Marta tenta interceptá-lo. Se ela não fora capaz de cuidar do irmão, quando era tempo, e se ele não fora capaz de mudar sua agenda, enquanto era tempo, agora, pra quê? É tarde! A esperança não é um fio de cabelo louro ao sol? Marta não vê, não quer ver, não deixa ver. Daquela morte, Marta foi a que mais morreu.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 21

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Para entender, realmente, o que estava acontecendo ali, precisamos voltar atrás e ver que tudo começa na demora de Jesus em atender ao pedido das irmãs. Não há como explicar o porquê de, mesmo sabendo da situação do amigo, ele não arredar pé e ainda permanecer dois dias no lugar.

Ao adoecer, Lázaro havia regredido a um estado vegetativo, como uma árvore cortada de suas raízes, um feto não mais alimentado pelo cordão umbilical. Lázaro se tornou um feto morto ainda no útero. Ele existe, mas apenas como um ser devolvido à terra-mãe, envolvido em faixas, sem nenhuma comunicação com qualquer outra vida que continue existindo fora da sua neurose pessoal. Em Lázaro não há mais relação com o ambiente. Ele se tornou o ambiente.

Lázaro está desorganizado psiquicamente. Como uma criança, que ainda não estruturou um ego a ponto de funcionar como “gerenciador de programas”, em Lázaro não existe um organizador interno forte o suficiente para dizer-lhe que seus sentimentos não são autênticos nem verdadeiros. São reais, sim, mas não pertencem à esfera da realidade. Que o seu sofrimento exista, é claro que sim! Mas é um sofrimento neurótico, constituído de fantasias à deriva da realidade externa. Lázaro misturou e confundiu de tal forma o mundo externo e o mundo interno que se perdeu na fronteira entre os dois. É nessa fronteira que o sujeito deprimido, muita vez, se encontra perdido.

A pena de João captou essa desorganização psíquica interna, em Lázaro, quando falou do cheiro de putrefação do corpo. Já fazia quatro dias, lembra Marta. João comparou a desorganização da alma de Lázaro com a desorganização orgânica a que os corpos são submetidos, quando nada mais funciona e a vida não corre livre e o corpo se putrefaz. É assim que se encontra Lázaro: nada mais funciona, a vida não corre livre, a alma se decompõe.

Jesus sabia disso quando se demorou a sair do lugar. Sabia que a relação que prendia Lázaro a ele era uma relação de dependência. Sabia que havia se tornado a mãe nutriz de Lázaro. Sabia que a morte em vida de Lázaro, a total falta de interesse pelo mundo, pela comunidade, por si mesmo, não era outra coisa senão a necessidade e a falta da presença física, quase diria carnal, que Lázaro aspirava dele. (Pra falar a verdade, não sei se Jesus sabia, mas João, ou quem tenha escrito, esse, sabia.)

Jesus percebeu que, no caso de Lázaro, de maneira exemplar, o risco de falhar em sua missão era muito grande. Bastava que Jesus o amasse com a necessidade infantil que Lázaro exigisse daquele amor, bastava que Jesus se fechasse nele, e que ambos se fechassem em um pequeno e exclusivista mundinho interno, para que sua missão fracassasse. Ele pressentia aonde sua missão o levaria. Se Jesus se prendesse a eles, ao amor deles, à necessidade que sentiam dele e, por que não, à necessidade que sentia deles, com certeza, não teria tido nem coragem nem liberdade para seguir até o fim. Dois capítulos à frente, João escreve que “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (13,1). Entre esses “seus”, um lugar de destaque era ocupado pelos três irmãos de Betânia, com sua maneira insólita de amar. Se Jesus se prendesse a eles, a frase de João ficaria no ar ou sequer teria sido escrita. Se Jesus não tomasse cuidado, Lázaro, o amigo, teria se transformado em Lázaro, o estorvo.

sábado, 3 de março de 2012

DAVIII... IH! – 8

“Conheço o filho de Jessé, de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


Davi foge.

