domingo, 26 de fevereiro de 2012

DAVIII... IH! – 7

“Conheço o filho de Jessé, de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


A verdade toda, se dita, converte-se sempre em mentira ou insulto. O essencial se encontra entre as palavras, não nas palavras. Quando você não diz o que queria dizer, o que diz é mais verdadeiro do que o que queria dizer. A verdade, se existe, está no lapso. Esse é o terrível do lapso!

Esses são os lapsos de Davi e de Saul. Pobre Saul! O vale de Elá revelou-se um campo de treinamento para a corte real. Quando Golias perdeu sua cabeça, os hebreus transformaram Davi em seu herói. O povo promoveu um desfile para espalhar rapidamente a notícia, cantando: “Saul matou milhares e Davi, dezenas de milhares” (1 Samuel 18,7).

Saul explode como o Vesúvio. Passa a examinar Davi “dali em diante” (1Sm 18,9). O rei já tem a alma perturbada, propensa a ter acessos de raiva, suficientemente paranóica para comer abelhas. A popularidade de Davi irritou Saul. “Encravarei Davi na parede” (1Sm 18,11).

E Saul tenta matar o menino de ouro de Belém em seis diferentes momentos. Primeiro, ele pede a Davi que se case com sua filha Mical. Parece um gesto gentil, até você ler sobre o preço brutal que Saul exigiu pela noiva. O prepúcio de cem filisteus. Sem dúvida, um dos filisteus matará Davi, espera Saul. Não é o que acontece. Davi dobra a exigência e volta com a prova (1Sm 18,25-27). Agora, vem cá, cem prepúcios! Para quem sabe o que uma paranóia esconde, esse pedido não é escancarado demais? Cem prepúcios! E Davi traz duzentos! E o sujeito não fica satisfeito! Use-se e abuse-se das exclamações e das reticências.

Saul não desiste. Ordena aos seus servos e a Jônatas que matem Davi, mas eles se recusam a fazê-lo (1Sm 19,1). Ele tenta encravá-lo com a lança outra vez, mas não consegue (1Sm 19:10). Além de tudo, era ruim de pontaria! Então, Saul envia mensageiros à casa de Davi para o matarem, mas Mical, esposa de Davi, o faz descer por uma janela. Davi, o papa-léguas, fica um passo à frente de Saul, o coiote.

A raiva de Saul estarrece Davi. O que ele fez, senão o bem? Ele levou cura pela música ao espírito atormentado de Saul, esperança à nação enfraquecida. Ele é o Abraham Lincoln da calamidade dos hebreus, salvando a república e fazendo isso modesta e honestamente. Ele “tinha êxito em tudo que fazia” (1Sm 18,14). “Todo o Israel e todo o Judá, porém, gostavam de Davi” (1Sm 18,16). Davi “tinha mais habilidade do que os outros oficiais de Saul e assim tornou-se ainda mais famoso” (1Sm 18,30). Mas esse era o problema. Davi ficou famoso. A fama é um mau sinal: é sinal de incompreensão.

E o vulcão Saul continua em erupção, recompensando os feitos de Davi com planos para assassiná-lo, lanças voadoras e pontarias desastradas. Entendemos a pergunta que Davi faz para Jônatas: “O que foi que eu fiz? Qual foi o crime? Qual foi o pecado que cometi contra seu pai para que ele queira tirar a minha vida?” (1Sm 20,1).

Jônatas não tem respostas para dar, pois a resposta estava além da sua capacidade. Quem sabe se eles vivessem em Viena, no final do século XIX, e conhecessem um tal Professor Sigmund Freud, quem sabe!

O que pode justificar a raiva de um Saul? Quem consegue encontrar a razão por que um pai atormenta um filho, uma pessoa desdenha a outra, um chefe coloca os funcionários uns contra os outros? Mas é o que acontece. Saul tem raiva do planeta. Ditadores torturam, patrões seduzem, ministros abusam, sacerdotes molestam, os fortes e poderosos controlam e enganam vulneráveis e inocentes. Ainda há Saul e ainda há Davi.

A crueldade de Saul bate de frente na lealdade de Jônatas. Jônatas poderia ter ficado tão enciumado quanto Saul. Ele era o primogênito de Saul, ele se preparava para herdar o trono. Como um nobre soldado, lutava contra os filisteus enquanto Davi ainda apascentava ovelhas.

Jônatas troca as vestes de pastor de Davi por seu próprio manto de púrpura: o manto de um príncipe. Ele dá sua espada de presente para Davi. Ele, efetivamente, coroa o jovem Davi. O herdeiro do trono entrega seu trono.

E depois, ele protege Davi. Quando fica sabendo dos planos de Saul, Jônatas avisa seu novo amigo. Quando Saul vem em busca de Davi, Jônatas o esconde. Ele normalmente dá-lhe avisos como este: “Meu pai está procurando uma oportunidade para matá-lo. Tenha cuidado amanhã cedo. Vá para um esconderijo e fique por lá” (1Sm 19,2). Jônatas faz uma promessa a Davi e dá-lhe roupas e proteção.

Davi e Saul são um caso complicado de se resolver. Jônatas e Davi são o oposto da moeda. Um caso interessante para absorver.

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 20

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Mas, o que aconteceu, afinal, com Lázaro? Muitas coisas podem ter acontecido. Nunca se pode analisar todas as possibilidades num golpe de vista só. Uma delas, no entanto, cabe bem dentro da pretensão deste texto.

Lázaro se tornou um infans, um infantil.

Infante é quem não tem voz – infans, do latim – aquele que se falar ninguém ouve. (Quem, ainda, se lembra do Infante Dom Henrique?) Na cena do capítulo 11, Lázaro entra mudo e sai calado. No capítulo 12, seguinte a esse, há uma ceia mortuária, quando só se conta que Lázaro estava presente. Ele não fala. Aliás, nunca falou. Suas irmãs é que falaram por ele, disseram o que precisa ser dito e o que não adiantava mais dizer. Ele mesmo, como era de se esperar de um infante, não decide nada a respeito de si mesmo. Lázaro é “sem fala”, como uma criança. Se bem que as crianças de hoje...

Em vista disso, Lázaro cai numa profunda melancolia, uma quase morte, pela decepção consigo mesmo e a frustração do desejo que o embalava de receber de Jesus o único alimento de que necessitava. Se for possível dizer que Lázaro morreu, devemos dizer que ele morreu de inanição, de anemia afetiva e, por que não, por que não, espiritual. Lázaro precisava de Jesus, mas precisava o tempo todo, e inteiramente, como uma criança. Criança – infante – Lázaro faz de Jesus não só uma motivação de vida, mas uma condição de vida, e tão exclusiva, e tão alienante, que o tornou incapaz de autonomia própria. Autonomia, aliás, que está lá, bem clara, em todos os sinais mencionados no evangelho de João, menos nesse.

Vamos passar em revista?

No primeiro sinal (cap. 2), faltou o vinho. Mas os servos das Bodas de Caná sabiam disso, aliás, os servos sabiam de tudo, e por saberem de tudo, foram capazes de encher as talhas de água, em tempo. É a eles que a mãe se dirige, não ao noivo, não ao mordomo. Este, aliás, é o menos sabia das coisas, das faltas e dos acontecimentos. O mordomo encarna os dirigentes: eles nunca sabem.

No segundo sinal (cap. 4), faltou o amor. O pai onipotente do filho doente pede que Jesus “desça”. Mas quem precisa “descer” do pedestal é ele. Quando ele saca isso, pode, enfim, deixar de dar ordens, inclusive, a Jesus, descer da sua arrogância e ir ao encontro do filho doente.

No terceiro sinal (cap. 5), faltava ânimo, disposição, vontade de ter vontade, fome de viver. O paralisado não tinha ninguém que o levasse à Betesdá. Mas quem disse que ele precisava ir a uma fonte que não mais oferecia o que prometia? aquilo lá, nem fonte era: era fosso. Betesdá significa “O Fosso”. Então, o paralisado, ao apelo de Jesus, mas por conta própria, “levantou-se, assumiu a sua maca e andou”.

No quarto sinal (cap. 6), faltou o pão – fome é essencial. Todas as “fomes” são. E de um menino veio a solução: cinco pães e dois peixes. Pães de cevada, material inferior, mas era o que ele tinha. E o que ele tinha, ele deu. Um menino – de rua, como informa o texto original grego – foi capaz de dar. Ele era inferior por sua condição e seu pão era inferior pela qualidade e quantidade. Mas ele foi capaz de dar. E todos deram do que haviam levado, e todos comeram, e todos ficaram satisfeitos.

No quinto sinal (cap. 6), faltava coragem. Mas o pavor dos discípulos não os impediu de reconhecerem seu mestre, andando sobre o medo como quem pisa descalço em caco de vidro.

No sexto sinal (cap. 9), faltou luz. Mas o cego enfrentou a própria cegueira, a cegueira seus pais, dos dirigentes, da comunidade e gritou para quem quis ouvir: Alguém me “abriu os olhos”! E, agora, eu vejo o que ninguém vê.

Chega-se, então, ao sétimo sinal (cap. 11). Todos estão à frente do túmulo de Lázaro e, aqui, ninguém sabe o que faltou. Nos outros sinais anteriores, todos sabiam o que faltava. Não era difícil providenciar a saída, quando se conhecia o final do túnel. Neste sinal, ninguém sabe nada. Todos estão perdidos. Marta está perdida: responde ao que não ouviu. Maria está perdida: repete o que não pode ver. Lázaro está no túmulo. Os leitores do texto prendem a respiração, porque algo precisa acontecer e para tanto precisa ser encontrado, mas ninguém sabe o que é. Alguma coisa na história de Lázaro nos escapa, algo a ser contado, um mistério que envolve a todos: Marta, Maria, Lázaro, os leitores, os ouvintes... Jesus.

