domingo, 21 de agosto de 2011

DEPRESSÃO, LUTO E MELANCOLIA – 4

“Jamais a dor esquecerá!” (Electra, de Sófocles)


E o luto? Por que é tão importante? O que aconteceu com os rituais de luto?

Estudos de antropologia afirmam que o declínio dos rituais públicos de luto, no Ocidente, está relacionado à carnificina da 1ª Guerra Mundial. O excesso de mortos (10 milhões) e de enlutados, muito maior que em todas as guerras anteriores, forçou a comunidade a fazer mudanças profundas. Que sentido faria para a comunidade ficar de luto por cada soldado morto quando os cadáveres sequer eram contados? De forma significativa, foi justamente nessa época que Freud escreveu “Luto e Melancolia” (1915-1917). O entendimento do luto como assunto individual veio à tona justamente na hora em que ele se apartava da vida comunitária.

Na África, os rituais de luto entraram em erosão depois da AIDS, principal causa de morte em pessoas entre 15 e 40 anos, sobretudo, na Tanzânia. A quantidade das mortes e a carência econômica tornam inviável a manutenção dos rituais tradicionais.

Em Minas ou aqui, quando alguém morria, o defunto era velado dentro da casa que ele construiu e onde ele viveu. Ali, as cadeiras eram afastadas, a mesa tirada do lugar, e todo espaço era redimensionado para que, ao redor dele no centro da sala, a vida inteira, dele e de todos os outros, fosse repassada, contada e recontada, lembrada nos pormenores. Os parentes de perto e de longe iam chegando, e gente que não se via há anos, estava ali, com todas as interjeições de direito do momento: “Nossa, como fulano cresceu!”, “Nossa! Como fulana engordou!”, “Nossa! Faz tanto tempo que a gente não se via!”. E, sobretudo, a maior de todas: “Eita! A gente só se encontra em velório!” E era verdade. Mais uma vez, como sempre, a vida se alimentava da morte, ali, um alimento simbólico de uma morte real. E assim a vida prosseguia seu rumo e a ela era dada a última palavra, porque muitas palavras haviam sido ditas e feitas. Palavra feita é quando o sujeito que fala está embutido na sua palavra e a sua palavra, embutida nele.

Hoje, dadas as circunstâncias e as necessidades, o defunto é levado para um lugar clean, bem longe, onde é velado, em salas contíguas, todos do mesmo jeito, como se o sujeito, depois de morto, perdesse toda singularidade que o caracterizou em vida e que, justamente, havia feito dele aquele que foi. De repente, por causa dos “trombadinhas”, instaura-se o costume noturno de trancar o defunto dentro da sua sala (que não é dele) e os parentes irem embora e só voltarem no dia seguinte à hora agendada. Em seguida, o (como é mesmo o nome dele?) é levado para um cemitério clean, onde, de tudo o que ele foi e fez, vai sobrar apenas uma plaqueta, cada vez mais minúscula, com um nome e duas datas. O Simbólico tem cada vez mais a cara do Real.

A uma senhorinha que tem pavor de ficar trancada, sozinha e morta, eu tive de prometer que passaria com ela, sozinho e vivo, aquela noite. Pelo que sei, ela ainda está por aqui... Eu invento cada coisa!

Os rituais de luto não cabem no tempo do “Time is Money”. As conseqüências desse sumiço e seus efeitos no esgarçamento do tecido social ocidental já podem ser observados.

O tabu da era vitoriana foi o sexo: assunto proibido. O tabu da nossa época é a morte: assunto impossível. E, no entanto, somos o tempo inteiro expostos a imagens de morte violenta no cinema, na TV e por aí afora. É surpreendente perceber o que o homem ocidental faz, todo dia, depois do trabalho: ele assiste programas onde a morte é assunto, em noticiários ou novelas, a cada dia mais truculentos. Parece que o fato disso ser reiterado infinitamente, ad nauseam, sugere que a morte, em última análise, é algo que não pode nem precisa ter nenhum significado. As imagens, cada vez mais sangrentas, se multiplicam, justamente, na ausência de uma moldura simbólica que possa mediar-lhas. É. O Real invade o Simbólico.

É possível fazer o luto? Vou repetir a pergunta de outra forma: é possível assimilar a perda? É possível conseguir perder?

Melanie Klein, fundadora da escola inglesa de psicanálise, nos diz uma coisa muito interessante a respeito do luto. Ela diz que o processo de luto pode ser viabilizado se os nossos objetos internos também estiverem enlutados como nós. O que são objetos internos? São as representações inconscientes de todos aqueles que fazem ou fizeram parte de nossas vidas. Enfim, é a multidão que vive dentro de nós. Dizer que todos estão enlutados como o sujeito e com o sujeito é mais ou menos aquilo que o poeta diz quando diz “que a natureza chora com aquele que está de luto”.

Mas, chora, como? Sobretudo, chora, por quê?

Na Ilíada, Homero escreveu que homens e mulheres choravam juntos com Aquiles pela morte de Pátroclo. Mas que, no entanto, “cada uma chorava por suas próprias dores” e cada homem “lembrando o que deixara em casa”. É isso o acontece nas demonstrações públicas de pesar, melhor, essa é a usina que as alimenta: nas manifestações públicas de pesar cada sujeito acessa suas próprias perdas. Milton Nascimento diz isso, de forma invertida, na música “Paixão e Fé”: “O povo esquece a sua paixão para viver a do Senhor”. Esquece, mesmo, ou justamente o contrário, acessa?

