sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 17

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Um paciente sempre me faz percorrer três caminhos. No primeiro, eu sinto a dor dele. No segundo, lhe digo: Agora, chega, sai dessa, rapaz! No terceiro, eu me calo: Então, ta. Se você quer ficar nesse caminho, pode. Mas que uma coisa fique clara: tudo o que a gente suporta, de alguma forma, a gente gosta.

Que caminho Jesus mostrou a Marta? O texto não diz. Mas sabemos que depois daquela conversa entrecortada, Marta volta para casa, vai ao encontro de Maria e lhe diz, em segredo: “O Mestre está aí, e te chama”. O que mais chama a atenção é o segredo com que a mensagem é passada.

É o começo das mutações em Maria. Mas é também o começo das mutações em Marta. Ter ido ao encontro de Maria, indicar a ela a direção do Mestre que a chama, significou para Marta não guardá-lo exclusivamente para si, não retê-lo, não privá-lo dos outros nem os outros dele. O Mestre não pertencia a ela nem a Maria nem a Lázaro. O Mestre, simplesmente, “não pertencia”.

Por ter escolhido a melhor parte, é provável que Maria já soubesse disso. Por isso, pôde ficar onde deveria, para ocupar o lugar que era só dela e de nenhum outro. Se ela, agora, se encontrava imobilizada pela dor, e se esse era o seu lugar, era ali que ela devia ficar, para sentir o que está acontecendo, passar por aquele processo e elaborar a frustração do momento, sem sair correndo, desatinada, gritando uma dor que ainda não se permitiu sentir por inteira. O momento é de luto. O que Maria faz, nesse momento, é tudo o que precisa ser feito e nada mais: passar pelo luto.

Ao contrário do que se possa imaginar, Maria não é nem se faz de vítima. Se o sofrimento abate, ela sofre. Se a dor verga, ela se verga. Não fica contando com o consolo dos judeus que a foram “consolar”. Até porque ela sabe que não é bem consolo o que eles lhe têm a oferecer. Maria se permite sofrer. E por isso dá até a impressão de se ter trancado em sua via dolorosa. Mas não é verdade! Maria só se fecha em si para poder sofrer o que é preciso, sentir o sentimento necessário e aprender a se conhecer onde geralmente todos os outros se escondem e escapam de si mesmos. Iludir-se é eludir-se.

O mestre está aí e te chama”.

A voz do segredo a tira do imobilismo de gesso da dor. Maria corre e se prostra. Prostração que é adoração – proschynesis – adoração, em grego.
Mas podemos também enxergar ali uma outra semântica do estado em que ela se encontra. Ela se prostra porque está prostrada. Também porque está prostrada. Lázaro cansou-se, desiludiu-se, frustrou-se, desanimou, morreu. Entregou-se à banalização da vida. Tornaram-se apenas mais um. E logo ele, Lázaro, o amigo do amigo! Não era para ser “apenas mais um”! Ninguém é amado para ser apenas mais um. Ninguém que é amado consegue ser apenas mais um. Lázaro foi a honrosa exceção de uma regra ainda mais honrosa.

Quando Maria se dá conta disso, à beira de onde Lázaro jaz, ela se prostra e, de certa forma, e por que não, imita Lázaro, e morre um pouco, também. E já que repete Lázaro, repete Marta também: “Se o Senhor estivesse aqui, meu irmão não teria morrido.” O sinal de que Maria morria um pouco da mesma morte de Lázaro e da mesma mortificação interna de Marta é o fato de ela repetir a mesma frase de Marta, e por pura repetição. Aquela frase não cabe na sua boca nem nos seus sentimentos. De repente, ela abandona o título íntimo de “Mestre” – Didáskalos – e o chama de “Senhor” – Kyrios – título solene e formal. Esse é o sinal do distanciamento que nesse momento denuncia o quanto Maria estava morrendo também.

Mas a melhor parte dela permanece sadia. Ela chora. Deixa os sentimentos fluírem. E Jesus pôde constatar aquele choro de dor. Ao contrário de Marta, que interroga a dor, Maria sente a dor. Marta projeta a dor para o mundo externo e sai acusando o primeiro que encontra de não ter estado ali, na hora que ela, e só ela, designara como certa. Maria, não! Maria introjeta a dor, viaja para o seu mundo interno, que é a pátria da dor, onde ela possa ser sentida, com certidão de nascimento.

Embora repita a frase de Marta, aquela frase não é dela, não combina com ela, não faz parte do seu mundo, não cabe no seu vocabulário. E por uma razão bastante simples: o mundo de Maria não é construído de projeções. Diferente de Marta, Maria pôde reconhecer o que é seu, para si mesma, e reter consigo o que lhe pertencia, e que só a ela cabia viver. Maria, a irmã mais nova de Lázaro, é uma raridade que compreendeu, por conta e risco, que o desejo, seja qual seja, não exige realização, mas reconhecimento.

Ao reconhecer o desejo que a sustenta – Marta lhe diz em segredo: O mestre está aí e te chama – e o segredo que a anima, Maria vive.

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