“O que foi que eu fiz? Qual foi o crime? Qual foi o pecado que cometi contra seu pai para que ele queira tirar a minha vida?” (1Sm 20,1).

Davi pergunta as mesmas coisas para si mesmo. Ele é um homem procurado na corte de Saul. Seu rosto jovem está estampado nos cartazes em agências de correio. Seu nome aparece no topo da lista de pessoas que Saul deseja matar. Ele foge, olhando por sobre o ombro, dormindo com um olho aberto e comendo com a cadeira próxima à porta do restaurante.

Que série obscura de eventos! Nem bem fazia dois ou três anos de quando ele ainda estava apascentando rebanhos em Belém! Naquela época, bom mesmo era ver as ovelhas dormindo, bom mesmo era dormir ao relento nas noites quentes, bom mesmo era contar estrelas, e nuvens, e ver a rara chuva chegando. Então, apareceu Samuel, um profeta idoso com sua barba prateada e um chifre com óleo. Assim como o óleo, um novo espírito cobriu Davi.

Davi abandonou sua dolce vita, deixou de fazer serenatas para ovelhas e passou a fazê-las para Saul. De repente, o tampinha ignorado da cria de Jessé estava na boca do povo: era rei Artur para a Camelot de Israel, belo e humilde. Os inimigos temiam-no. Jônatas amava-o. Mical casou-se com ele. Saul odiava-o.

Após o sexto atentado contra sua vida, Davi entende a razão. Saul não gosta de mim. Tendo a própria cabeça por recompensa e um bando armado em seu rastro, ele beija Mical, dá adeus à vida na corte e foge.

Mas para onde ele pode ir? Para Belém e arriscar a vida de sua família? Para o território do inimigo e arriscar a própria vida? Isso se torna uma opção, mas só mais tarde. Por enquanto, ele escolhe outro esconderijo. “Davi foi falar com o sacerdote Aimeleque, em Nobe” (1Sm 21,1).

Estudiosos indicam uma colina a cerca de um quilômetro e meio ao nordeste de Jerusalém como o provável lugar da cidade antiga de Nobe. Ali, Aimeleque, bisneto de Eli, dirigia, digamos, um mosteiro. Oitenta e cinco sacerdotes serviam em Nobe, o que lhe rendeu a alcunha de “a cidade dos sacerdotes” (1Sm 22,19). Davi vai correndo para a cidadezinha, procurando abrigo para escapar de seus inimigos. Sua chegada provoca um medo compreensível em Aimeleque. Ele “tremia de medo quando se encontrou com Davi” (1Sm 21,1). O que leva um guerreiro a Nobe? O que o genro do rei deseja?

Davi garante sua segurança mentindo para o sacerdote:

O rei me encarregou de uma missão e me disse: “Ninguém deve saber coisa alguma sobre sua missão e sobre as suas instruções” Agora, então, o que você pode me oferecer? Dê-me cinco pães ou o que você tiver (1Sm 21,2).

Desesperado, Davi recorre à mentira. Isso, agora, nos surpreende. Mais tarde, a mentira se tornará sua irmã. Até aqui, contudo, Davi fora brilhante, impecável, puro: Branca de Neve num elenco de bruxas com verrugas no nariz. Davi permaneceu calmo quando seus irmãos o repreenderam, permaneceu forte quando Golias bramiu, manteve a calma quando Saul perdeu a dele.

Mas agora ele mente como um chefe mafioso no confessionário. Descaradamente. Convincentemente. Saul não o havia encarregado de missão alguma. Ele não está cumprindo um serviço real secreto. Ele é um fugitivo. Injustamente, é claro. Mas, é um fugitivo. E ele mente sobre isso.

O sacerdote não interroga Davi. Ele não tem razão para duvidar do fujão. Ele simplesmente não tem nenhum recurso para ajudá-lo. O sacerdote tem pão, não pão comum, mas pão consagrado. O pão da Presença. Todos os sábados, o sacerdote colocava doze pães de trigo sobre a mesa como uma oferta a Deus. Após uma semana, e somente uma semana depois, os sacerdotes, e somente os sacerdotes, podiam comer o pão. (Engraçado pensar que alguém quisesse o pão de uma semana!) Não obstante, as opções e o colarinho clerical de Aimeleque encolhem.