É assim. O luto público existe para permitir que o privado se expresse. A lamentação pública dos heróis, das Emma Winehouse, das princesas Diana, tem a função de oferecer um espaço para o lamento das perdas privadas e de permitir que, nem que seja por tabela, os outros nos ofereçam seu conforto naquela dor. Nem que seja, também, por estarem sofrendo junto à pretensa mesma dor. “O povo esquece a sua paixão para viver a do Senhor”.

Acontecia a mesma coisa com a solene instituição das carpideiras profissionais. À medida que as carpideiras lamentavam e pranteavam a morte do falecido, os enlutados ficavam liberados para curtir seus lutos pessoais que, por vezes, nem eram daquele momento nem por aquele falecido. Mas nesse fenômeno das carpideiras acontecia algo a mais. O fato de aquelas profissionais serem contratadas assinalava a lacuna entre o público e o privado. Havia uma certa artificialidade. E aquilo era fundamental para que o enlutado não permanecesse no mesmo lugar do morto, e assim pudesse situar sua perda num lugar diferente, num outro lugar, um lugar simbólico, de onde fosse possível olhar a perda.

É esse lugar que a sociedade ocidental dita moderna perdeu. Ela quis tanto catalogar as coisas, fenômenos e sentimentos que, simplesmente, perdeu o olhar que os simboliza a partir de outro lugar e gera conhecimento a cerca deles. Estou falando de conhecimento, não de informação. Simbolizar uma perda é fundamental para começar a pensar nela e ocupar o vazio que ela deixou com o conhecimento que só ela produz. Só o conhecimento da perda preenche o vazio deixado pela perda. É aí que entram os lugares. Eles inscrevem o conhecimento num espaço.

Durante a ditadura na Argentina, as mães dos desaparecidos – torturados e mortos pelos militares do regime – reuniam-se às quintas-feiras em um monumento público numa das principais praças de Buenos Aires. Silenciosamente, elas circulavam o monumento, cada uma segurando um lenço onde estava inscrito o nome do filho e a data do desaparecimento. Elas insistiam naquele gesto simbólico para que houvesse uma inscrição mínima que marcasse a perda. Nesse lugar, o Simbólico dá nome ao Real-sem-nome.

Essas inscrições mínimas são uma forma rudimentar de conhecimento, sinalizando a perda ao invés de escondê-la. A exclusão de fatos, como um suicídio ou aborto, impossíveis de virarem fala, gera uma pressão de guardar segredo bastante destrutiva. Só o conhecimento emancipa. De novo, repito, conhecimento não é informação nem captação e armazenamento de dados. A gnose dos gregos incluía o saber e o deixar-se saber pelo saber. Abrir mão desse conhecimento, ser amputado ou amputar-se dele é uma mutilação, um furar de olhos, jocastianamente falando.

Geoffrey Gorer, antropologista inglês, nos diz que a partir da metade do século XX tornou-se lugar-comum esconder do paciente o seu diagnóstico fatal. Isso nos mostra como a contemporaneidade lida com a relação entre morte e conhecimento. É interessante observar também que até o século XVIII, toda pintura com cena de leito de morte incluía crianças. Aos poucos, elas foram sumindo, das telas e na vida. Quando um genitor decide, para o bem da criança, que é preciso afastá-la do funeral do outro genitor, sabemos o tanto que isso pode acarretar de mágoa futura. Fica um buraco, uma foraclusão, como se no meio de um romance algumas páginas arrancadas fossem, justamente, as que faltam para dar sentido ao enredo. Eu gosto de dizer que na clínica a gente "desembrama" o nó, mas não inventa a corda. Cada vez mais está chegando um tipo de paciente que traz o nó, mas vem sem corda.

Onde, quando, como e por que os humanos acharam que o não-saber é saber? E até onde é nesse buraco do não-saber-tornado-saber que caímos?

Acho que, na próxima, podemos recomeçar daí.

Gente, o assunto não acaba!

sábado, 13 de agosto de 2011

DEPRESSÃO, LUTO E MELANCOLIA – 3

Assuntos de doença são sempre bem-vindos (sic) quando a falta de assunto preenche a sala. A gente conta com orgulho (sic de novo) que quebrou o braço, a perna, que fez apendicite e que já teve catapora. À boca miúda, escapam escabrosidades de próstata enguiçada. Nem que mate, o sujeito relata a dificuldade de ereção. E depressão?
- Mas que assuntinho chato!, diria Tia Dona.

Chato ou não, a depressão é a segunda causa de morte por problemas do coração (segundo a OMS). A primeira é o sedentarismo. Uma se alimenta da outra. Os EUA adoram estatísticas, não vivem sem elas. Segundo a American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, existem 3,5 milhões de crianças deprimidas nos EUA. Boa parte, medicada, claro! Os EUA também adoram soluções objetivas e rápidas. Time is money!

André Green, um psicanalista famosão, alertava para o perigo que ele denominava “psiquiatria veterinária”. Essa abordagem perde muito. Perde a polissemia dos fenômenos humanos e a maravilhosa história que cada sintoma, por mais que se o mande calar a boca, insiste em querer contar. Ou não seria sintoma, seria apenas lesão. Para uma lesão adquirir o status de sintoma, tem de haver uma história a ser contada, uma novela, uma ficção fantástica, quase, uma saga.

Como já disse, não existe depressão, existem depressões. Gostaria de analisar 4 lados de um poliedro (perdoe-me a redundância) de muitos lados.
1. Depressão endógena – perda de “tônus vital
2. Depressão por luto – perda do objeto
3. Depressão por “justa causa” – perda do desejo
4. Depressão melancólica – perda do eu

Algumas observações preliminares são importantes:
1) Elas interagem;
2) podem acontecer em diferentes momentos da vida;
3) podem acontecer ao mesmo tempo.

