sábado, 6 de agosto de 2011

COMENTÁRIO “ESPIXADO” – 1

APRENDER A VIVER – LUC FERRY
Filosofia para os novos tempos


Luc Ferry (Paris, 1951) foi ministro da educação na França entre 2002 e 2004. Ele já escreveu vários livros resgatando um ângulo da filosofia que ninguém havia visto antes, pelo menos, não tão claramente. Ele aposta na filosofia como uma oportunidade de salvação. É isso mesmo, salvação! Salvação sempre foi assunto para as religiões. Mas o homem moderno, ao que tudo indica, na mesma intensidade como se cansou delas, não se cansou da necessidade de ser salvo. O homem, desde sempre tem “precisão” de ser salvo. Salvo de quê? Como? Para onde? Por quem? É isso que o autor aborda em APRENDER A VIVER. Convido a passar algumas semanas na companhia dele.

*

Filosofia como salvação? Uai? Que trem é esse?

Salvação, na minha época, era assunto de sermão de missa e de teologia. Aliás, era um dos tratados de teologia. Chamava-se Soteriologia. Você conhece a palavra soteropolitano: aquele que nasceu em Salvador. É isso aí. A palavra salvação, em grego (quase tudo é grego!) é “soteros”, e fica mais bonito escrito assim: .

Soteros, em latim, virou salus (nada a ver!). O interessante dessa virada é que salus significa tanto salvação quanto saúde. Taí. Se salvação e saúde estão imbricadas na mesma palavra é porque o significado de ambas deságua no mesmo rio. Qual? O rio largo do sentido da existência do homem.

Acontece que esse rio nem sempre é navegável. Há perigos. O maior de todos é o grande inimigo da existência. Na verdade, inimiga: a morte. Você que está aí, lendo, confortável, com sua caneca de café, provavelmente, estará pensando: eu não tenho medo da morte! Ahá! Quero ver quando ela chegar pertinho, numa infecção aguda (nem estou falando do CA), num desastre daqueles que a gente escapa por um triz, numa situação de pânico naquela rua escura. Depois você me conta se tem ou não tem medo da morte.

Eu tenho, sim, e muito. Já senti o bafo dela e já vou garantindo que não tem cheiro de menta.

Não há como evitar a morte. Deve haver, pelo menos, como dar conta, do medo dela.

É isso que constitui o cerne das doutrinas religiosas. A mensagem essencial da doutrina cristã roça, justamente, nesse ponto: o amor vence a morte. Foi assim na ressurreição de Lázaro. Foi assim na ressurreição de Jesus. No entanto, diz o autor, para isso ter validade é preciso que a alavanca da fé não esteja emperrada e funcione. Para a religião cristã, a fé vence a morte e alcança a imortalidade. Essa é sua ferramenta mais importante. O único defeito dela é o de não ser viável a todos. As “Organizações Tabajara” das igrejas garantem: se você acreditar, seus problemas estarão resolvidos.

Mas, e para quem essa façanha de acreditar não é possível. Esse salto é mortal. Não há redes. Que resposta dar, que caminho indicar para os que não crêem? Sobretudo, para aqueles que não conseguem acreditar por confundirem crença com desonestidade de pensamento. Também, né!

Lembro-me bem da última entrevista da Rachel de Queiróz. Já velhinha, e completamente lúcida, a última pergunta que ela respondeu ao repórter foi, justamente, sobre a fé. Ela disse que esse era o grande buraco negro da sua vida: ela nunca havia conseguido acreditar. “Nem quando minha filhinha morreu. Que falta me fez esse consolo da fé!”

Pois é, meu amigo, que resposta dar, que caminho indicar para as inúmeras Rachel quem existem por aí? Há gente extremamente honesta e ética, mas que não consegue crer. Para minha avó, isso seria um horror. Como! Para ela, era impossível ser bom sem ter fé. No fim da vida, ela viu tanta bobagem televisiva perpetrada por quem se gabava da fé que tinha, que ela recuou – teve de recuar em nome da inteligência – e constatou que, afinal, a fé era só uma ferramenta, uma entre tantas. Muito boa, mas não indispensável.