Davi não é sacerdote. E o pão acabara de ser colocado sobre o altar. O que Aimeleque deveria fazer? Distribuir o pão e transgredir a lei? Guardar o pão e ignorar a fome de Davi? O sacerdote procura uma escapatória: “Não tenho pão comum; somente pão consagrado; se os saldados não tiveram relações com mulheres recentemente, podem comê-lo” (1Sm 21,4). Curioso!

Sei lá o que passou pela cabeça de Aimeleque! Se você quiser, pode culpar o aroma de pão recém-assado, mas Davi responde com a segunda mentira e uma escorregadela teológica. Seus homens não puseram os olhos, muito menos as mãos, em uma “donzela”. E o pão consagrado? Ele põe o braço no ombro do sacerdote, segue com ele em direção ao altar e sugere: Sabe, companheiro Aimeleque, “o pão terá o efeito de sempre, ainda que tenha sido santificado na vasilha” (1Sm 21,5). Mesmo os pães consagrados, raciocina Davi, ainda são assados no forno e levam farinha. Pão é pão, e fome é fome, certo?

Funciona. O sacerdote dá-lhe do pão consagrado, “visto que não havia outro além do pão de Presença, que era retirado de diante de Iahweh e substituído por pão quente no dia em que era tirado” (1Sm 21,6).

Morto de fome, Davi devora o pão. É provável que Aimeleque também tenha feito o mesmo. Ele pergunta-se se fez a coisa certa. Ele inverteu a lei? Violou a lei? Obedeceu a uma lei superior? O sacerdote concluiu que o apelo maior era barriga vazia. Em vez de pôr os pingos nos “is” do código do Altíssimo, ele supriu a necessidade de um filho do Altíssimo. Ta bom.

E Davi? Como Davi retribui a compaixão de Aimeleque? Com outra mentira! “Você tem uma lança ou uma espada aqui? Não trouxe a minha espada nem qualquer outra arma, pois o rei exigiu urgência” (1Sm 21,8). Não falei? Virou padrão!

Davi está vacilando. Não fazia muito tempo e a funda do pastor era tudo de que ele precisava. Agora aquele que recusou a armadura e espada de Saul pede uma arma ao sacerdote. O que aconteceu com nosso herói?

Simples. Ele perdeu o foco. Golias está no telão da imaginação de Davi. Conseqüentemente, baixou o desespero. O desespero cria mentiras, incita o medo, esconde a verdade. Não há onde se esconder. Não há o que comer. Aimeleque deu pão, Davi quer uma espada. A única arma que há no santuário é uma relíquia, a espada de Golias. Ó só! Justamente, a espada que Davi usou para decapitar a cabeça do gigante. Os sacerdotes estão expondo a espada como a Galeria da Academia de Florença, na Itália, expõe a estátua de Davi, de Michelangelo.

Perfeita!, diz Davi. E aquele que entra no santuário com fome e desarmado sai com a barriga cheia, a alma vazia e a espada de um gigante.

As coisas se repetem tanto! A despeito do que façamos, as coisas se repetem. Tanto!

sexta-feira, 2 de março de 2012

COLAPSO DO SIGNIFICADO

“O deus do oráculo de Delfos
nada esconde, nada revela, só significa.”
Heráclito de Abdera

Nenhum outro século foi mais curto do que esse que passou. Alguns historiadores afirmam que o século XX começou na Primeira Grande Guerra, em 1914, e terminou na queda do muro de Berlim, em 1989. Feitas as contas, o século XX durou apenas 75 anos e o século XXI começou 11 anos antes: no dia em que o muro caiu (Eric Hobsbawm).