Se você observar, verá um crescendo em gravidade. É como se altura e largura adquirirem profundidade. Lembre-se: depressão não é a patologia, é a febre. Qual “infecção” ela esconderá?



1. DEPRESSÃO ENDÓGENA – PERDA DE “TÔNUS VITAL

Nesse primeiro bloco vamos encontrar palavras médicas, pouco mágicas, talvez desérticas, para nós, leigos. São neurônios, sinapses, neurotransmissores, serotonina, balangandãs... Peraí, essa última é da Bahia!

Neurônios são os postes. Sinapse é a fiação. OK? Temos o poste e a fiação. E a eletricidade? Os neurotransmissores são os impulsos elétricos. Serotonina é a eletricidade. Não é bem assim, mas fica assim, dessa vez.

Um “neurônio-poste” através da “fiação-sinapse” libera a “serotonina-eletricidade” e a luz se acende. Voilá! Mas, há um problema nessa rede elétrica. O poste recaptura a eletricidade de volta. É como se a eletricidade não passasse de um poste ao outro. Acontecem apagões.

Uma medicação específica inibe a recaptura da serotonina. Os medicamentos negociam com o poste: “Calma, aí, rapaz! Deixa a eletricidade seguir a vidinha dela em paz.” E, pimba – fiat lux – a luz se acende, de novo, ou, pelo menos, deveria. O que se espera é que o sujeito volte a experimentar o “tônus vital” de antes. Coisa assim!

Depois dessa extravagante demonstração de conhecimento médico, só me resta pedir desculpas ao distinto público pagante. Foi o que deu!

O mais importante é você observar que esse modelo é biológico. Não há nenhuma menção à história pessoal, biografia, perdas, sentimentos, sentido, às vezes, nem há fala. O sujeito não é capaz de exprimir o que sente. Só sabe dizer que “está muito mal”.

Esse é o nível do hardware. No segundo bloco, lidamos com o software. A coisa vai ficar mais, diria, pessoal.



2. DEPRESSÃO POR LUTO – PERDA DO OBJETO

Antes é preciso saber o que é “objeto”.

Você é o sujeito da sua vida, OK? Então, tudo o que não for você, será objeto. Até o seu “eu” pode ser um objeto. Mas essa é uma história complicada e vamos deixar pra outra hora. Por ora, vamos combinar assim: existem o sujeito e o objeto. Objeto (e dessa vez fugimos do grego, é latim) significa lançar-se para fora: ob-jeto. Nesse sentido etimológico, sujeito significa lançar-se para baixo. Já que existe o objeto, proponho que a palavra fosse sub-jeto. Já sei, proposta negada. Mas fica a idéia.

Ta, e esse objeto, o que vem a ser?

Objeto é tudo aquilo que tem valor para o sujeito. Melhor, é tudo aquilo capaz de fazer o sujeito sair de debaixo de si para alcançar o que está à frente de si. Objeto é tudo aquilo no qual você investe uma parte de você, de suas energias, do seu amor, das suas finanças, para alcançar o que você não sente que esteja em você, ou sente que não esteja em você e por isso lhe faz falta.

Falando economês, um objeto é um bem. Um bem é quando uma coisa se tornou sua. Um bem é quando uma coisa se torna objeto. Pode ser um objeto mesmo (imagine “aquele” carro), pode ser uma pessoa (imagine “aquela” gata). Se o objeto não for relevante, se ele não se candidatar a ser seu, vai continuar lá, apenas e só... “uma coisa”. Percebeu a graduação? Coisa, bem, objeto. E aí vem o cuidado. Quem ama, cuida. (Tem vezes que eu fico com a impressão de não ter conseguido expressar a idéia.)

Mas aonde é que fica a depressão por luto?

É assim. Se um objeto é algo importante, muito importante, VIP, quanto mais importante, mais caro, mais raro, mais frágil. Se você tem uma Brasília-bege-repintada-ano 78 (meia dúzia de burros no motor), talvez, você possa deixá-la dormir ao relento, na chuva, na rua. Uma Lamborghini Aventador LP 700-4 (700 cavalos!!!) você não deixaria ao relento da rua, ah! Meu Deus, nem por Deus! Bem mais fácil, você ficar do lado de fora do que ela!

Essa é a fragilidade do objeto.

Quando algo ficou muito importante para você, há uma grande soma de afeto investida nele e em tudo que lhe diga respeito. Afeto e amor são investimentos. É claro que você não se esqueceu de quando namorava e estava apaixonado? Lembra daqueles 100 cruzeiros (que moeda era mesmo?) que você gastava inteirinhos com o ser idolatrado? Aquilo era “investimento”. Aliás, altíssimo! Não estou me referindo ao dinheiro, mas do brilho do olhar do outro quando recebeu a prenda. Isso não tem preço, pra isso não há Mastercard. Acontece que o objeto, na mesma medida em que é valorizado, se torna frágil. Todos os corações estraçalhados pela dura amargura da desilusão sabem disso. É o Ó!

E tem mais. Você não investe apenas na pessoa, você investe a pessoa. Você investe todas as memórias vinculadas a ela. Quanto mais importante for o relacionamento, maior será a quantidade de investimento. Quanto mais investimento, mais memória. Quanto mais memória, mais coisas a guardar, a perder, a sofrer, a curar.