Repito, mas de outra forma. Nos outros sinais, Jesus participa, mas não se envolve. Aqui, é o contrário: ele está envolvido, inteiramente, mas quase não participa. O comentário, à boca pequena, é: “Mas ele que abriu os olhos do cego, não poderia ter evitado que esse morresse?” É só depois dessa, e só no final, que Jesus se dá conta de que precisa intervir. Parece que ele espera o final, para só no final, mostrar-se inteirado do que estava acontecendo ali. Mas, afinal, o que é que estava acontecendo ali?

domingo, 12 de fevereiro de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 19

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Numa família assim, de pessoas tão ternas, não é impossível – não, mesmo – que Jesus de Nazaré também tenha se ligado afetivamente a elas pelos mesmos laços de ternura com que se ligaram a ele. Diante do túmulo de Lázaro, ele chorou. Chorou porque amava e havia perdido. Chorou porque não é fácil perder. Para ninguém. Nem para ele.

Mencionei, no início, que este sétimo sinal é diferente de todos os outros por uma particularidade que o faz único: Jesus se envolve, apaixonadamente, com os personagens da trama. Nos outros sinais, ele manifesta. Neste, ele se manifesta.

Imaginem que o destino de Jesus, em sua vida, foi uma carga muito pesada. Em certos momentos, ele se viu tentado a ser homem como os outros homens: chefe político, rico, poderoso. Ou, simplesmente, pai de família, com mulher e filhos, sogra... Uai! As tentações do deserto foram escritas para nos mostrar, justamente, isso.

Por que, então, ele não haveria também de se ver levado a ser amado por si mesmo: pela sua capacidade de amar e em sua necessidade de ser amado, pela sua beleza e por toda beleza do que poderia desfrutar ao redor de si? Naqueles três irmãos, totalmente devotados a ele, ele poderia encontrar e viver um grande amor, quase às raias da exclusividade. O problema é que esse passo, o da exclusividade e o do exclusivismo, é curto demais. Geralmente, só percebe que a fronteira foi ultrapassada quem já a ultrapassou.

E tem mais. O que existe de humano em Jesus de Nazaré está submetido, como em qualquer um de nós, aos mesmos moldes de amor especular, nos quais nos condicionamos e fomos condicionados desde lá atrás, desde a mais remota infância. Eu disse especular, de espelho. Nós amamos o espelho. Amamos o que nos reflete. Aliás, só conseguimos amar o que nos reflete. O diferente completa? É o que dizem. Mas apenas o semelhante seduz. Só o semelhante tem o poder de atrair. Se isso é bom ou ruim? Nem bom nem ruim. Só é. Com o poder de ser. No amor humano, as coisas funcionam de uma forma que só o que for muito semelhante a mim, no outro, tem o poder de despertar e atrair o meu amor.

Não amamos o outro. Amamos a nós mesmos, no outro. Bingo!

Ora, é difícil imaginar alguém mais semelhante a Jesus e mais capaz desse jogo especular do que Lázaro. Quando as irmãs mandaram o aviso a Jesus, a frase foi curta, mas disse tudo: “Aquele que amas está doente” (Jo 11,3). Será necessário acrescentar alguma coisa a esse amor que, como toda e qualquer forma de amor, só é amor na medida em que um consegue se enxergar no brilho do espelho do olhar do outro?

Da parte de Lázaro, a situação é ainda mais contundente. Desesperado por estar separado de Jesus, como um bebê longe da mãe, Lázaro não morre. Lázaro, simplesmente, deixa-se morrer. Ao que tudo indica, Lázaro tem necessidade de Jesus. Ele ama Jesus. Mas o seu amor não é um amor de liberdade. É um amor de dependência, exclusivo, exclusivista. Posso dizer, fechado? Se Jesus o esqueceu, como ele acredita, ou se Jesus prefere sua missão, ou sua segurança (ele não podia mais transitar pela Judéia, lembra?), então, Lázaro não acredita mais nele nem em suas palavras nem em seu amor. Lázaro não amadureceu o amor que viveu. Lázaro infantilizou-se. Verdejou.

Jesus havia se tornado a luz dos olhos de Lázaro. Na ausência física dele, Lázaro mergulha na escuridão. Lembra das palavras enigmáticas de Jesus, proferidas antes de pôr-se a caminho? “Se alguém caminha de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo. Mas se caminha de noite, tropeça, porque nele não há luz” (Jo 11,9-10).

Em Lázaro, não há mais luz. Isso é a morte. Lázaro não morre, deixa-se morrer. Adormece o sono de uma falta de vida que beira e cheira à morte, um torpor cego, do qual, dificilmente, alguém sai por conta própria. “O nosso amigo Lázaro adormeceu e eu vou despertá-lo” (Jo 11,11). É demais de interessante esse pronome plural “nosso” – emôn , em grego – presente em todos os códices mais antigos. “Nosso”, e não “meu”.

Porque esse tal de “meu”... Ô pronomezinho complicado! Há um entrevero entre esse pronome e o alargar da consciência que, ao que tudo indica, parece que foi o que viemos fazer aqui no planeta, não foi não?

Os discípulos, homens rudes, não entendem. É sono? É morte? Do que estará falando? Que Jesus era o sol de Lázaro, todos sabiam. O que não sabiam é que Lázaro havia se apegado e se apagado, de uma forma tão absoluta e virulenta que se acabou cego de tanta luz, e do mesmo do sol que o havia iluminado

Não preciso lembrar que Lázaro, possivelmente, não existiu como pessoa física. O Lázaro do Evangelho é um personagem criado por João, para nos fazer pensar. O texto é um condensado, uma metáfora, um conglomerado de muitos Lázaros, muitas Martas e Marias. Se João tivesse narrado um acontecimento, nu e cru, teríamos um furo de reportagem extraordinário. Isso, contudo, em nada nos faria pensar, mais do que faz pensar qualquer notícia de jornal. O Lázaro que faz pensar, ainda hoje, sobre o qual nos debruçamos e queimamos pestanas, é contemporâneo nosso. Vive do nosso lado. Talvez, dentro de nós. Qualquer semelhança nunca é mera coincidência.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

DAVIII... IH! – 6

“Conheço o filho de Jessé, de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


O que levou o Eterno a escolhê-lo? É o queremos saber. É só o que realmente interessa saber. Afinal, andamos também nós pelo pasto de Davi, o pasto da exclusão.

O pasto da exclusão? É. Gostaria de incluir uma vinheta nessa “saga do Davi”. Ela poderá parecer inapropriada uns, apropriada a outros, enfim, que seja. Não resisti. E vou colocá-la.



Já nos cansamos do sistema superficial da sociedade, de sermos classificados de acordo com os centímetros da cintura, os metros quadrados do apartamento, a cor da pele, o modelo do carro, a grife das roupas, o tamanho do escritório, a presença de diplomas na parede, a ausência de espinhas na cara.

Chega desses joguinhos!

O trabalho duro é ignorado. A devoção não compensa. O chefe prefere a segmentação ao caráter. O professor prefere os mimados no lugar dos preparados. Os pais exibem os filhos preferidos e deixam os nanicos lá fora no campo. Há sempre um Golias da exclusão!

“O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Sm 16,7). Essa é a vinheta.

Tais palavras brotaram, lá atrás, de um sentimento de fazer parte dos haqqatons da sociedade, os que se sentem como peixes fora d’água, os excluídos. O Eterno-que-não-sei-como-se-chama-nem-como-é tem um jeito especial de fazer com que todos eles caibam nalgum propósito maior. Parece que é assim!

Moisés fugiu da justiça; o Eterno-que-não-sei-como-se-chama-nem-como-é fez bom uso disso. Jonas fugiu de Nínive; o Eterno... fez bom uso disso. Raabe dirigia um bordel, Sansão correu para os braços da mulher errada, Jacó correu em círculos, Elias correu para as montanhas, Sara perdeu a esperança, Ló andou com a multidão errada... O Eterno... (bem, você já sabe o resto).

E Davi?

O Eterno-que-não-sei-como-se-chama-nem-como-é viu um adolescente em Belém, no meio do mato, entre o tédio e o anonimato, e, com a voz que ninguém sabe exprimir e um ouvido para vozes, chamou: Davi! Entre. Alguém quer vê-lo. Olhos humanos (retina, córnea, humor vítreo, íris, pupila, cristalino...) viram um adolescente magricelo entrar na casa de Jesse, cheirando a ovelha, com a urgência urgentíssima de um banho, como se dizia em Minas, geral. “Javé disse: Levante-se e unja o rapaz. Porque é esse.” (1Sm 16,12).

Sem derrapar nas pieguices do missal Goffiné, o que foi que D’us viu ali? Terá sido o que ninguém vê? E o que é isso que ninguém vê? Dizer que D’us viu um coração que o buscava é forçar a amizade. Nessa altura – e não sei se isso vai mudar muito na história dele – Davi não tinha nem sustança nem aparelhamento mental para esboçar qualquer forma de atitude mística que esbarrasse em qualquer busca pelo Sublime. Ara, ara, ara! Vem cá! Davi era só um moleque haqqaton. Há certas leituras da Bíblia que transformam personagens comuns em heróis míticos, como foram os da Grécia clássica. Menos. Ta!