E começou o novo milênio, estranho, complicado. Muita coisa mudou. Mudou, por exemplo, a noção de tempo. O tempo foi comprimido, uma vez que foi relacionado à tendência de super-acumular bens e acelerar o consumo. Quem vive agora, viu em poucas décadas o tempo se encurtar e se estreitar; e viu tudo isso acontecer de um modo muito rápido, efêmero e sem nenhuma transcendência que explicasse o fenômeno.

O tempo é outro. Se demorar pra decidir, você “dança”. Um segundo pode ser decisivo na vantagem. E os espermatozóides, de alguma forma, já sabiam disso.

É curioso ver como o tempo era medido ou percebido antes. Até o século XIX, as mudanças aconteciam por séculos: havia o século XVIII, depois o século XIX... A partir do século XX, as mudanças passaram a acontecer por décadas: vieram os anos vinte, os anos trinta... Lá pelo meio da década de 80, as mudanças foram percebidas por anos: 1986 foi diferente de 1985, 1997 de 1996, e por aí afora. O século XXI, quando começou, já parecia velho. Tudo muito rápido, volátil, descartável, efêmero, cruel.

É intrigante essa questão do tempo. Numa metrópole, como São Paulo, o tempo se divide em dia e noite. Não existem horas. É de dia e, de repente, já é de noite, sem que se perceba a mudança. Em São José dos Campos, cidade menor, ainda existe manhã, tarde e noite. Na minha cidade, do tamanho de um ovo de codorna, existe duas da tarde, duas e quinze, duas e meia, duas e quarenta e cinco... A cada tantos minutos, o relógio da igreja anuncia, sem pressa, o momento do dia. E você sabe o momento que está vivendo, porque, naquele lugar, as horas têm cores, o tempo e os relógios não têm pressa, o ar tem aroma, e fica a bondosa impressão de que a vida é longa e você vive mais. Ao contrário, onde tudo é muito rápido, a sensação de ter a vida escorrendo pelo vão dos dedos é deveras cruel.

O tempo se encurtou. As distâncias não existem mais. É uma ciranda, só que nada infantil.

Nessa ciranda da concentração financeira, descentralizou-se a produção e os tempos foram reduzidos: o giro nos setores de produção ocasionou a intensificação dos processos de trabalho e a conseqüente aceleração da qualificação e desqualificação da mão-de-obra, necessária ao atendimento das novas necessidades. É assim, ó: hoje, você serve, ta. Amanhã, ficou obsoleto. Daí vieram cursos, workshops, congressos, especializações, mestrados, doutorados, pós-doutorados, pós-pós-doutorados. Cada vez mais de cada vez menos. O sistema gratifica, sim, mas exige e devora. O grande Outro é voraz.

Aceleração na produção acarreta aceleração do consumo, troca de bens, circulação de mercadorias, on line e real time. Se não for assim, não acontece, você ficou defasado, e bye-bye! Não é possível que essa aceleração não influencie, determinantemente, a maneira de ser, pensar e agir do homem contemporâneo.

A primeira conseqüência dessa mudança foi acentuar o caráter volátil e efêmero daquilo que se chama “produto”: as modas, as técnicas de produção, os processos de trabalho, as idéias, ideais e ideologias, os valores e práticas estabelecidos, o chocolate instantâneo, o macarrão pré-cozido, o talher, o copo e o prato. Tudo é descartável. (Se duvidar, até você.) Tudo muda muito, e muito rápido. O homem pós-moderno não acompanha mais as mudanças que ele mesmo criou e incentivou. Seria a história do médico e o monstro? Se for, quem é o médico e quem é o monstro? E a quem essas mudanças interessam?

O mercado financeiro existe a partir de capitais fictícios, voláteis, uma ciranda que resiste ao discurso onipotente dos economistas, e traz cada vez mais à tona uma sensação de embaraçosa e profunda alienação e aleatoriedade. E é sobre esse balão inflado que repousa, não a economia mundial, mas – o que realmente interessa – a vida das pessoas: a sua vida, a minha.

Quem diria que Platão seria tão atual!