Porque, mais dia menos dia, quase sempre, a gente perde esse maravilhoso objeto de desejo. Perdeu! E o pior: perdeu a pessoa, mas ficaram as lembranças, as memórias! Quem agüenta isso? Você precisa se desligar do objeto perdido e, para tanto, precisa se desligar das memórias. Mas, aí, nesse doloroso momento, você puxa a chave e desliga tudo, e se desliga de tudo. Infelizmente, não há chave seletora, interruptor. Ao se desligar das memórias, você se desliga do resto, perde o interesse pelo mundo e pelas pessoas do mundo e pelos atrativos do mundo. Parece uma quaresma emocional. Há uma “hemorragia” do desejo e consequentemente do investimento. Nessa hora, é impossível sequer pensar num novo investimento. Como! Se ele ou ela ainda estavam aqui, ontem, ali, conversando comigo, naquela mesa! “Naquela mesa ta faltando ele, e a saudade dele ta doendo em mim”.

Há perdas e perdas. Quem perde pai é órfão. Quem perde cônjuge é viúvo. Quem perde filho é... o quê? Quem perde filho não tem nome. Não há palavra que contenha essa dor.

Um tempo depois da perda começa o luto.

O que é o luto? O luto é a arrumação de cada pedaço de memória ligada ao objeto perdido. É como se você fosse embalando suas lembranças em caixas, embrulhando em papel de seda azul, uma a uma, revendo cada história, revisitando cada lugar, revivendo cada momento, etiquetando pra não esquecer o que a caixa contém. E nem precisa que o objeto altamente investido de afeto esteja ali. Basta que o lugar tenha sido ocupado na imaginação.

Nunca me esqueço de quando fui buscar meu “primeiro filho” em Poços de Caldas. Tudo arrumado, passado no papel, acompanhado a gestação, as idas ao hospital, da mãe, de lá. Na hora em que chegamos à cidade, um telefonema para a assistente social desmontou o castelo:
- Num tenho uma nutícia boa pro cês não!
O pai biológico havia voltado, convencido a mãe a não doar, e ela, pra ficar com ele, ficou com o bebê. Tava certa: ela era a mãe, melhor com ela! Mas quem disse que a gente se conformava? Na volta, bateu um horror de chuva na estrada. O carro dançava na pista. À chegada em casa, o quarto foi desmontado, peça por peça, embrulhadas em papel de seda azul. Começava o luto de quem nem havia chegado, mas já havia partido, por mares nunca dantes navegados.

O tempo passou. O luto foi feito. Outro filho veio. Uau! Né! Esse é meu, ninguém tasca, eu vi primeiro!

Mais tarde soube que “aquele” pai havia sumido outra vez, que “aquela” mãe, decerto, estava perdida outra vez, e que “aquela” criança (não mais filho), sabe Deus, sabe Deus... Nunca nem vi seu rosto. Não sei seu nome. E não me esqueço dele.

Um luto é uma luta. Uma batalha dolorosa, frequentemente relacionada à idéia de superar uma perda. Já perguntei: será que um dia superamos nossas perdas? O que sabemos é que à medida que o luto é feito, a dor da perda diminui, e a própria perda diminui restaurada de outras tantas formas, por outros tantos objetos e por outros tantos investimentos. Afinal, o afeto não cessa de afetar. O luto completado deixa você disponível para um novo investimento. Um amor cura o outro, não é? Você restabelece a conexão com o mundo. Volta a investir outras relações. Abrem-se novas possibilidades. (Eita palavra linda!) E a vida segue seu rumo, sempre em frente, calma e caudalosa como um grande rio.

Minha avó é que sabia avaliar o andamento do luto. Na missa de sétimo dia, dizia ela, a viúva está de vestido preto; na missa de trigésimo dia, de preto com bolinha branca; na missa de ano, conforme o finado, já está de vermelho. Feijão no fogo pra quem ta vivo!

Esse é o processo natural do luto. Mas uma grande encrenca pode acontecer NO MEIO DESSE CAMINHO. Vamos lá, o que acontece no meio do caminho?

Até agora tudo foi muito linear, os fatos foram descritos em linha reta. Mas quem disse que a gente anda em linha reta? O trajeto humano, geralmente, faz S. Paulo - Rio via Moscou. O que eu quero dizer é que ninguém abandona de bom grado qualquer investimento. A gente não se descola de um objeto nem mesmo quando outro já acena do lado de lá da rua. Nós somos conservadores: andamos na trilha conhecida. Não gostamos de mudança. Não trocamos o certo pelo duvidoso. Não abandonamos investimentos.

Para fazer o luto é preciso enfrentar a oposição a se desligar do objeto perdido. A oposição a se desligar do objeto perdido provoca desvios da realidade. Os desvios da realidade fomentam alucinações carregadas de desejo. “Sinto meu filho, aqui. É como se ele fosse entrar pela porta.” Centros de orientação espiritualista, muitas vezes, legitimam essas alucinações. Afinal, elas confortam. Chega a ser até concorrência desleal, tamanha a capacidade de elas garantirem que a falta não faça falta. Fazer o luto é difícil e necessário. Bota necessário nisso! O que se encontrar nesse caminho fazendo obstáculo ao luto ou provocando-o de forma destorcida, pode gerar mais tarde uma dívida difícil de saldar. Bota difícil nisso!

A depressão por luto é isso. Perder não é fácil. Não temos software para perdas. Até o "peso perdido" a gente encontra de novo! Perder um objeto sumamente investido, seja o que for, é sumamente doloroso. A gente fica de luto. Veste preto. Tem vontade de se perder junto. A gente chora tanto que parece que choveu na alma. Mas o luto, justamente ele, não deixa que a gente se perca. E, aos poucos, o ramo cortado brota. Choveu... né!