Aquilo ali era tudo gente e igual a todo mundo. Davi, os sete irmãos preteridos, Jesse, Samuel e, por que não, o paranóico do Saul. Tudo gente! E gente é um trem que cabe entre a máquina, que nunca deixa de responder ao toque, e o animal pet, que nunca, jamais frustra o dono. Gente, geralmente, não responde, frustra, desanima, faz qualquer um passar a mão na testa e exclamar aos Céus: Mas onde é que eu tava com a cabeça! Quem prefere as máquinas, jamais ficará ao léu. Quem escolhe os bichos, jamais clamará ao Céu. Mas, vem cá: não seriam essas duas formas estilizadas e não menos sofridas da mesma antiga solidão?

Não se assuste se as cores desse quadro fiquem humanas demais. Elas são assim mesmo. Foram feitas assim, e foram feitas para serem assim.

Durante os primeiros mil anos de cristianismo, numa era que se chamou Patrística, porque foi dominada pelo pensamento dos Padres da Igreja, houve a tentativa (quase insana) de colorir tudo o que tinha vindo antes com as cores do cristianismo. No desenrolar da História aconteceu a mesma coisa com os vitoriosos: todo partido ou revolução fizeram o mesmo. A História foi escrita pelo sobrevivente. A fim de elevar os personagens da Bíblia Hebraica à condição de merecedores do status de predecessores do Messias, eles passaram por uma clínica de estética: foram embelezados, purificados, idealizados. Demãos e mais demãos de pintura foram dadas sobre o quadro original para transformá-lo numa obra aceitável ao olhar do censor. Pena que se perdeu o quadro original! Foi pelo ralo a beleza que nele havia.

A vinheta da biografia de Davi é esta: “O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Sm 16,7).

E o coração que o Senhor vê, subentenda-se, não é coração segundo os moldes deste ou daquele pensamento acomodatício, conformista, procustiano. Não. O que o Senhor mais vê, mais entende e reconhece de si mesmo no coração do homem é a sua rebeldia. “Sua”, do homem ou de D’us? Não sei. O pronome está aí para ficar assim. Só o que sei é que enquanto o homem for rebelde a tudo o que esperarem dele, enquanto ele não couber, simplesmente, em moldes pré-fabricados, enquanto ele não aceitar, sem mais, que lhe digam do quê ele deve gostar ou não gostar, engolir ou vomitar, enquanto houver dessa rebeldia no coração humano, será aí, então, nesse ponto, que o Criador se reconhecerá na obra criada. Nossa rebeldia é a assinatura de D’us.

Davi que o diga!

Essa era a vinheta.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

DAVIII... IH! – 5

“Conheço o filho de Jessé de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)



Samuel chega. Alvoroço geral. “Quando chegou a Belém, os anciãos da cidade foram ansiosos ao seu encontro, e perguntaram: Você está vindo em missão de paz? Samuel respondeu: Sim. Eu vim para oferecer um sacrifício a Javé." (1Sm 16,4-5) Lembra? Ele tinha ido ali apenas para oferecer um novilho a Javé! E o medo de Saul? Saul não era brinquedo, não, gente! O cara era um psicopata perigoso.

Então, como quem não quer nada, Samuel pergunta pelos filhos de Jessé. Eles vieram e se apresentaram diante de Samuel. A cena é esplêndida e digna de ser lida no texto original.

“Samuel purificou Jessé e seus filhos e os convidou para o sacrifício. Quando chegou, Samuel viu Eliab e pensou: Certamente é esse que Javé quer ungir! Javé, porém, disse a Samuel: Não se impressione com a aparência ou estatura dele. Não é esse que eu quero, porque Deus não vê como o homem, porque o homem olha as aparências, e Javé olha o coração. Jessé chamou Abinadab e o apresentou a Samuel. E Samuel disse: Também não foi esse que Javé escolheu. Jessé apresentou Sama, mas Samuel disse: Também não foi esse que Javé escolheu. Jessé apresentou a Samuel sete dos seus filhos. E Samuel respondeu: Não foi nenhum desses que Javé escolheu. Então Samuel perguntou a Jessé: Estão aqui todos os seus filhos? Jessé respondeu: Falta o menor. Ele está tomando conta do rebanho. Então Samuel disse a Jessé: Mande buscá-lo, porque não nos sentaremos à mesa enquanto ele não chegar. Jessé mandou chamá-lo e o fez entrar: era ruivo, seus olhos eram belos, e tinha boa aparência. E Javé disse: Levante-se e unja o rapaz. Porque é esse.” (1Sm 16, 5-12).


Pensa bem! A cena não parece uma exibição de cachorros? Jessé exibe seus filhos um de cada vez, igualzinho cachorro na coleira. Samuel examina-os de vários ângulos, ponto por ponto, mais de uma vez, para dar-lhes a nota máxima: a cor do pelo, o tamanho das orelhas, do focinho e da cauda. Mas, em cada vez, D’us diz: Hã... hã... Não é esse, não!

Eliabe, o filho mais velho, deveria ser a escolha lógica. Você pode imaginá-lo como o Casanova da vila: cabelos ondulados, maxilar saudável, dentição perfeita. É o príncipe William da corte de Jesse. Usa uma calça jeans apertada e tem um sorriso perfeito. Achei!, pensa Samuel.

Achou nada!, diz D’us. D’us não gosta das escolhas óbvias.

Abinadabe, o segundo irmão, entra como o segundo concorrente: o irmão do príncipe William. Mas melhorado, melhorado! Você podia jurar que quem havia acabado de entrar era um modelo da moda masculina. Terno italiano. Sapatos de couro de crocodilo. Cabelos negros, alisados para trás com gel. Quer um rei estiloso? Acabou de encontrar. Abinadabe tem esse perfil. E-ainda-fala-com-jeito-de-paulistano-mêu!

D’us não está interessado em estilo.

Samuel pede para que entre o terceiro irmão: Samá. Ele é estudioso, aplicado, óculos de grau. Lucraria bastante com um transplante de carisma, mas tem massa cinzenta sobrando. É formado na Federal de Israel e está de olho em um programa de pós-graduação no Egito. Jessé sussurra para Samuel: Foi o orador oficial da Escola de Belém.

Samuel fica impressionado, mas D’us, não. E o faz lembrar: “O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Sm 16,7). “Homo enim videt ea, quae parent, Dominus autem intuetur cor.”
Caramba! Esse trem ficou danado de bonito em latim!

Sete filhos passam. Sete filhos fracassam. O desfile pára. Samuel conta os irmãos: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete.
- Jessé, você não tem oito filhos?

Uma pergunta semelhante faria a madrasta da Cinderela contorcer-se. Jessé, provavelmente, também, em cólicas intestinais.
- É. Ainda tenho o caçula, mas ele está cuidando dos animais.
(Nessa, Papai já teria pedido o Atroveran.)

O termo hebraico para “caçula” é haqqaton (pronuncia-se “rracatón”) e indica mais do que idade: sugere posição. O haqqaton não era só o irmão caçula: era o irmãozinho – o tampinha, o hobbit, o bebê. Cabia ao haqqaton da família cuidar das ovelhas. Era como se os mais velhos dissessem para colocar o menino num lugar onde ele causasse o menor número possível de problemas. Deixe-o com cabeças cheias de lã e céu aberto.

E é ali que encontramos Davi, no meio do pasto com o rebanho.

As Escrituras Hebraicas irão dedicar 66 capítulos à sua história. Nas duas Alianças, ele perde em número de referências somente para Jesus. O Segundo Testamento menciona seu nome 59 vezes. Ele estabelecerá e habitará a cidade mais famosa do mundo, Jerusalém. Futuramente, em algum lugar da História, o Unigênito de D’us será chamado Filho de Davi. Os maiores salmos fluirão de sua pena e de sua harpa. Irão chamá-lo rei, guerreiro, menestrel, amante poderoso e matador de gigantes. “O cara!”

Mas, por enquanto, ele sequer está incluído na reunião familiar. É apenas uma criança esquecida e descredenciada, realizando uma tarefa doméstica, sem banho, cheirando a pelo de carneiro, na zona rural de uma vila que não passa de um ponto no mapa.

O que levou D’us a escolhê-lo? É o queremos saber. É o que realmente queremos saber.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A CURVA DA VIDA

A Suely da Vila Braz é a ilustre melhor competência para analisar os enterros que acontecem por lá. Diga-se, bem e logo, que na Vila Braz o ponto alto da hierarquia de eventos sociais é, de longe, o enterro. Nada bate um enterro! Nada se iguala a terminar bem num bom e caprichado funeral!

Pois bem, a Suely avaliava o defunto pela virada na curva em frente ao Bar do Dito Vieira.
- Olha lá! Quando o defunto vira devagarzinho e sobe a derradeira rampa com o sino repicando dobradinho... é rico!
Se o finado fosse pobre – Jesus, Maria, José! – subia rápido, num tropel só, e em três badaladas o sino dava o recado.

Isso me fez pensar na vida, essa Maria-Fumaça lenta que passa depressa e quando menos se vê, passou. O que virá depois?

Mas o problema não é o que virá depois. O problema é o que vem antes.

Para depois da morte, deixei a questão resolvida anos atrás, quando rezei e pedi, enfático:
- Senhor, depois da morte: Surpreenda-me! Competência pra isso não lhe falta!

O problema não é o “depois”; é o que vem antes da morte. A grande preocupação de metade do mundo se resume em escarafunchar se há vida após a morte.

