domingo, 26 de fevereiro de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 20

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Mas, o que aconteceu, afinal, com Lázaro? Muitas coisas podem ter acontecido. Nunca se pode analisar todas as possibilidades num golpe de vista só. Uma delas, no entanto, cabe bem dentro da pretensão deste texto.

Lázaro se tornou um infans, um infantil.

Infante é quem não tem voz – infans, do latim – aquele que se falar ninguém ouve. (Quem, ainda, se lembra do Infante Dom Henrique?) Na cena do capítulo 11, Lázaro entra mudo e sai calado. No capítulo 12, seguinte a esse, há uma ceia mortuária, quando só se conta que Lázaro estava presente. Ele não fala. Aliás, nunca falou. Suas irmãs é que falaram por ele, disseram o que precisa ser dito e o que não adiantava mais dizer. Ele mesmo, como era de se esperar de um infante, não decide nada a respeito de si mesmo. Lázaro é “sem fala”, como uma criança. Se bem que as crianças de hoje...

Em vista disso, Lázaro cai numa profunda melancolia, uma quase morte, pela decepção consigo mesmo e a frustração do desejo que o embalava de receber de Jesus o único alimento de que necessitava. Se for possível dizer que Lázaro morreu, devemos dizer que ele morreu de inanição, de anemia afetiva e, por que não, por que não, espiritual. Lázaro precisava de Jesus, mas precisava o tempo todo, e inteiramente, como uma criança. Criança – infante – Lázaro faz de Jesus não só uma motivação de vida, mas uma condição de vida, e tão exclusiva, e tão alienante, que o tornou incapaz de autonomia própria. Autonomia, aliás, que está lá, bem clara, em todos os sinais mencionados no evangelho de João, menos nesse.

Vamos passar em revista?

No primeiro sinal (cap. 2), faltou o vinho. Mas os servos das Bodas de Caná sabiam disso, aliás, os servos sabiam de tudo, e por saberem de tudo, foram capazes de encher as talhas de água, em tempo. É a eles que a mãe se dirige, não ao noivo, não ao mordomo. Este, aliás, é o menos sabia das coisas, das faltas e dos acontecimentos. O mordomo encarna os dirigentes: eles nunca sabem.

No segundo sinal (cap. 4), faltou o amor. O pai onipotente do filho doente pede que Jesus “desça”. Mas quem precisa “descer” do pedestal é ele. Quando ele saca isso, pode, enfim, deixar de dar ordens, inclusive, a Jesus, descer da sua arrogância e ir ao encontro do filho doente.

No terceiro sinal (cap. 5), faltava ânimo, disposição, vontade de ter vontade, fome de viver. O paralisado não tinha ninguém que o levasse à Betesdá. Mas quem disse que ele precisava ir a uma fonte que não mais oferecia o que prometia? aquilo lá, nem fonte era: era fosso. Betesdá significa “O Fosso”. Então, o paralisado, ao apelo de Jesus, mas por conta própria, “levantou-se, assumiu a sua maca e andou”.

No quarto sinal (cap. 6), faltou o pão – fome é essencial. Todas as “fomes” são. E de um menino veio a solução: cinco pães e dois peixes. Pães de cevada, material inferior, mas era o que ele tinha. E o que ele tinha, ele deu. Um menino – de rua, como informa o texto original grego – foi capaz de dar. Ele era inferior por sua condição e seu pão era inferior pela qualidade e quantidade. Mas ele foi capaz de dar. E todos deram do que haviam levado, e todos comeram, e todos ficaram satisfeitos.

No quinto sinal (cap. 6), faltava coragem. Mas o pavor dos discípulos não os impediu de reconhecerem seu mestre, andando sobre o medo como quem pisa descalço em caco de vidro.

No sexto sinal (cap. 9), faltou luz. Mas o cego enfrentou a própria cegueira, a cegueira seus pais, dos dirigentes, da comunidade e gritou para quem quis ouvir: Alguém me “abriu os olhos”! E, agora, eu vejo o que ninguém vê.

Chega-se, então, ao sétimo sinal (cap. 11). Todos estão à frente do túmulo de Lázaro e, aqui, ninguém sabe o que faltou. Nos outros sinais anteriores, todos sabiam o que faltava. Não era difícil providenciar a saída, quando se conhecia o final do túnel. Neste sinal, ninguém sabe nada. Todos estão perdidos. Marta está perdida: responde ao que não ouviu. Maria está perdida: repete o que não pode ver. Lázaro está no túmulo. Os leitores do texto prendem a respiração, porque algo precisa acontecer e para tanto precisa ser encontrado, mas ninguém sabe o que é. Alguma coisa na história de Lázaro nos escapa, algo a ser contado, um mistério que envolve a todos: Marta, Maria, Lázaro, os leitores, os ouvintes... Jesus.

Repito, mas de outra forma. Nos outros sinais, Jesus participa, mas não se envolve. Aqui, é o contrário: ele está envolvido, inteiramente, mas quase não participa. O comentário, à boca pequena, é: “Mas ele que abriu os olhos do cego, não poderia ter evitado que esse morresse?” É só depois dessa, e só no final, que Jesus se dá conta de que precisa intervir. Parece que ele espera o final, para só no final, mostrar-se inteirado do que estava acontecendo ali. Mas, afinal, o que é que estava acontecendo ali?

Um comentário:

  1. Falando de sinais, às vezes penso que estamos vendo uma mudança na condição das crianças, sua posição no seio da família (esta também em transformação!), na sociedade, frente aos adultos. Pistas sobre isso vejo nos inúmeros filmes que, de certa maneira, reinterpretam situações históricas e/ou trágicas à luz das experiências de crianças nelas envolvidas (olhares até então esquecidos). Exemplos de filmes: A culpa é de Fidel; O ano em que meus pais saíram de férias; Deixe-me entrar; O menino do pijama listrado; O sexto sentido etc. Para as crianças provindas das classes mais pobres, a responsabilidade em relação ao trabalho vem cedo e, portanto, a questão da autonomia, num certo sentido, já está posta para ser enfrentada, cara a cara. Vale dizer, portanto, que infans, como toda palavra, é carregada de historicidade, de certo tipo de relação e espaço deixado às crianças. Nos tempos contemporâneos, parece maior a distância entre infans e as crianças, na concretude de suas vidas, em nosso mundo. Crianças não-infantis são as nossas. Mesmo porque, atualmente, a vontade dos pais divide-se entre imposição e diálogo. Quando há diálogo, o infans perde seu sentido etimológico.
    Bom texto, Renato!!!

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