Há sempre o retorno da esperança. A esperança, não se esqueça, é um fio de cabelo louro ao sol. Mas quem foi que disse que você é cego?

O maior entrave ao luto vai ficar pra daqui a pouco.

Temos assunto!

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

DEPRESSÃO, LUTO E MELANCOLIA – 2

Eu tive a sorte de cair e me formar num meio profissional que ainda prioriza coisas como história pessoal, subjetividade e singularidade. Ainda me lembro, como se fosse hoje, do dia em que contei para o Dr. Walcy que meu filho havia chegado. Ele sorriu e apenas me disse:
- Parabéns! Agora... observe.
Minha guru-master (só conto pra quem perguntar) me ensinou a fazer do ouvido a agulha da bússola. É pra lá! É pra lá!

O incrível é que vim de outro meio cuja prioridade deveria ser o de saber ouvir. Nunca, mas nunca mesmo, me foi dito que eu iria ouvir um trem chamado depressão e que ele poderia descarrilar justamente em cima do meu ouvido. Quando descarrilou, eu não soube como lidar.


A depressão está em todos os lugares. Os clínicos gerais a diagnosticam, as celebridades revelam que sofrem dela, as crianças recebem receitas medicamentosas para tratá-la, os programas do começo da manhã e do meio da tarde a debatem na mídia, os personagens de novela lutam contra ela. No entanto, há 50 anos, concluem os estudos, quase não havia depressão. As pessoas eram consideradas neuróticas ou ansiosas, mas dificilmente deprimidas.
Mudou o quê? Mais precisamente, mudou quem?

A depressão é o nome de uma doença singular. Ela possui características específicas e aparece em todas as sociedades. De Brazópolis, Minas Gerais, a Brazzaville, no Congo, existe depressão. Sei que existe em Brazópolis (ara!) porque sou de lá. Sei que existe no Congo porque, há pouco tempo, estive com uma missionária francesa, e quando ela soube o que eu era e fazia, me contou dos deprimidos do Congo. Voilá! Existem deprimidos no Congo.

Mas o que é isso: depressão?

Depressão envolve um conjunto de sintomas como tristeza, desejo de sumir, pensamentos suicidas, perda do desejo e restrição da fala, perda do cuidado consigo mesmo (por exemplo, banho, alimentação...), exposição a perigos e a comportamentos de risco, auto-recriminações, pensamentos obsessivos de morte ou de ficar louco, pavor e pânico diante da solidão, manifestações psicossomáticas, sono conturbado (excesso durante o dia, insônia à noite), aumento ou diminuição do apetite, reduzida capacidade de concentração, incapacidade total de encontrar satisfação em qualquer coisa, tendência ao isolamento, vazio espiritual num sentimento de abismo profundo, claro, choro. Bastante.

Tem mais. O sujeito esconde a depressão e se esconde nela. Pode não ter problema algum em contar aos amigos que fraturou a tíbia, mas não conta pra ninguém que está deprimido. Estando deprimido, pode não ter problema nenhum em contar que se sente exausto, mas não revela, nem sob tortura, a evasão da libido.

E isso muda de cultura pra cultura.

A falta de energia pode ser interpretada em algumas sociedades como tristeza ou culpa, mas não em todas. Da mesma forma, a resposta de um grupo social pode variar diante de um sujeito deprimido, desde a preocupação e cuidado até a desconsideração e desprezo.

Dessa forma, o que se chama, hoje, “depressão” (não se esqueça das aspas) é a interpretação específica da medicina ocidental sobre um determinado conjunto de mal-estares biológicos, desde que a química cerebral seja considerada o fator básico. Pimba! O povo gosta de um tubo de ensaio.

Há também a perspectiva social da depressão. O tempo se encurtou, o consumo se expandiu, os vínculos desapareceram, as exigências do mercado re-re-dobraram sua incalculável capacidade de sufocar o desejo no sujeito, a gente perdeu as seguranças e os consolos de antes, as vigas não sustentam mais o peso da casa e a casa cai.

Alguns psicanalistas consideram a depressão como uma forma de protesto. Por ser considerado unidade de energia na sociedade industrializada (a bateria da Matrix) o humano resiste, consciente ou não. Daí que, quanto mais a sociedade moderna estimula a atingir autonomia e independência na busca por satisfação, mas a resistência assume valores completamente opostos. Ao colocar o sofrimento no centro da plenitude, a depressão encontrou sua forma de dizer NÃO ao que nos mandam ser. Porque alguém precisa dizer NÃO à insanidade corporativista do momento. Não acham?

Temos assunto!



DEPRESSÃO, LUTO E MELANCOLIA - 1

- Cada comprimido encontra-se em total solidão!
Foi o que disse o paciente depois de abrir a caixa de antidepressivos e constatar que os comprimidos estavam separados uns dos outros por um espaço desproporcional de papel alumínio.
- Por que não estão todos juntos, num vidro, livres, soltos?
Sua idéia seguinte foi a de engolir todos juntos. Perguntei por quê?
- Para que não se sintam, assim, tão sozinhos!

Não fiz farmácia, não faço a menor idéia do porquê dos comprimidos estarem hermeticamente separados uns dos outros. Mas fiz outras coisas. Isso me deixa margem pra pensar na metáfora dos comprimidos isolados e na mensagem cruel que eles enviam a quem abre a caixa. “Assim é você”, eles dizem. A imagem desanimadora de unidades separadas transmite o modelo exato do individualismo atual, onde cada um é considerado um agente isolado, separado dos outros, orientado para a disputa de bens e serviços no mercado, em vez de ser orientado para o social, o esforço conjunto e o bem comum.