Alguém me esclareça, por favor, se isso já existe antes?

domingo, 5 de fevereiro de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 18

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Ninguém conseguiu entender melhor as questões que se ligam à perda absoluta que chamamos morte do que Gabriel Fauré, em seu Requiem. Tudo ali é densidade e leveza. Todo participa da vontade da vida e da voracidade da morte. Tudo encanta e apazigua. Desorienta e traz de volta à luz.

Foi assim que encontramos as duas irmãs: desorientadas no seu amor e na sua dor. Esperançosas em sua vontade de continuar insistindo na esperança. E é assim que vamos deixá-las, até que Lázaro nos lance luz nova na situação, e nos possa esclarecer o quê afinal aconteceu àquela insólita família de Betânia, tão encontrada que era impossível pensar no quanto estava perdida.

Da morte, Lázaro lançará luzes mais generosas do que suas irmãs, na vida.

É que Lázaro, naquele momento, é o único que não se confunde em seus sentimentos. É o único que não tem angústia. Todos estão confusos, menos ele. Todos angustiados, menos ele. Todos desencontrados, menos ele, que já se encontra perdido para sempre. Sem angústias, claro. Mas para onde nos leva a vida se a angústia que serve de agulha da bússola estiver quebrada. Lázaro dorme, disse Jesus. Lázaro nem tem sentimentos para confundi-lo. Não importa a morte de que ele se encontre morto, é só assim que ele prefere ser encontrado, e é só dessa forma que poderemos marcar encontro com ele.

Lázaro, nesse momento – e ainda que do túmulo – tem coisas a dizer.

Vira-e-mexe, alguma ilusão surge do nada, toma corpo, traveste-se de verdade e todo mundo corre atrás. Vivemos de ilusões. A mais popular e mercadológica ilusão do momento é a da motivação. A ilusão de que tudo pode dar certo, basta querer. E de que há respostas para tudo, basta procurar. E de que a dor, a morte e o luto não existem, basta se enganar. Os campeões de venda de auto-ajuda e os campeões do consumo psico-fármaco estão aí para não deixar a menor dúvida.

Mas será que é assim mesmo? Será que isso funciona, tão mecânica e magicamente, como espalham aos quatro ventos os gurus, nos templos e nos mercados?

Será?

Não é por estar motivados que fazemos escolhas certas. É o contrário, justamente, o contrário. É por termos feito as escolhas certas que ficamos motivados. A falta de motivação não é causa, é conseqüência. Acreditar que é possível ficar motivado com qualquer apetrecho para alcançar qualquer sucesso é de uma ingenuidade maçante. O que eu queria mesmo era escrever imbecilidade, mas achei que ingenuidade ficasse menos agressiva. Acreditar em receitas prontas é apenas mais uma forma de se iludir.

A pergunta, então, veste feito luva: qual teria sido a motivação da qual Lázaro se viu privado ou frustrado, e tanto, e tanto, que se deprimiu e pediu demissão da vida, naquilo em que mais havia apostado? Quais motivações teriam mantido aquele singular grupo familiar coeso, ainda que de forma estranha?

É que aquele pequeno grupo familiar de três irmãos, vivendo para si mesmo, regurgitando-se em si mesmo, retroalimentando-se de suas próprias fantasias, formava uma pequena clausura, trancada e auto-suficiente, dentro da grande comunidade. Onde estão os pais, avós, tios, sobrinhos, primos, cunhados, filhos, maridos e esposa de Marta, Maria e Lázaro?

(Preciso abrir parêntesis para informar a você que no ambiente judaico isso era abominavelmente impensável. Isso, digo, gente solteira: fechada em si mesma, não aberta à possibilidade mínima que se esperava de um judeu coerente que era gerar o Messias esperado. A solteirice era abominável para os judeus. Até Maria, a mãe de Jesus, entoa que D’us havia “olhado para a vergonha da sua serva” – Lc 1,48. Vergonha, no caso, era a esterilidade da vida celibatária. Isso, bem dito, para os judeus. Fecha.)

Mesmo no plano mítico, onde João faz as idéias transitarem, aquela continua sendo uma família exótica, sem ascendentes nem descendentes nem pretendentes. São apenas três irmãos, totalmente devotados a si mesmos. Num amor auto-devorador que, possivelmente, alcance as raias da exclusividade neurótica. Eles amavam tanto a si mesmos, e depois transferiram tanto esse amor para Jesus, que não lhes era possível amar outra coisa na vida. E isso é uma coisa, no mínimo, complicada, para quem quiser vivendo “neste” mundo. (Excluam-se dessas considerações os monges, as crianças, e os loucos, que, de longe, são os mais amados por D’us!)

sábado, 4 de fevereiro de 2012

DAVIII... IH! – 4

“Conheço o filho de Jessé de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


Um novilho segue-o com dificuldade. Belém está à sua frente. A ansiedade surge dentro dele. Fazendeiros no campo notam sua presença. Aqueles que conhecem seu rosto sussurram seu nome. Aqueles que ouvem o seu nome se viram para fitar seu rosto.

“É Samuel?”

O sacerdote escolhido de Deus. O filho de Ana. Seu mentor era Eli. Foi chamado por Deus. Quando os filhos de Eli se tornaram corruptos, Samuel deu um passo à frente. Quando Israel precisou de foco espiritual, Samuel o proveu. Quando Israel quis um rei, Samuel ungiu... um... rei: Saul. Mesmo contra sua vontade. Aliás, totalmente, contra usa vontade.

Agora, é esse nome que leva Samuel a gemer. Saul. O alto Saul. O forte Saul. Os israelitas queriam um rei, por isso temos um rei. Queriam um líder, por isso temos... um... miserável. Samuel olha de um lado para o outro, com medo de que pudesse ter dito em voz alta o que não pretendia senão pensar. E talvez nem isso.

Ninguém o ouve. Ele está seguro... tão seguro quanto se pode estar durante o reinado de um rei que se tornou paranóico. O coração de Saul está ficando mais duro, seus olhos ainda mais perturbados. Ele não é o rei que costuma ser. Aos olhos de Deus, nem rei ele é mais.

Daí, Javé diz para Samuel: “Até quando você irá se entristecer por causa de Saul? Eu o rejeitei como rei de Israel. Encha um chifre com óleo e vá a Belém; eu o enviarei a Jessé. Escolhi um de seus filhos para se tornar rei.” (1Sm 16,1)

E assim Samuel segue o caminho para Belém. Seu ventre remexe, seus pensamentos correm. É perigoso viver sem um líder em momentos explosivos.

Os mil anos AC foram tempos ruins para esse ajuntamento decadente de tribos chamado Israel. Josué e Moisés foram heróis que brilharam na história. Três séculos de inverno espiritual haviam congelado a fé do povo. Um escritor descreveu os dias entre Josué e Samuel com esta sucinta frase: “Naquela época não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo” ( Do Livro dos Juízes 21,25). A corrupção alimentava a divisão. A imoralidade gerava brutalidade. O povo exigiu um rei – mas, em vez de salvar o navio, Saul quase o fez afundar. O primeiro monarca de Israel revelou-se um psicótico, pra evitar dizer, psicopata.

E, então, surgiram os filisteus: cogumelo em madeira podre. Os filisteus eram um povo dado à guerra, sedento de sangue e fonte de gigantes, que monopolizava o ferro e o trabalho dos ferreiros. Eles eram pardos. Os hebreus eram rosados. Os filisteus construíam cidades; os hebreus amontoavam-se em tribos e tendas. Os filisteus faziam armas de ferro; os hebreus lutavam com fundas e flechas grosseiras. Os filisteus gritavam ameaças em carros reluzentes; os israelitas retaliavam com facas e ferramentas usadas em fazendas. Certa vez, numa batalha todo o exército hebreu só tinha duas espadas – uma para Saul e a outra para seu filho Jônatas (1Sm 13,22). Dá pra acreditar nisso!

A corrupção morava do lado de dentro. O perigo vinha de fora. Saul era fraco. A nação, mais fraca ainda. O que Samuel deveria ter feito? Sei lá. Só sei que, ouvindo D’us, ele fez o que ninguém imaginou. Enviou um convite surpresa para todos os que eram de Nenhum Lugar.

E D’us? Para onde enviou Samuel? Foi para Piripiri, no PI? Não. Enviou-o, então, para São Sebastião do Curralinho, em AL? Não, exatamente. Já sei. Deu pra Samuel uma passagem de ônibus para Brazópolis, MG? Bem que poderia ter sido! Tudo bem, ele não fez nada disso. Mas bem que poderia ter feito. A cidade Belém da época de Samuel (se é que aquilo era uma cidade) era parecida com Piripiri, São Sebastião do Curralinho, ou Brazópolis. Uai, será por isso que Brazópolis é a “Cidade Presépio”? Ara.

Belém era um lugar sossegado, esquecido no tempo, que descansava numa montanha no sopé de outras mais altas, a dez quilômetros ao sul de Jerusalém. Belém da Judéia ficava cerca de 600 metros acima do mar. De lá, se viam colinas suaves e verdes que aplainavam pastos desolados e irregulares. Rute conheceu essa aldeia. Jesus teria nascido lá, se a gente não soubesse que ele nasceu, realmente, foi em Nazaré da Galiléia: O Nazareno, Rei dos Judeus. Lembra?

Seja como for, a lenda é mais forte. O “fato” é que, mil anos antes de nascer um bebê numa manjedoura, Samuel entra na vila, puxando um novilho. Sua chegada faz com que os habitantes virem suas cabeças para vê-lo. Profetas não visitam Belém. Ele tinha vindo para castigar alguém ou para se esconder de alguém? Nem uma coisa nem outra – assegura o profeta de ombros caídos. Ele viera para sacrificar o animal para D’us e convida os anciãos, e Jessé e seus filhos, para se juntarem a ele.