Mas, o que queria minha avó? Afinal, o que querem todos? Acima de tudo, diz o autor: “não queremos ficar sozinhos, queremos ser compreendidos, amados, não queremos morrer, nem que os que nos amam morram. Ora, a existência real, um dia ou outro,irá frustrar essas expectativas. É, pois, na confiança em um Deus que alguns procuram a salvação, e as religiões nos garantem isso.”

Mas, por que não, né? Se a pessoa acredita, se realmente aposta que a religião consiga dar o que promete e entregar o produto, qual o problema?
A questão se abre para aqueles que não estão convencidos disso. Para eles, o problema da morte não é tão simples assim. Não é só uma “passagem”. Não se resolve com varinha mágica, água benta, efeitos especiais. Esse problema é grande, e ele permanece. Os que são crentes juramentados pedem garantias. Os que acreditam e, mesmo assim, ainda pensam querem respostas. Os não crêem fazem perguntas.

E, aí, nesse nicho, entra e cabe a senhora dona Filosofia.

Para o autor, a filosofia abre as portas da soteriologia, ela se oferece como salvação. A filosofia não traz consolos nem promessas nem garantias nem mesmo respostas. Não lhe cabe esse papel. Ela faz perguntas. Ela remaneja. “O pensamento que criou a crise não pode ser o mesmo que vai superá-la” (Einstein). A filosofia indaga, mobiliza, subverte, tira da apatia, abala os confortos, questiona a Polianice. Numa palavra, a filosofia incomoda. Ela se comporta como a tia que no meio da festa faz, em voz alta, “aquela” pergunta que ninguém ousaria fazer, mas que todo mundo já havia feito só na base do cochicho. O que isso tem de salvação? No caso da tia, não sei. No caso da filosofia: a verdade. Afinal, é ou não é a verdade que liberta (Jo 8,32)?

É por incomodar que a verdade liberta. Desperta. A palavra “verdade”, de novo em grego, significa “despertar”. Em grego, alétheia, olha que bonito, , significa sair do torpor, do sono, da letargia. Significa despertar. Mas que fique claro: isso não é um dom, é uma conquista. Dá um trabalhão! Se você quiser, pode dormir. Nenhum problema. Mas, enquanto isso, a vida passa!

No início do filme “Matrix”, duas cápsulas são oferecidas ao personagem central: uma azul, outra vermelha. Se ele escolher a azul, continuará dormindo o sono dos acorrentados às ilusões. Se ele escolher a vermelha, irá despertar. E ele é advertido que despertar é muito perigoso. E é quando o outro personagem, de nome Morpheu – “sono” – pergunta se não será, realmente, mais perigoso continuar dormindo de maneira cega e não ver o que está abaixo do nariz ou despertar, e aí correr o risco de enxergar o que não se quer ver?

Essa é uma experiência diária da clínica. Sentado atrás do divã, protegido do olhar do outro, eu ofereço sempre as duas pílulas, que não são as do Frei Galvão. É raro alguém escolher a vermelha. Um ou outro, apenas. Mas quando isso acontece, fica claro que valeu a pena, lá atrás, outros terem descartado a azul. Fica claro, também, que a aventura continua. A aventura de poder, ainda hoje, apesar de tudo, contra tudo, ainda que o sujeito não queira, mesmo que as distrações exerçam atração maior, continuar oferecendo a pílula vermelha.



Aprender a viver, Luc Ferry, Objetiva, 2007.

Um comentário:

  1. Penso que a religiosidade sempre deixa lacunas, a fé é essencial,
    mas não responde a todas as perguntas
    [caso o sujeito esteja afim de peguntar].
    Fazer uso da filosofia para complementar a análise de questões não resolvidas é ótimo, assim como qualquer outro meio com embasamento científico.
    Os caminhos são muitos e os meios se complementam...
    Para os questionadores e os que escolheram a pílula vermelha...esse é o início de uma ótima série.

    gde abç, Renato... e muito obrigado!!

    ResponderExcluir