Viajei?
Não ligo. Essa situação-metáfora permite examinar a situação do sofredor no momento em que são priorizadas soluções medicamentosas que nem mesmo são poções mágicas. Pelo menos, se fossem! Mas não são. O que deixa a situação ainda mais triste. Seguir as instruções para tomar o comprimido ficou mais importante do que examinar as relações reais da pessoa com o medicamento. Relações que, por sua vez, poderiam mostrar como é a relação da pessoa com os de sua vida. A depressão, assim, é concebida como um problema biológico, uma infecção bacteriana, que requer um medicamento específico para que os sofredores voltem rapidamente a seus estados anteriores de produtores felizes.

O que foi que aconteceu? Nada além disso: a exploração da interioridade humana está sendo substituída por uma idéia fixa de higiene mental. É preciso eliminar o problema, em vez de entendê-lo. Mesmo sem entendê-lo. Somos tecnólogos.

Mas o quê faltou foi mesmo a serotonina?

O medicamento objetiva devolver ao sofredor níveis ótimos de integração e utilidade sociais. Isso é bom. No entanto, quanto mais a sociedade compreende a vida humana por meios mecanicistas, maior a probabilidade dos estados depressivos ramificarem. Parece ser uma decisão perigosa do profissional tratar uma depressão com o mesmo modelo de uma infecção que demanda antibiótico. Parece ser uma decisão perigosa do paciente requerer só isso. QUANTO MAIS OS SINTOMAS FOREM VISTOS COMO SINAL DE DESVIO OU DE COMPORTAMENTO INADEQUADO, MAIS O SOFREDOR SENTIRÁ SOBRE SI O PESO DA NORMA, OU SEJA, DO QUE SE ESPERA QUE ELE SEJA. Mas não foi justamente essa, entre outras, a razão dele estar deprimido?

A visão atual do ser humano como “recurso” (há os Recursos Humanos), na qual cada pessoa é apenas uma unidade de energia, um pacote de habilidades e competências que pode ser comprado e vendido no mercado, não está muito longe das baterias humanas da Matrix. Se a vida humana se tornou isso, por que se surpreender quando tantos escolhem recusar esse destino, perdendo sua energia e recusando seu potencial mercadológico ao caírem na depressão e no sofrimento?

Em 1917, Freud escreveu um ensaio chamado “Luto e melancolia”. Alguns que vieram depois dele consideraram (consideram) os termos ultrapassados. No entanto, aqueles termos eram precisos, continuam precisos, e nos dois sentidos, para nos ajudar a entender como lidamos ou como fracassamos ao lidar com o resultado das perdas na biografia de cada um. É aí que entra o luto.

Na psicologia popular, luto está sempre relacionado à idéia de superar uma perda. Mas será que alguma vez superamos nossas perdas? Ao invés disso, será que não as tornamos parte de nossas vidas de maneiras diferentes – às vezes proveitosamente, às vezes catastroficamente – mas nunca sem dor? O problema é como fazer a dor caber dentro do universo dos analgésicos e anti-anti-qualquer-coisa. Só há um jeito: falando nela. Mas quem vai ouvir?

O mecânico “ouve” o carro. O veterinário “conversa” com o paciente. No caso humano, as modernas complexas teorias de como respondemos mentalmente às experiências de perdas foram substituídas por descrições de comportamento que são superficiais, bioquimicamente dúbias e psicologicamente rasas. NÃO HÁ, NEM NAS ESTATÍSTICAS NEM NOS GRÁFICOS, RELATOS DA FALA REAL DOS PACIENTES, COMO SE OUVI-LOS JÁ NÃO IMPORTASSE MAIS. Perdeu-se o eixo da subjetividade. Isso lá é progresso?

Tem outra.

Todas as sociedades documentadas atribuem um lugar central aos rituais públicos de luto. A perda era inscrita tanto na comunidade como na subjetividade por meio de um sistema de ritos, costumes e códigos. Mudava-se o vestuário, os hábitos alimentares e o gestual em cerimônias altamente elaboradas. Estavam envolvidos o indivíduo enlutado, a família, os próximos e o grupo social. A perda era sempre tratada publicamente.

As sociedades modernas, na mesma medida em que desconfiam das demonstrações públicas de sentimentos, provocam essas demonstrações nos programas de domingo à tarde. Percebem a confusão? Não sabemos mais como lidar com o luto da perda. Ele sequer é feito. Para muitos, nunca acontece. Freud avisou que sem lidar com o luto, ele se transforma numa melancolia estagnada. No luto, sentimos pesar pelos mortos; na melancolia, morremos com eles.

Temos assunto!

AUTOBIOGRAFIA EM CINCO CAPÍTULOS BREVES

CAPÍTULO 1
Desço a rua.
Há um profundo buraco na calçada.
Caio nele.
Estou perdido. Estou impotente...
A culpa não é minha.
Levará a vida inteira para eu encontrar a maneira de sair.



CAPÍTULO 2
Desço a mesma rua.
Há um profundo buraco na calçada.
Finjo que não o vejo.
Caio nele novamente.
Não posso acreditar que estou no mesmo lugar.
Mas a culpa não é minha.
Ainda levará muito tempo para eu sair.



CAPÍTULO 3
Desço a mesma rua.
Há um profundo buraco na calçada.
Eu o vejo lá.
Ainda caio nele. Isto é uma repetição.
Mas meus olhos estão abertos.
Sei onde estou.
A responsabilidade é minha.
Saio imediatamente.