Momento de perigo. O bicho ia pegar!

DAVIII... IH! – 3

“Conheço o filho de Jessé de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


Vamos desenrolar o rumo dessa história?

Saul recusa o chamado. Isso é muito comum na jornada do herói. Moisés havia feito a mesma coisa: tentou negociar com Javé. Não é de todo improvável pensar que, inconscientemente, Samuel quisesse um rei fraco, um rei que não conseguisse agregar o povo. Se o rei fosse fraco, estaria justificada a sua oposição à sagração de um rei. No correr da história, vai ficar cada vez mais claro que o que Samuel realmente quer é manter o poder. E ele vai fazer de tudo para dominar Saul.

Olha só! Samuel sempre foi um juiz bom e honesto. O problema, já sabemos, começou na velhice, com a nomeação dos filhos. O erro de Samuel foi não ter se reconhecido nas próprias crias. O fruto cai longe da árvore? Capaz! Samuel, homem bom e justo (como diria o Faustão: o filho da Ana, a inspiradora do Magnificat) não puxou à tona nem trouxe à consciência a sede de poder que havia dentro dele mesmo. Assim como não viu dentro de si, tampouco pode ver fora de si, a mesma sede de poder, reproduzida nos filhos corruptos.

Samuel ficou cego de inconsciência. E começou a criar problemas para Saul. E esses problemas se refletiram no povo.

Se você perguntasse a Samuel: Ô Samuel, por que você está fazendo isso? Com certeza, iria ouvir: Isso... o quê?

Agora, questione. Será que Samuel tinha noção do que estava fazendo? A resposta é: Claro que não! O problema dele foi ele não ter se conscientizado da caixa-preta do inconsciente. O material não consciente dominou Samuel. Domina a gente.

Joseph Campbell tem uma definição ótima para demônio. “Minha definição de demônio – disse ele – é a de um anjo que não foi reconhecido. É um poder seu, para o qual você negou expressão, e que, portanto, você reprime. Como toda energia reprimida, também essa, começa a crescer, a tornar-se perigosa e a dominar você.”

A gente se engana se pensa que tem o controle de tudo. Samuel também se enganou. Nunca será possível ter consciência do inconsciente. Se Samuel estivesse consciente da sede de poder, não faria nem o que fez nem como fez: Samuel fez Saul de gato e sapato!

A sagração de Saul foi uma palhaçada. Primeiro, Samuel tomou fôlego e sagrou. “Então Samuel pegou a vasilha de óleo, e o derramou sobre a cabeça de Saul. Depois o beijou e disse: Javé ungiu você para ser chefe sobre Israel, o povo dele. Você governará o povo e o libertará dos inimigos vizinhos.” (1Sm 10,1)

Em seguida, Samuel se esquiva. “Em Masfa, Samuel convocou o povo em torno e Javé, e falou aos israelitas: Assim diz Javé, o Deus de Israel: Eu tirei Israel do Egito, e libertei vocês do poder do Egito e do poder de todos os reinos que os oprimiam. Contudo, hoje vocês rejeitaram o Deus de vocês, que os salvou de todos os males e angústias. Vocês disseram: Não interessa, estabeleça um rei para nós! Agora, portanto, compareçam diante de Javé por tribos e clãs. (1Sm 10,17-19) Uai, que trem esquisito, Saul já não havia sido sagrado?

E aí, em seguida, e de novo, como se nao tivesse feiro antes, Samuel confirma. “Samuel convocou todas as tribos de Israel, e foi sorteada a tribo de Benjamim. Convocou então a tribo de Benjamim por clãs, e o clã de Metri foi sorteado. E Saul, filho de Cis, foi apontado no sorteio. Procuraram Saul, mas não o encontraram. Consultaram, então, a Javé: Saul está aqui? Javé respondeu: Ele está escondido entre as bagagens. Correram para buscá-lo, e ele apareceu no meio do povo: os outros lhe chegavam apenas até os ombros. Samuel disse a todo o povo: Estão vendo quem Javé escolheu? Não há, entre todo o povo, ninguém igual a ele. E todo o povo começou a aclamar, gritando: Viva o rei!

Samuel explicou ao povo o direito do rei... Os vadios, porém, comentaram: Como é que esse sujeito nos poderá salvar? E o desprezaram, e não lhe deram presentes. E Saul se calava.” (1Sm 10, 20-26)

Mas esse Samuel ta me parecendo mais falso do que nota de 8! Primeiro, sagrou Saul. Depois, criou caso. Por fim, se apresentou como a solução do problema. E já que Saul estava escondido entre as bagagens, seja o que D’us quiser! Tudo o que Samuel esperava era o dia em que ele pudesse reunir o povo e dizer: Eu não disse que isso não ia dar certo! Tsss!

É claro que a escolha de Saul não foi aceita por todo mundo. Ele era de uma tribo pequena e não havia mostrado nenhuma capacidade de liderança. Estava escondido entre as mochilas! No que é que pode dar isso? Nem os vadios o aceitam. Na verdade, nem Saul aceitou. Custou pra cair a ficha. Se você quiser pode ler 1Samuel 11, 1-13. Ta tudo lá!

Mas não é Saul que nos interessa. Quem nos interessa é Samuel. Há pessoas que crescem com o cargo. Saul foi uma delas. Saul cresceu. Para o desgosto de Samuel. Não é bom esquecer de que Samuel já havia puxado as palmas. Em todo o tempo de Saul, Samuel tenta jogadas teatrais para se manter no poder.

Isso é importantíssimo para que a gente possa voltar à história, encontrar Samuel se borrando de medo do paranóico Saul na estrada de Belém, indo sagrar rei um sujeito que nunca viu mais magro, de uma família que nunca viu mais gorda.

Voltemos agora à estrada estreita de Belém, perto demais de Jerusalém, encostada no poder, à sombra do perigo.

DAVIII... IH! - 2

“Conheço o filho de Jessé de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


Bem antes do ano 1000 AC, Israel era um lugar sossegaaado!

Aliás, Israel nem existia no mapa. Talvez, por isso fosse sossegado. A gente só tem sossego quando não se importa com aquilo que ditam que a gente seja. Por isso, Israel era um lugar sossegado.

Quando alguém dizia: Ei, Israel! Você é o povo escolhido por Deus! Israel levantava o polegar direito e dizia: Que bom!

Se alguém dizia: Ei, Israel! Você não vale nada! Israel virava as palmas das mãos pra cima e concordava: Que chato!

E ainda quando ou se alguém garantia: Israel, to contigo e não abro! – sabe o que Israel fazia? Seguia em frente, apascentando rebanhos, colhendo o pouco que conseguia plantar no meio das pedras, e adorando um D’us que teimava em afirmar que eles eram o povo eleito. Ainda que toda aparência contrária fosse... contrária.

Israel nem ligava. Apenas plantava, apascentava e esperava, esperava e apascentava e plantava. Aliás, numa coisa Israel se tornou expert: foi em esperar. Até hoje!

Pois é. Israel era um lugar sossegado. Havia pequenas tribos que se auto-geriam através de um governo central. Esse governo central das tribos era “gurusado” (do verbo “gurusar”) , por uma espécie de guru, o velho sacerdote de barba prateada que, a pouco, nós deixamos vagando num caminho estreito com um nó ainda mais estreito na garganta. Como ele anda devagar, não é preciso ter pressa. E nós podemos nos dar o luxo de voltar tempos atrás, quando Israel ainda sabia quem era, quando Israel ainda portava uma identidade, antes de ter perdido a paz.



Senta que lá vem a história.

Assim que escapou do Egito, Israel vagou pelo deserto. Depois disso, invadiu (não é de hoje!) ou retomou (depende do ponto de vista) a Palestina, e a partir daí o povo viveu uma espécie de época de ouro da história. (Os gregos tiveram a sua. E os maias, os incas, os celtas...) Naquela época, os hebreus não tinham um rei. Eram liderados por juízes. No tempo dos juízes, Javé era considerado o rei de Israel. Bonito isso, né!

As cidades viviam uma espécie de federação, num regime político de independência. Se enfrentassem algum perigo, podiam se unir num pacto de ajuda. Nem preciso dizer o quanto o povo hebreu vivia sujeito à pilhagem dos inimigos – os filisteus e os amalecitas – gente que havia sido escorraçada da terra quando Israel se re-implantou nela, o equivalente dos árabes de hoje. Pra dizer a verdade, Israel era só um minúsculo corredor de 300 por 45 km, (menor que o trecho SP-RJ), embutido entre as duas potências militares da época, o mar e o deserto. “Se correr o bicho...”

Os líderes eram chamados de juízes. Eles detinham o poder de dirimir as contendas entre os habitantes do lugar, e de trazer a palavra de Javé. Ah, e eles conversavam com D’us! E isso não devia ser pouca coisa! Samuel, que sucedeu a Eli, foi o último dos juízes. Mas na velhice, ele outorgou o poder aos dois filhos: Joel e Abias. E não é que eles foram pra lá de corruptos! (Novidade!)

Parece que a repetição é infalível. Porque a história dos filhos de Samuel apenas repetiu a história dos filhos de Eli, antecessor dele. Também os filhos de Eli haviam se entregue à corrupção. (Novidade, de novo!) Olha só!

