sábado, 11 de fevereiro de 2012

DAVIII... IH! – 6

“Conheço o filho de Jessé, de Belém. Ele sabe tocar e é valente guerreiro. Além disso, fala bem, é de bela aparência e D’us está com ele” (1Sm 16,18)


O que levou o Eterno a escolhê-lo? É o queremos saber. É só o que realmente interessa saber. Afinal, andamos também nós pelo pasto de Davi, o pasto da exclusão.

O pasto da exclusão? É. Gostaria de incluir uma vinheta nessa “saga do Davi”. Ela poderá parecer inapropriada uns, apropriada a outros, enfim, que seja. Não resisti. E vou colocá-la.



Já nos cansamos do sistema superficial da sociedade, de sermos classificados de acordo com os centímetros da cintura, os metros quadrados do apartamento, a cor da pele, o modelo do carro, a grife das roupas, o tamanho do escritório, a presença de diplomas na parede, a ausência de espinhas na cara.

Chega desses joguinhos!

O trabalho duro é ignorado. A devoção não compensa. O chefe prefere a segmentação ao caráter. O professor prefere os mimados no lugar dos preparados. Os pais exibem os filhos preferidos e deixam os nanicos lá fora no campo. Há sempre um Golias da exclusão!

“O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Sm 16,7). Essa é a vinheta.

Tais palavras brotaram, lá atrás, de um sentimento de fazer parte dos haqqatons da sociedade, os que se sentem como peixes fora d’água, os excluídos. O Eterno-que-não-sei-como-se-chama-nem-como-é tem um jeito especial de fazer com que todos eles caibam nalgum propósito maior. Parece que é assim!

Moisés fugiu da justiça; o Eterno-que-não-sei-como-se-chama-nem-como-é fez bom uso disso. Jonas fugiu de Nínive; o Eterno... fez bom uso disso. Raabe dirigia um bordel, Sansão correu para os braços da mulher errada, Jacó correu em círculos, Elias correu para as montanhas, Sara perdeu a esperança, Ló andou com a multidão errada... O Eterno... (bem, você já sabe o resto).

E Davi?

O Eterno-que-não-sei-como-se-chama-nem-como-é viu um adolescente em Belém, no meio do mato, entre o tédio e o anonimato, e, com a voz que ninguém sabe exprimir e um ouvido para vozes, chamou: Davi! Entre. Alguém quer vê-lo. Olhos humanos (retina, córnea, humor vítreo, íris, pupila, cristalino...) viram um adolescente magricelo entrar na casa de Jesse, cheirando a ovelha, com a urgência urgentíssima de um banho, como se dizia em Minas, geral. “Javé disse: Levante-se e unja o rapaz. Porque é esse.” (1Sm 16,12).

Sem derrapar nas pieguices do missal Goffiné, o que foi que D’us viu ali? Terá sido o que ninguém vê? E o que é isso que ninguém vê? Dizer que D’us viu um coração que o buscava é forçar a amizade. Nessa altura – e não sei se isso vai mudar muito na história dele – Davi não tinha nem sustança nem aparelhamento mental para esboçar qualquer forma de atitude mística que esbarrasse em qualquer busca pelo Sublime. Ara, ara, ara! Vem cá! Davi era só um moleque haqqaton. Há certas leituras da Bíblia que transformam personagens comuns em heróis míticos, como foram os da Grécia clássica. Menos. Ta!

Aquilo ali era tudo gente e igual a todo mundo. Davi, os sete irmãos preteridos, Jesse, Samuel e, por que não, o paranóico do Saul. Tudo gente! E gente é um trem que cabe entre a máquina, que nunca deixa de responder ao toque, e o animal pet, que nunca, jamais frustra o dono. Gente, geralmente, não responde, frustra, desanima, faz qualquer um passar a mão na testa e exclamar aos Céus: Mas onde é que eu tava com a cabeça! Quem prefere as máquinas, jamais ficará ao léu. Quem escolhe os bichos, jamais clamará ao Céu. Mas, vem cá: não seriam essas duas formas estilizadas e não menos sofridas da mesma antiga solidão?

Não se assuste se as cores desse quadro fiquem humanas demais. Elas são assim mesmo. Foram feitas assim, e foram feitas para serem assim.

Durante os primeiros mil anos de cristianismo, numa era que se chamou Patrística, porque foi dominada pelo pensamento dos Padres da Igreja, houve a tentativa (quase insana) de colorir tudo o que tinha vindo antes com as cores do cristianismo. No desenrolar da História aconteceu a mesma coisa com os vitoriosos: todo partido ou revolução fizeram o mesmo. A História foi escrita pelo sobrevivente. A fim de elevar os personagens da Bíblia Hebraica à condição de merecedores do status de predecessores do Messias, eles passaram por uma clínica de estética: foram embelezados, purificados, idealizados. Demãos e mais demãos de pintura foram dadas sobre o quadro original para transformá-lo numa obra aceitável ao olhar do censor. Pena que se perdeu o quadro original! Foi pelo ralo a beleza que nele havia.

A vinheta da biografia de Davi é esta: “O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Sm 16,7).

E o coração que o Senhor vê, subentenda-se, não é coração segundo os moldes deste ou daquele pensamento acomodatício, conformista, procustiano. Não. O que o Senhor mais vê, mais entende e reconhece de si mesmo no coração do homem é a sua rebeldia. “Sua”, do homem ou de D’us? Não sei. O pronome está aí para ficar assim. Só o que sei é que enquanto o homem for rebelde a tudo o que esperarem dele, enquanto ele não couber, simplesmente, em moldes pré-fabricados, enquanto ele não aceitar, sem mais, que lhe digam do quê ele deve gostar ou não gostar, engolir ou vomitar, enquanto houver dessa rebeldia no coração humano, será aí, então, nesse ponto, que o Criador se reconhecerá na obra criada. Nossa rebeldia é a assinatura de D’us.

Davi que o diga!

Essa era a vinheta.

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