CAPÍTULO 4
Desço a mesma rua.
Há um profundo buraco na calçada.
Dou a volta por ele.



CAPÍTULO 5
Desço por outra rua.

domingo, 7 de agosto de 2011

O BARBEIRO

As barbearias da cidade grande não se parecem mais com aquilo que são. Parecem gabinetes dentários. A higiene, os progressos, a técnica e sei-lá-mais-quanta-coisa acabaram com encanto da instituição rural mais pitoresca de todas: a barbearia. Nas barbearias da cidade grande há mais tinta de coloração que fórmulas filosóficas, mais preocupação com a política internacional do que com os falsos testemunhos de domínio-público, mais revistas ilustradas, mais ares-condicionados e menos ociosidade do que nas sombrias e poeirentas barbearias do povoado. Naquelas, o prefeito, o coronel e o bobo tinham voto, veto e voz. Aquilo, sim, era um verdadeiro, espontâneo e natural parlamento corporativo.

O barbeiro da cidade grande nem existe mais. Mudou de nome para cabeleireiro. Seja como for, o barbeiro da cidade grande, agora, é um cientista, com suas fórmulas mágicas de transformação. Já o barbeiro do interior é um filósofo, que pensa mal de todos e fala bem de todo mundo, tem mulher e oito filhos, e, mesmo assim, e, no entanto, reserva um dos ventrículos do coração para servir de domicílio à moça incógnita que passa por ali, e o deixa de tesoura aberta à mão, pronto a cortar o lóbulo da orelha do cliente. O barbeiro dos povoados é um jogador contumaz, que assiste à missa de joelhos e fala bem de Voltaire.

Mas o pior nos barbeiros da cidade grande é o que eles têm de melhor: eles cortam cabelo. Como profissional dessa difícil arte, o valor do barbeiro da cidade é incontestável. É dele mesmo esse automatismo científico que transformou o seu salão num laboratório. Antes, não, antes um salão de barbeiro era um lugar aonde se ia pra falar mal da vida do vizinho, jogar uma partida de damas ou dominó, ou simplesmente para não fazer nada. Acho que essa é a grande diferença: as pessoas iam à barbearia do povoado por qualquer motivo, menos para cortar o cabelo.

Já na barbearia urbana, não. A essa se vai, clínica e cirurgicamente, para lidar com a aparência, numa rigorosa distribuição de turnos, com lista de preços impressa e um cabeleireiro com um quê de funcionário público. Há uma insondável distância sociológica entre o esquisito procedimento cirúrgico de hoje e aquele primitivismo prático, quando se colocava nada mais que uma cuia na cabeça do cliente e ao redor dela se recortava tudo o que sobrasse nas bordas.

Quanto mistério havia naquela cuia! Quanto encanto!

Não foi a barbearia que perdeu o encanto. Esse encanto não existe mais. O que antes atendia pelo nome de “Barbearia do Zezinho”, hoje virou “Stylist Hair”. Mudou, simplesmente, mudou. Nem para melhor nem para pior. Apenas, mudou. Fica até difícil dizer o que foi ganho ou perdido porque as referências desapareceram.

Mas quem quiser conhecer um autêntico barbeiro, mesmo que não seja para cortar o cabelo, precisa ir a um povoado do interior. Tem de vê-lo aos domingos, todo arrumado, cheirando áqua velva, orgulhoso da patroa e dos filhos, e deitando aquele olhar guloso para as mocinhas que flutuam em risadinhas ao redor da Matriz.

sábado, 6 de agosto de 2011

COMENTÁRIO “ESPIXADO” – 1

APRENDER A VIVER – LUC FERRY
Filosofia para os novos tempos


Luc Ferry (Paris, 1951) foi ministro da educação na França entre 2002 e 2004. Ele já escreveu vários livros resgatando um ângulo da filosofia que ninguém havia visto antes, pelo menos, não tão claramente. Ele aposta na filosofia como uma oportunidade de salvação. É isso mesmo, salvação! Salvação sempre foi assunto para as religiões. Mas o homem moderno, ao que tudo indica, na mesma intensidade como se cansou delas, não se cansou da necessidade de ser salvo. O homem, desde sempre tem “precisão” de ser salvo. Salvo de quê? Como? Para onde? Por quem? É isso que o autor aborda em APRENDER A VIVER. Convido a passar algumas semanas na companhia dele.

*

Filosofia como salvação? Uai? Que trem é esse?

Salvação, na minha época, era assunto de sermão de missa e de teologia. Aliás, era um dos tratados de teologia. Chamava-se Soteriologia. Você conhece a palavra soteropolitano: aquele que nasceu em Salvador. É isso aí. A palavra salvação, em grego (quase tudo é grego!) é “soteros”, e fica mais bonito escrito assim: .

Soteros, em latim, virou salus (nada a ver!). O interessante dessa virada é que salus significa tanto salvação quanto saúde. Taí. Se salvação e saúde estão imbricadas na mesma palavra é porque o significado de ambas deságua no mesmo rio. Qual? O rio largo do sentido da existência do homem.

Acontece que esse rio nem sempre é navegável. Há perigos. O maior de todos é o grande inimigo da existência. Na verdade, inimiga: a morte. Você que está aí, lendo, confortável, com sua caneca de café, provavelmente, estará pensando: eu não tenho medo da morte! Ahá! Quero ver quando ela chegar pertinho, numa infecção aguda (nem estou falando do CA), num desastre daqueles que a gente escapa por um triz, numa situação de pânico naquela rua escura. Depois você me conta se tem ou não tem medo da morte.