Os filhos de Eli eram desonestos e não se preocupavam, nem com Javé, nem com as obrigações de sacerdotes para com o povo. Toda vez que alguém oferecia um sacrifício, enquanto se cozinhava a carne, o ajudante do sacerdote ia com um garfo de três dentes, enfiava-o no caldeirão ou na panela, no tacho ou na travessa, e tudo o que o garfo prendia pertencia ao sacerdote. Assim faziam com todos os israelitas que iam a Silo. Antes de queimar a gordura, o ajudante do sacerdote também dizia à pessoa que ia oferecer o sacrifício: Dê-me a carne, para que o sacerdote asse como quiser. Deve ser carne crua, porque ele não aceitará carne cozida. Se a pessoa respondia: Primeiro é preciso queimar a gordura, depois você poderá levar o que quiser – o ajudante dizia: Não. Ou você me dá a carne agora mesmo, ou a tomarei pela força. O pecado desses ajudantes era grave diante de Javé, porque desonravam a oferta feita a Javé.

Apesar de Eli já ser muito velho, estava sempre informado de tudo o que seus filhos faziam com todos os israelitas, e que eles se deitavam com as mulheres que prestavam serviço na entrada da tenda da reunião. Eli dizia a eles: Por que vocês fazem isso? As pessoas me contam como vocês se comportam mal. Não, meus filhos, o que me contam não é nada bom. Vocês estão escandalizando o povo de Javé. Se um homem ofende outro homem, Deus poderá intervir em favor dele. Mas se alguém peca contra Javé, quem poderá interceder por ele? Eles, porém, não deram ouvidos ao pai, porque Javé tinha decidido tirar-lhes a vida. (1Sm 2, 12-25)

Coisa antiga, né!

Acontece que Eli foi esperto e não deixou que os filhos o sucedessem. Nomeou Samuel no lugar. Samuel, por sua vez, era um pai-coruja, não via os defeitos dos filhos, nada fazia e deixava que eles pilhassem o povo a bel-prazer. O povo não gostou. Uai, quem gosta?

(Diretamente da Rádio Brazópolis!)

Quando já estava velho, Samuel estabeleceu os dois filhos seus como juízes em Israel. Seu primeiro filho se chamava Joel, e o segundo Abias. Os dois exerceram o cargo de juiz em Bersabéia. Eles, porém, não seguiram o exemplo do pai, deixando-se levar pela ganância: aceitaram suborno e distorceram o direito. (1Sm 8,1-4)

Vixi!

Foi aí que o povo começou a clamar por um rei: um governo central, que pudesse unir e proteger o povo contra os perigos externos e os internos. Na verdade, o povo estava dividido quanto à essa história de rei. Mas os desmandos dos filhos de Samuel eram tantos que eles não tiveram escolha. E foram falar com Samuel.

(Diretamente da Central de Notícias!)

Então os anciãos de Israel se reuniram e foram até Samuel, em Ramá. Disseram a Samuel: Veja. Você já está velho e seus filhos não seguem o seu exemplo. Por isso, escolha para nós um rei, para que ele nos governe, como acontece em todas as nações. Não agradou a Samuel a frase que eles disseram: Dê-nos um rei para que nos governe. Então Samuel invocou a
Javé. E Javé disse a Samuel: Atenda à voz do povo em tudo o que eles pedirem... Atenda o pedido deles. Contudo, mostre com clareza e explique para eles o direito do rei que reinará sobre eles. (1Sm 8, 1-8)

Ou seja, mostre a eles a barca furada, o péssimo negócio (esse, de rei) que eles estão pedindo. Mas adiantou? E adianta? Samuel resistiu até onde pode a essa idéia de plebiscito. Na verdade, o que ele não queria era ter os poderes diminuídos. E aí ele elaborou uma lista de inconvenientes, de tirar qualquer um da fila da votação.

Olha a tragédia!

Samuel transmitiu todas as palavras de Javé ao povo que lhe pedia um rei. E lhes disse: Este é o direito do rei que governará vocês: ele convocará os filhos de vocês para cuidar dos carros e cavalos dele, e a correr à frente do seu carro. Ele os obrigará a ararem a terra dele e fazerem a colheita para ele, a fabricarem para ele armas de guerra e as peças dos seus carros. As filhas de vocês serão convocadas para trabalhar como perfumistas, cozinheiras e padeiras. (kkk!) Ele tomará os campos, as vinhas e os melhores olivais de vocês, para dá-los aos ministros. Pegará a décima parte das plantações e vinhas de vocês, e as dará aos oficiais e ministros. Os melhores servos, os bois e jumentos de vocês, ele os tomará para que fiquem a serviço dele, e cobrará, como tributo, a décima parte dos rebanhos. E vocês mesmos serão transformados em escravos dele. Quando isso acontecer, vocês se queixarão do rei que escolheram. Nesse dia, porém, Javé não dará nenhuma resposta a vocês. (1Sm 8, 9-18)

Adiantou? Humm!

O povo não quis nem ouvir as explicações de Samuel, e disse: Não tem importância. Teremos um rei, e seremos também como as outras nações: nosso rei nos governará, irá à nossa frente para comandar nossas guerras. (1Sm 8, 21)

P. da vida, “Samuel ouviu tudo o que o povo disse e foi contar a Javé. E Javé respondeu: Se é isso que eles querem, mande ver! Estabeleça um rei sobre eles.” (1Sm 8, 22)

Como não teve outro jeito, Samuel se curvou à vontade do povo. E a escolha recaiu sobre Saul. Saul era a bola-cheia da vez, o herói do momento. Mas quem disse que Saul queria ser rei! Ou por humildade ou por falsa-humildade ou pelo mais descarado jogo político ou por tudo isso junto, Saul resistiu, bravamente.

DAVIII... IH! - 1

“Conheço o filho de Jessé de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


Nunca me canso de observar como Javé, o Senhor dos Exércitos, Deus de Israel e candidato a se tornar Senhor universal tem um mau gosto de assustar! É impressionante como as coisas acontecem na Bíblia! Observe. Adão fez aquela caca, e estamos pagando a conta até hoje. Caim: deu no que deu. Noé, de porre, nem viu que era com as próprias filhas que estava transando. Abraão vendeu Sara e (pior!) entregou. Moisés tinha distúrbio de personalidade. Josué matou homens, mulheres e crianças (crianças!) a fio de espada e achou tudo uma beleza. Saul era um paranóico perigoso que atentou contra a vida do próprio filho. E Davi...

Veja Davi!

A história de Davi não começa num campo de batalha com Golias. Ah, não mesmo! Ou não seria uma história da Bíblia. Na Bíblia, tudo é às avessas, sem pé nem cabeça, ao contrário das expectativas, fora de qualquer previsibilidade. Se você pretende abrir aquelas páginas para encontrar alguma coisa previsível, meu amigo, não abra! Aquilo lá é só pra quem gosta de altas emoções, rafting, descer corredeiras, subir em pedras sem apoio algum, pular de para-queda ou de asa delta, pela primeira vez, e sem ninguém segurando. Se você é daqueles que gostam da sua casinha confortável, da sua caminha limpinha, do seu banheiro cheiroso, então, errou de livro. Melhor pegar a última edição do Atlas de Geografia Mundial. Ou, quem sabe, um manual de psiquiatria farmacêutica cheio de bulas de remédio. Que tal o CID 10! Por que não um dicionário de termos técnicos de engenharia quântica ou de matemática pura? Interessantíssimo!

Mas não a Bíblia! Pelo amor de Deus! E não nas encostas das montanhas de Belém. Porque é lá que estamos. Nas encostas das montanhas de Israel.

Portanto, esqueça tudo o que você já viu em filmes. Sobretudo, se você azia acompanhar de um saco de pipocas com queijo tamanho grande e mais meio litro de refrigerante e mais qualquer porcaria dessas que faz a gente sair da sala de cinema com vontade de vomitar. Esqueça.

Ah! Esqueça também a belíssima estátua de Davi de Michelangelo que enfeita Florença. O jovem de 19 anos que serviu de modelo era amante do escultor e não tinha nada a ver com Davi. Davi era um rei tribal, tosco, sem nenhuma frescura e... Deixa pra lá que isso daqui não é fofoca de programa de TV.

Então, como é mesmo? É sobre Davi que vamos conversar? Então, esqueça tudo o que você já viu. Porque a partir de agora estamos nas montanhas de Belém, na companhia de um velho sacerdote de barba prateada, que anda devagar por um caminho estreito. Uma, porque o caminho é estreito, mesmo. Outra, porque ele está estrangulado de angústia e medo. (Samuel.) Se Saul souber...

É. Porque a coisa já começou torta.

“Javé disse a Samuel: Até quando você vai ficar lamentando Saul? Fui eu mesmo que o rejeitei como rei de Israel. Encha a vasilha de óleo. Ordeno que você vá ter com a família de Jessé, o de Belém, porque eu escolhi um rei entre os filhos dele. Samuel replicou: Como posso ir? Saul me matará se ficar sabendo! Javé, porém, disse: Leve um bezerro, e diga que foi fazer um sacrifício para Javé. Convide Jessé para o sacrifício e eu mostrarei o que você deverá fazer. Você ungirá para mim aquele que eu apontar.” (1Sm 16,1-3).

Quer dizer que... Olha aí, gente, Javé dando um jeitinho brasileiro! O Ministério da Saúde adverte: Cuidado, que Deus é brasileiro!

Mas peraí. Primeiro, o convite. Você quer me acompanhar um pouquinho numa trajetória meio maluca com esse mesmo velho sacerdote de barba cor-de-prata, que agora anda devagar por um caminho estreito? Pode? Então, se prepare, porque a coisa vai longe!