Como que saídos da nossa própria caverna vivemos, no dia-a-dia, a ilusão da “Matrix”. Quem sabe, não sejamos mesmo um código num computador? Ou um vírus num organismo maior?

É esse fenômeno que rege a manipulação do gosto, da opinião e do desejo. Quem garante que você realmente gosta de usar a marca que usa? Se você afirmar que foi você mesmo, vou ter de pedir licença para desiludi-lo. Caso você insista em afirmar que todos seus gostos, opiniões e desejos partem (só) de sua autonomia, terei de avisá-lo que isso é uma deliciosa ilusão, mas só uma ilusão. Não é possível, nunca foi possível nem será, em época alguma, sair de debaixo da influência externa. Quem vende mídia, e até quem vende pipoca, sabe disso. E sabe mais: sabe que o que todos querem é preencher uma lacuna interna, o fosso de cada um. “Ao persuadir o outro de que ele tem o que nos pode completar, nós nos garantimos de poder continuar a desconhecer precisamente aquilo que nos falta” (Lacan).

A mídia produz um cortejo de signos a fim de alimentar a insaciável indústria do comércio cultural. Ou da cultura comercial. O resultado dessa inflação dos signos é o esvaziamento dos significados. É nisso que eu queria chegar. Não temos mais símbolos, temos signos. Signos, com cada vez maior pretensão a símbolos, e totalmente vazios de significado. Esses signos, ao invés de remeter-se a um significado maior, atraem o foco para si mesmo. O que sobra é uma sensação de desnorteante e mareado vazio.

Quer um exemplo? Olhe as letras de música do nível mais popular. O que você canta numa frase não faz o menor sentido em relação à outra. Aliás, nem é pra fazer mesmo. É só pra produzir ruído. Está mais para uma forma de esquizofrenia musical, um agregado de significantes indistintos, sem nenhuma relação entre si. E isso produz a alienação total de grupo. É a loucura das grandes massas que cantam juntas, berram juntas, se espremem nos estádios para louvar juntas. Mas com um saldo: ninguém conhece ninguém e nem julga necessário conhecer. O sujeito nem bem saído dali, pode roubar, matar e violentar quem esteve do seu lado, sem que isso represente nada para ele.

Esse é o saldo do anonimato.

Na minha cidade – lembre-se do ovo de codorna – existia o “Manoel da Laura”, que quando a Laura morreu, casou-se com a Maria, mas continuou sendo o “Manoel da Laura”. Porque essa era a sua história e todo mundo sabia e contava e história a gente não muda.

Nas grandes cidades, cada vez mais, ninguém é de ninguém porque ninguém é ninguém. A alienação é o carro-chefe. Os efeitos psíquicos dessa desagregação são desastrosos. A identidade pessoal supõe uma unificação temporal do passado e do futuro, com o presente que tenho diante de mim. O esvaziamento do discurso e da palavra remete à incapacidade de unificar na vida psíquica o passado e o futuro, no presente. Não há mais história pessoal. Não existe mais um sujeito com nome e história, como o “Manoel da Laura”. As pessoas não se olham mais umas às outras. Olham através das outras. E não falam mais nada. Não têm o que dizer. Esperam que se lhes fale, ou que se repita o que elas já sabem ou já ouviram. Mas, se as palavras não operam o sentido e os significantes não montam mais significados, quem poderá compor sua própria biografia? Cadê o “Manoel da Laura”, que já no nome contava a história? E onde ninguém é ninguém, qualquer um estará autorizado a matar por um tênis?

Biografia! Biografia é a salvação. Há pessoas para quem a vida acontece do lado de fora, como se não fosse nem delas nem a delas, como se tivessem perdido a senha de acesso a si mesmo, trancadas do lado de fora, e já não fossem protagonistas de qualquer história, nem da própria. Vazias e áridas, essas pessoas se assemelham a bonecos de corda. Só enquanto dura a corda o movimento continua. Não há vida interior que as anime.