Eu tenho, sim, e muito. Já senti o bafo dela e já vou garantindo que não tem cheiro de menta.

Não há como evitar a morte. Deve haver, pelo menos, como dar conta, do medo dela.

É isso que constitui o cerne das doutrinas religiosas. A mensagem essencial da doutrina cristã roça, justamente, nesse ponto: o amor vence a morte. Foi assim na ressurreição de Lázaro. Foi assim na ressurreição de Jesus. No entanto, diz o autor, para isso ter validade é preciso que a alavanca da fé não esteja emperrada e funcione. Para a religião cristã, a fé vence a morte e alcança a imortalidade. Essa é sua ferramenta mais importante. O único defeito dela é o de não ser viável a todos. As “Organizações Tabajara” das igrejas garantem: se você acreditar, seus problemas estarão resolvidos.

Mas, e para quem essa façanha de acreditar não é possível. Esse salto é mortal. Não há redes. Que resposta dar, que caminho indicar para os que não crêem? Sobretudo, para aqueles que não conseguem acreditar por confundirem crença com desonestidade de pensamento. Também, né!

Lembro-me bem da última entrevista da Rachel de Queiróz. Já velhinha, e completamente lúcida, a última pergunta que ela respondeu ao repórter foi, justamente, sobre a fé. Ela disse que esse era o grande buraco negro da sua vida: ela nunca havia conseguido acreditar. “Nem quando minha filhinha morreu. Que falta me fez esse consolo da fé!”

Pois é, meu amigo, que resposta dar, que caminho indicar para as inúmeras Rachel quem existem por aí? Há gente extremamente honesta e ética, mas que não consegue crer. Para minha avó, isso seria um horror. Como! Para ela, era impossível ser bom sem ter fé. No fim da vida, ela viu tanta bobagem televisiva perpetrada por quem se gabava da fé que tinha, que ela recuou – teve de recuar em nome da inteligência – e constatou que, afinal, a fé era só uma ferramenta, uma entre tantas. Muito boa, mas não indispensável.

Mas, o que queria minha avó? Afinal, o que querem todos? Acima de tudo, diz o autor: “não queremos ficar sozinhos, queremos ser compreendidos, amados, não queremos morrer, nem que os que nos amam morram. Ora, a existência real, um dia ou outro,irá frustrar essas expectativas. É, pois, na confiança em um Deus que alguns procuram a salvação, e as religiões nos garantem isso.”

Mas, por que não, né? Se a pessoa acredita, se realmente aposta que a religião consiga dar o que promete e entregar o produto, qual o problema?
A questão se abre para aqueles que não estão convencidos disso. Para eles, o problema da morte não é tão simples assim. Não é só uma “passagem”. Não se resolve com varinha mágica, água benta, efeitos especiais. Esse problema é grande, e ele permanece. Os que são crentes juramentados pedem garantias. Os que acreditam e, mesmo assim, ainda pensam querem respostas. Os não crêem fazem perguntas.

E, aí, nesse nicho, entra e cabe a senhora dona Filosofia.

Para o autor, a filosofia abre as portas da soteriologia, ela se oferece como salvação. A filosofia não traz consolos nem promessas nem garantias nem mesmo respostas. Não lhe cabe esse papel. Ela faz perguntas. Ela remaneja. “O pensamento que criou a crise não pode ser o mesmo que vai superá-la” (Einstein). A filosofia indaga, mobiliza, subverte, tira da apatia, abala os confortos, questiona a Polianice. Numa palavra, a filosofia incomoda. Ela se comporta como a tia que no meio da festa faz, em voz alta, “aquela” pergunta que ninguém ousaria fazer, mas que todo mundo já havia feito só na base do cochicho. O que isso tem de salvação? No caso da tia, não sei. No caso da filosofia: a verdade. Afinal, é ou não é a verdade que liberta (Jo 8,32)?

É por incomodar que a verdade liberta. Desperta. A palavra “verdade”, de novo em grego, significa “despertar”. Em grego, alétheia, olha que bonito, , significa sair do torpor, do sono, da letargia. Significa despertar. Mas que fique claro: isso não é um dom, é uma conquista. Dá um trabalhão! Se você quiser, pode dormir. Nenhum problema. Mas, enquanto isso, a vida passa!

No início do filme “Matrix”, duas cápsulas são oferecidas ao personagem central: uma azul, outra vermelha. Se ele escolher a azul, continuará dormindo o sono dos acorrentados às ilusões. Se ele escolher a vermelha, irá despertar. E ele é advertido que despertar é muito perigoso. E é quando o outro personagem, de nome Morpheu – “sono” – pergunta se não será, realmente, mais perigoso continuar dormindo de maneira cega e não ver o que está abaixo do nariz ou despertar, e aí correr o risco de enxergar o que não se quer ver?

Essa é uma experiência diária da clínica. Sentado atrás do divã, protegido do olhar do outro, eu ofereço sempre as duas pílulas, que não são as do Frei Galvão. É raro alguém escolher a vermelha. Um ou outro, apenas. Mas quando isso acontece, fica claro que valeu a pena, lá atrás, outros terem descartado a azul. Fica claro, também, que a aventura continua. A aventura de poder, ainda hoje, apesar de tudo, contra tudo, ainda que o sujeito não queira, mesmo que as distrações exerçam atração maior, continuar oferecendo a pílula vermelha.



Aprender a viver, Luc Ferry, Objetiva, 2007.