Se você vem me acompanhando em passo de enterro atrás de Lázaro, prepare-se porque atrás de Davi você vai correr. Porque Davi é pura adrenalina. Davi é um sobe-e-desce de montanha russa imprópria para estômagos fracos e labirintites frouxas. Davi é... Daviii... Ih!

Em termos de história bíblica, Davi é o segundo figurão de Israel, perdendo apenas para Moisés – claro! – que ocupa um lugar “hors concours” como pai-fundador do povo. Em termos de história mundial, Davi é o equivalente judeu do Alexandre dos gregos, com direito ao seu Heféstion Amintoros e o bafão geral. Em termos de Hollywood, não entendo como ainda não fizeram uma superprodução sobre ele. Em termos de ficção, são 46 capítulos de puro protagonismo espalhados em três livros do Canon Hebraico. Davi só perde para o “Cavalo de Tróia 1,2,3,4,5,6,7,8,9”... que versa justamente sobre quem? Sobre o “Filho de Davi”. Sim. Porque Jesus não é o Filho de Moisés, é o Filho de Davi. E Hosana hei!

Então, senhoras e senhoras, ladies and gentlemen, the Oscar goes to...

Davi!

E aproveito para dedicar essa série à lembrança dos que não tem nome e à memória dos que não tem memória. E, sobretudo, aos nossos pais. Que não tiveram nem uma coisa nem outra. Mas foram tanto!

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 17

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Um paciente sempre me faz percorrer três caminhos. No primeiro, eu sinto a dor dele. No segundo, lhe digo: Agora, chega, sai dessa, rapaz! No terceiro, eu me calo: Então, ta. Se você quer ficar nesse caminho, pode. Mas que uma coisa fique clara: tudo o que a gente suporta, de alguma forma, a gente gosta.

Que caminho Jesus mostrou a Marta? O texto não diz. Mas sabemos que depois daquela conversa entrecortada, Marta volta para casa, vai ao encontro de Maria e lhe diz, em segredo: “O Mestre está aí, e te chama”. O que mais chama a atenção é o segredo com que a mensagem é passada.

É o começo das mutações em Maria. Mas é também o começo das mutações em Marta. Ter ido ao encontro de Maria, indicar a ela a direção do Mestre que a chama, significou para Marta não guardá-lo exclusivamente para si, não retê-lo, não privá-lo dos outros nem os outros dele. O Mestre não pertencia a ela nem a Maria nem a Lázaro. O Mestre, simplesmente, “não pertencia”.

Por ter escolhido a melhor parte, é provável que Maria já soubesse disso. Por isso, pôde ficar onde deveria, para ocupar o lugar que era só dela e de nenhum outro. Se ela, agora, se encontrava imobilizada pela dor, e se esse era o seu lugar, era ali que ela devia ficar, para sentir o que está acontecendo, passar por aquele processo e elaborar a frustração do momento, sem sair correndo, desatinada, gritando uma dor que ainda não se permitiu sentir por inteira. O momento é de luto. O que Maria faz, nesse momento, é tudo o que precisa ser feito e nada mais: passar pelo luto.

Ao contrário do que se possa imaginar, Maria não é nem se faz de vítima. Se o sofrimento abate, ela sofre. Se a dor verga, ela se verga. Não fica contando com o consolo dos judeus que a foram “consolar”. Até porque ela sabe que não é bem consolo o que eles lhe têm a oferecer. Maria se permite sofrer. E por isso dá até a impressão de se ter trancado em sua via dolorosa. Mas não é verdade! Maria só se fecha em si para poder sofrer o que é preciso, sentir o sentimento necessário e aprender a se conhecer onde geralmente todos os outros se escondem e escapam de si mesmos. Iludir-se é eludir-se.

O mestre está aí e te chama”.

A voz do segredo a tira do imobilismo de gesso da dor. Maria corre e se prostra. Prostração que é adoração – proschynesis – adoração, em grego.
Mas podemos também enxergar ali uma outra semântica do estado em que ela se encontra. Ela se prostra porque está prostrada. Também porque está prostrada. Lázaro cansou-se, desiludiu-se, frustrou-se, desanimou, morreu. Entregou-se à banalização da vida. Tornaram-se apenas mais um. E logo ele, Lázaro, o amigo do amigo! Não era para ser “apenas mais um”! Ninguém é amado para ser apenas mais um. Ninguém que é amado consegue ser apenas mais um. Lázaro foi a honrosa exceção de uma regra ainda mais honrosa.

Quando Maria se dá conta disso, à beira de onde Lázaro jaz, ela se prostra e, de certa forma, e por que não, imita Lázaro, e morre um pouco, também. E já que repete Lázaro, repete Marta também: “Se o Senhor estivesse aqui, meu irmão não teria morrido.” O sinal de que Maria morria um pouco da mesma morte de Lázaro e da mesma mortificação interna de Marta é o fato de ela repetir a mesma frase de Marta, e por pura repetição. Aquela frase não cabe na sua boca nem nos seus sentimentos. De repente, ela abandona o título íntimo de “Mestre” – Didáskalos – e o chama de “Senhor” – Kyrios – título solene e formal. Esse é o sinal do distanciamento que nesse momento denuncia o quanto Maria estava morrendo também.

Mas a melhor parte dela permanece sadia. Ela chora. Deixa os sentimentos fluírem. E Jesus pôde constatar aquele choro de dor. Ao contrário de Marta, que interroga a dor, Maria sente a dor. Marta projeta a dor para o mundo externo e sai acusando o primeiro que encontra de não ter estado ali, na hora que ela, e só ela, designara como certa. Maria, não! Maria introjeta a dor, viaja para o seu mundo interno, que é a pátria da dor, onde ela possa ser sentida, com certidão de nascimento.

Embora repita a frase de Marta, aquela frase não é dela, não combina com ela, não faz parte do seu mundo, não cabe no seu vocabulário. E por uma razão bastante simples: o mundo de Maria não é construído de projeções. Diferente de Marta, Maria pôde reconhecer o que é seu, para si mesma, e reter consigo o que lhe pertencia, e que só a ela cabia viver. Maria, a irmã mais nova de Lázaro, é uma raridade que compreendeu, por conta e risco, que o desejo, seja qual seja, não exige realização, mas reconhecimento.

Ao reconhecer o desejo que a sustenta – Marta lhe diz em segredo: O mestre está aí e te chama – e o segredo que a anima, Maria vive.

SAMUEL, SAMUEL!

A palavra “vocação” significa chamado. O conceito “vocação” é um dos fenômenos humanos de mais difícil apreensão. Tanto que toda vez que lidamos com esse fenômeno, a palavra precisa ser escrita entre aspas: “vocação”. Assim. É que a psicologia descarta a idéia de vocação como sendo um “chamado”. A menos, é claro, que se possa dizer que a voz do chamado – aquela que o sujeito ouviu – chegou até ele por meio de todas as contingências e vicissitudes do ambiente. E que ele só conseguiu ouvir essa “voz diferente” em meio a todos os ruídos do dia-a-dia e apesar deles, porque algum canal especial foi construído. “Pamonha, pamonha, pamonha, pamonha de Piracicaba!” Ruído, ruído, ruído... É o que mais a vida tem. E a menos que o sujeito consiga ouvir essa “voz diferente” no meio do barulhão, de outra forma não sei de onde e como ela poderá ser ouvida. A psicologia desconhece que possa haver uma voz de não-sei-onde... chamando-não-sei-quem... pra-não-sei-o-quê. Mas o fato inquestionável é que tem quem ouça. Se tiver quem ouça, nem que seja alucinatoriamente, a voz existe.

Mas, então, que voz é essa? Existe? Não existe? Vem de onde? Como consegue ser ouvida? A quem se endereça e a quem pode interessar?

Você já sabe que eu não sei, né! Eu adoro levantar questões para as quais eu mesmo procuro a resposta. Fica mais honesto assim, do que sair por aí, sem procuração alguma, oferecendo saídas até para quem não quis sequer entrar.

É que meu caso é grave e requer internação. Fui acostumado desde a pré-infância do seminário a entender a “vocação” como um chamado: um “oi!”, um “ó de casa!”. Portanto, não é fácil mudar o rumo da prosa, nessa altura dos acontecidos, e é com certa restrição que me proponho a entender que a voz só exista dentro de quem a ouve e só ganha existência quando alguém se dispõe a ouvir, e só existe para quem se disponha a ouvi-la. Mas, então, existe ou não existe? Existe, uai! Tanto que é ouvida. Acolhida. Tanto que modifica. Ratifica. Retifica. Remove. Reitera. Revigora. Redunda. Renasce.

A questão não é se existe. É como existe.

No contexto religioso, quem chama é Deus. E chama a quem ele quer. Mas como assim? Como saber (do tipo: ter certeza) que é Deus mesmo que chama, em vez da minha imaginação, minhas circunstâncias, minhas necessidades, e a enorme capacidade que tenho de me esconder atrás de mim mesmo para não questionar... a mim mesmo?

A força (e a fraqueza) de toda religião é que ela trabalha com pensamentos essencialistas: é porque é, e acabou. Era a mesma coisa de tomar Emulsão Scott (óleo de fígado de bacalhau, lembra?) na infância: fecha o olho e abre a boca. A falha geológico-mental desse tipo de pensamento é que ele só responde a quem quer que ele corresponda. A resposta está pronta. Só precisa acreditar nela! Sem a amarração inimaginável da crença, e na ausência de um andaime sustentável, esse pensamento desaba que nem arquibancada de show montada às pressas. Para quem quer pensar, o andaime do pensamento precisa ser firme. Pode ser até de bambu: leve, porém, resistente, e, sobretudo, bem amarrado.