Então, será a solidão o preço da modernidade? Terá a modernidade algum significado? Terá o significado entrado em colapso na modernidade?

O que entrou em colapso foi a cadeia significativa. O significado das coisas, que ontem parecia tão simples, tem falência decretada. Essa situação faz aumentar – mais do que se esperava e devia – os grupos de ajuda gratuita: religiosos, esotéricos, de auto-ajuda, comunidades fechadas, terapêuticas, on line, por e-mail, por telefone, enfim, o vale-tudo. Muito eficientes na intenção. Nem sempre eficazes na execução. Se tudo na vida tem preço, o preço desses grupos parece ser a alienação.

Até que se prove o contrário, quero crer que esses grupos sejam sérios, honestos, e que carregam um caminhão de boa-vontade. Contudo, não espere muito que eles modifiquem a sua orientação básica de funcionamento: alienar para “desalienar”? Ou como já ouvi, prender para libertar? É libertar? Não vem ao caso discutir se essa conduta produz algum resultado e até onde. Na questão em pauta, o que ela não produz é o antídoto para o próprio veneno. Produz cogumelo. E cogumelo só nasce em madeira podre, nunca em madeira de lei.

O que falta é sentido na cadeia significante. O que se vê por aí são grupos gerando uma cadeia significante própria, cujo significado provém deles mesmos, e só faz sentido para eles mesmos e para quem se colocar debaixo deles. Não é raro que se ofereça à venda o que não se pode entregar. Há gurus da produtividade, rentabilidade, afetividade, aproveitamento do tempo e das oportunidades. Há gurus para todo bolso, para todo gosto e todo mau gosto.

Também, não raro que se presencie tamanha movimentação religiosa girando em torno de lideranças personalistas, slogans motivacionais, experiências sensoriais, linguagens corporais e sensações alienantes. Contudo, também é raro encontrar alguma palavra plena que faça e extraia significado da cadeia que ela própria gerou. O orador, pregador ou líder tem sempre de estar fazendo rir ou chorar, sempre provocando alguma sensação, qualquer sensação, qualquer uma, nem que seja uma piada de mau gosto. Da palavra, por si só, não brota mais nada. A palavra virou fruto seco, marcado pela aspermia.

À ética de resultados vinculou-se a ética do mercado. Daí a movimentação, como nunca se viu na história, em todos os campos da atividade humana. Do futebol à arte, da medicina à religião, tudo obedece a projetos de resultado, a leis de mercado e marketing pessoal. Há muito tempo, não se via tanta estratégia maniqueísta, maquiavélica e sensacionalista, promovendo ideais pessoais e particulares, girando estrategicamente em torno daquilo que se costumou chamar de revitalização, em seus múltiplos nomes.

No centro de tudo, a rainha sensação. Se for só a sensação o alvo da busca, que não se queixe quando ela tomar conta da casa e fragmentar o indivíduo. Se só o que conta for a sensação, o signo sem sentido, o símbolo com valor de simulacro, por que as relações têm de valer alguma coisa, além da intensidade do momento? Se o corpo só vale por aquilo que experimenta no momento, e se o momento só tem valor se o corpo chegar ao limite do gozo, e sem fim, por que levar em conta o significado que o transcende? Aliás, às favas com qualquer transcendência! Se, no final, o significante, aleatório e alienante, não produzir nenhum significado, quem se importa? Quem liga pra isso? The show must go on! O Gugu e o Faustão precisam continuar. As pessoas continuarão vazias. Um dia, irão cobrar! Mas, por enquanto, os estádios estão lotados e os palhaços assumem a cena.

Salve-se quem puder!

Freud nos deixou um software esplêndido para entender a alma humana e a vida, enfim. No fascinante universo do pensamento psicanalítico, o primeiro passo é levar a sério o inconsciente. Essa é a porta de entrada de uma construção que já fez 100 anos, enfrentou desafios e nunca buscou resultados imediatos. Porque sabe que o seu trabalho é longo. Tem certeza do que faz. E quem tem certeza, não precisa ter pressa.