É aí que ta! Ao pensamento que rege e mantém o arcabouço religioso falta a leveza e a resistência do bambu. Sem falar da amarração. Ele acaba sendo pesado demais, custoso demais, espaçoso demais, ocioso demais. Acreditar, pura e simplesmente, no fato de que um sujeito foi diretamente chamado por Deus, confere a essa criatura um poder roubado ao Criador. Depois, quando esse poder fica pesado demais, custoso demais, espaçoso demais, ocioso demais, não adianta reclamar do leite derramado. Conferiram ao sujeito prerrogativas e ele as usou. Sorte dele!

Não é difícil entender como a engrenagem funciona. Mas é preciso voltar ao que foi esquecido antes de ter sido conhecido. Por exemplo, à vocação de Samuel. Quem quiser, pode verificar a La Carte, no Primeiro Livro de Samuel capítulo 3. Desde já vou dizendo que Samuel significa “ouvir Deus”.

“Samuel, Samuel!”

Pois é. Quem a voz chama é ainda um menino, que dorme, à noite, depois de ter brincado o dia todo: bolinha de gude, futebol, videogame... E o menino, que se chama justamente Samuel, não faz a menor idéia de quem o está importunando no meio da noite. Afinal, naqueles tempos, noite ainda era feita para dormir.

Se você ler direito, vai perceber, aí, a descrição de uma vocação em “câmera rápida”. Já que a gente sabe o que é câmera lenta, pode imaginar o que seja câmera rápida. Ou seja, um relato apresentado de uma maneira muito acelerada, onde os acontecimentos são apertados dentro de um pequeno cubículo de tempo. Com Samuel foi assim. Três vezes na mesma noite o menino escutou uma voz desconhecida chamando seu nome: “Samuel, Samuel!” Só na última vez, e com a ajuda do sacerdote Eli – personal trainer de profetas – foi que ele pode perceber que quem o chamava não era nenhum ninguém, mas um baita alguém.

Os relatos da Bíblia são assim. Eles contam um fato rapidinho, como se tudo tivesse acontecido num estalar de dedos. Isso não deixa de ser perigoso! Acaba levando muita gente incauta a querer que as coisas se desenrolem num estalar de dedos. Na verdade, caso você não sabia ouso informar-lhe que não existe “estalo-de-dedo” para as realidades humanas. As ocorrências humanas apenas conseguem ser percebidas bem depois, e bota bem depois nisso! Nada acontece num passe de mágica. Tudo leva anos e anos em compasso de espera, à espera do que a espera consiga elaborar. Sim. Porque só a espera pode fazer o que a magia não alcança. Porque nem existe, né!

Para perceber em riqueza de detalhes aquilo que é descrito em câmera rápida, a gente precisa desacelerar o compasso, de presto para andante. Mas, aí, quando tiramos a pressa, o que fica? Fica a leveza. Porque a pressa não só é inimiga da perfeição, mas também da leveza.

Não me canso de repetir o que foi carimbado pela guru-master (só conto pra quem perguntar) a respeito do texto bíblico. A Bíblia é um texto em cartaz há 4000 anos e nenhum texto fica em cartaz tanto tempo se não tiver nada a acrescentar. O que me entristece é que a quirera-miúda carregada de piadinhas toscas, espalhada dos púlpitos a guisa de tornar o texto bíblico “interessante”, não faça nada mais do que torná-lo irrelevante, decadente, obtuso e obsoleto. Evito dizer frívolo e leviano. E é um texto em cartaz há 4000 anos, lembre-se! Lembre isso aos “propagandistas” também.

Na história de Samuel, a gente pode ver que geralmente, um chamado não é escutado de primeira. A voz fala, mas eles não escutam, não entendem, não concordam, não discernem, não distinguem entre uma voz e outra. Aliás, nem mesmo precisava ser uma voz. Aliás, sequer era uma voz. Podia ser a experiência de um pôr-do-sol estupendo, de uma noite de lua cheia e estrelada, a sensação inesperada de uma intensa alegria sem estímulo concreto, a intuição de uma grandeza sem fim, uma perda incontornável, a convicção de que a vida não é banal... Tudo isso é “voz”. Tudo isso pode ser “ouvido”. Nem carece ser especial, muito menos ser bancado, pra ouvir essa “voz”.

Quando eu era criança nas Minas, nenhum vereador ganhava pelo trabalho que exercia em beneficio da coletividade. O único bônus residia no fato de que, no final da vida, o tempo em que o sujeito serviu ao bem comum podia ser acrescentado à merreca da aposentadoria oficial. Mas o grande ganho era mesmo o serviço prestado. Esse, não tinha preço.

Nos tempos de Samuel, ser chamado ao bem-comum de Israel também não tinha preço. Tinha encargos, mas nenhum cargo. Naquela época, ministério ainda não vinha, mas já tinha o sentido de ministerium e ministrare, do latim, que significam serviço e servir. Mais tarde, a vocação desses servidores, servos dos servos, foi se revestindo, paulatinamente, de tanto frufru, que se descaracterizou. O pálido reflexo do que era, do que devia ser, perdeu-se no meio das côngruas e garantias oficiais de uma profissão não-oficial.

Vocação, como aprendi, era escutar o próprio nome, a partir de si, do lado de dentro, e responder em primeira pessoa: “Samuel, Samuel!” A resposta era: To nessa!

Não há senão uma única palavra que nos comove totalmente, que consegue unificar toda a nossa atenção, mobilizar o centro do ser numa única direção. Essa palavra é o nosso nome. O fato de o texto apresentar Deus chamando Samuel pelo nome é altamente significativo. O fato de ele ter sido chamado três vezes na mesma noite (câmera rápida, lembra?) não significa que o isso se deu às 23 horas, às 2 e às 4 da manhã. Quantos anos tinha Samuel quando escutou pela primeira vez aquela “inexplicável voz”? E quantos anos levou para escutá-la em sua terceira e decisiva versão? 20, 30, 50 anos? Por sorte, o personal trainer Eli não o abandonou em sua desordenada intuição de escutar vozes.

“Samuel, Samuel!”

O texto bíblico não conta o que foi dito a Samuel naquela noite. Caso realmente Deus fale, nenhum texto escrito será capaz de transmitir sua voz e o que ele pretende quando fala a um coração humano. O que sabemos é que desde aquele momento, Samuel não foi mais apenas Samuel. Não foi cuidar de sua vida, não foi comprar e vender, não foi se dedicar de corpo-e-alma a cuidar de si mesmo e de seus negócios. Não que isso seja errado. Ô! Errado, errado, não é. É sempre a ética que traça o caminho.

Mas o fato é que a partir daquele momento, do evento daquele “Samuel, Samuel!”, o menino que cresceu já era outro. A noite passou. E com ela todos os medos e incertezas. Samuel ungiu Saul rei de Israel. E quando Saul pisou na bola e feio, Samuel voltou atrás e ungiu Davi rei de Israel. E morreu antes de ver Davi pisando na bola, e feio, também. Samuel não suportava ver gente ungida pisando na jaca!

Quando morreu, a Escritura Hebraica fez o necrológio mais econômico da História em apenas duas palavras: “Samuel morreu”. Não parece muito para quem foi grande. Talvez também nisso ele fosse grande: economizou discursos desnecessários de despedida, daqueles em que a gente escuta e chora e sai dali e se encontra na padaria... para um chops.

Por que Samuel? Sim. Ia esquecendo. Por que Samuel? Talvez porque ele seja o protótipo de alguém que ouve o que não foi dito e escuta a partir de dentro. Talvez porque ele tenha experimentado uma espécie de integridade única que o fez merecedor de escutar a voz (“Samuel” = ouvir Deus, lembra?). Talvez porque naquela leva de gente que engrossa o álbum de fotos de família chamado Bíblia, ele tenha sido o mais honesto. Abraão vendeu Sara, Jacó traiu Esaú, Moisés era político (!), Saul, um paranóico bravo, e Davi, ah meu Deus!, Davi: prefiro não comentar! Samuel foi honesto até a raiz da árvore. Não há como ouvir voz alguma se não houver honestidade. Esse é o quesito sine qua non do assim chamado fenômeno humano da “vocação”. Sempre entre aspas, ta.

Se eu não consegui expressar direito o que seja “vocação”, talvez consiga mostrar.

Bem no centro do campus da Universidade de Harvard, existe um edifício ostensivamente europeu, estilo século XVII. É um museu da cultura alemã: o Busch-Reisinger Museum. Ele possui uma coleção esplêndida de arte clássica alemã. Mas o diamante da coroa, sem dúvida, é o órgão de tubos mundialmente conhecido. Toda quarta-feira, ao meio dia, há um concerto com entrada franca.

No entanto, o que mais chama a atenção naquilo tudo é a inscrição no portal do prédio, no original alemão, de Schiller: “Es ist der Geist, der sich den Körper baut”. (Tecla SAP) É O ESPÍRITO QUE CONSTRÓI UM CORPO PARA SI. Talvez seja essa a frase que mais de perto toque a essência do fenômeno da “vocação”, esse sentir vozes na ausência de um delírio. Ou pelo menos dentro de um delírio retocado de beleza humanizada.

Talvez seja por isso que Thomas Merton, monge, disse que “Até a idade de quarenta anos, cada um de nós terá a cara que merece”. Porque nossa cara não nos acontece; é construída dia após dia pela nossa história e pelo espírito dentro de nós. A tal da “vocação”, também.


Devo algumas idéias a Dom Bernardo Bonowitz OCSO – um cara muito bom, mas que corre um risco danado de ficar famoso, e aí se perder.