sábado, 13 de agosto de 2011

DEPRESSÃO, LUTO E MELANCOLIA – 3

Assuntos de doença são sempre bem-vindos (sic) quando a falta de assunto preenche a sala. A gente conta com orgulho (sic de novo) que quebrou o braço, a perna, que fez apendicite e que já teve catapora. À boca miúda, escapam escabrosidades de próstata enguiçada. Nem que mate, o sujeito relata a dificuldade de ereção. E depressão?
- Mas que assuntinho chato!, diria Tia Dona.

Chato ou não, a depressão é a segunda causa de morte por problemas do coração (segundo a OMS). A primeira é o sedentarismo. Uma se alimenta da outra. Os EUA adoram estatísticas, não vivem sem elas. Segundo a American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, existem 3,5 milhões de crianças deprimidas nos EUA. Boa parte, medicada, claro! Os EUA também adoram soluções objetivas e rápidas. Time is money!

André Green, um psicanalista famosão, alertava para o perigo que ele denominava “psiquiatria veterinária”. Essa abordagem perde muito. Perde a polissemia dos fenômenos humanos e a maravilhosa história que cada sintoma, por mais que se o mande calar a boca, insiste em querer contar. Ou não seria sintoma, seria apenas lesão. Para uma lesão adquirir o status de sintoma, tem de haver uma história a ser contada, uma novela, uma ficção fantástica, quase, uma saga.

Como já disse, não existe depressão, existem depressões. Gostaria de analisar 4 lados de um poliedro (perdoe-me a redundância) de muitos lados.
1. Depressão endógena – perda de “tônus vital
2. Depressão por luto – perda do objeto
3. Depressão por “justa causa” – perda do desejo
4. Depressão melancólica – perda do eu

Algumas observações preliminares são importantes:
1) Elas interagem;
2) podem acontecer em diferentes momentos da vida;
3) podem acontecer ao mesmo tempo.

Se você observar, verá um crescendo em gravidade. É como se altura e largura adquirirem profundidade. Lembre-se: depressão não é a patologia, é a febre. Qual “infecção” ela esconderá?



1. DEPRESSÃO ENDÓGENA – PERDA DE “TÔNUS VITAL

Nesse primeiro bloco vamos encontrar palavras médicas, pouco mágicas, talvez desérticas, para nós, leigos. São neurônios, sinapses, neurotransmissores, serotonina, balangandãs... Peraí, essa última é da Bahia!

Neurônios são os postes. Sinapse é a fiação. OK? Temos o poste e a fiação. E a eletricidade? Os neurotransmissores são os impulsos elétricos. Serotonina é a eletricidade. Não é bem assim, mas fica assim, dessa vez.

Um “neurônio-poste” através da “fiação-sinapse” libera a “serotonina-eletricidade” e a luz se acende. Voilá! Mas, há um problema nessa rede elétrica. O poste recaptura a eletricidade de volta. É como se a eletricidade não passasse de um poste ao outro. Acontecem apagões.

Uma medicação específica inibe a recaptura da serotonina. Os medicamentos negociam com o poste: “Calma, aí, rapaz! Deixa a eletricidade seguir a vidinha dela em paz.” E, pimba – fiat lux – a luz se acende, de novo, ou, pelo menos, deveria. O que se espera é que o sujeito volte a experimentar o “tônus vital” de antes. Coisa assim!

Depois dessa extravagante demonstração de conhecimento médico, só me resta pedir desculpas ao distinto público pagante. Foi o que deu!

O mais importante é você observar que esse modelo é biológico. Não há nenhuma menção à história pessoal, biografia, perdas, sentimentos, sentido, às vezes, nem há fala. O sujeito não é capaz de exprimir o que sente. Só sabe dizer que “está muito mal”.

Esse é o nível do hardware. No segundo bloco, lidamos com o software. A coisa vai ficar mais, diria, pessoal.



2. DEPRESSÃO POR LUTO – PERDA DO OBJETO

Antes é preciso saber o que é “objeto”.

Você é o sujeito da sua vida, OK? Então, tudo o que não for você, será objeto. Até o seu “eu” pode ser um objeto. Mas essa é uma história complicada e vamos deixar pra outra hora. Por ora, vamos combinar assim: existem o sujeito e o objeto. Objeto (e dessa vez fugimos do grego, é latim) significa lançar-se para fora: ob-jeto. Nesse sentido etimológico, sujeito significa lançar-se para baixo. Já que existe o objeto, proponho que a palavra fosse sub-jeto. Já sei, proposta negada. Mas fica a idéia.

Ta, e esse objeto, o que vem a ser?

Objeto é tudo aquilo que tem valor para o sujeito. Melhor, é tudo aquilo capaz de fazer o sujeito sair de debaixo de si para alcançar o que está à frente de si. Objeto é tudo aquilo no qual você investe uma parte de você, de suas energias, do seu amor, das suas finanças, para alcançar o que você não sente que esteja em você, ou sente que não esteja em você e por isso lhe faz falta.

Falando economês, um objeto é um bem. Um bem é quando uma coisa se tornou sua. Um bem é quando uma coisa se torna objeto. Pode ser um objeto mesmo (imagine “aquele” carro), pode ser uma pessoa (imagine “aquela” gata). Se o objeto não for relevante, se ele não se candidatar a ser seu, vai continuar lá, apenas e só... “uma coisa”. Percebeu a graduação? Coisa, bem, objeto. E aí vem o cuidado. Quem ama, cuida. (Tem vezes que eu fico com a impressão de não ter conseguido expressar a idéia.)

Mas aonde é que fica a depressão por luto?

É assim. Se um objeto é algo importante, muito importante, VIP, quanto mais importante, mais caro, mais raro, mais frágil. Se você tem uma Brasília-bege-repintada-ano 78 (meia dúzia de burros no motor), talvez, você possa deixá-la dormir ao relento, na chuva, na rua. Uma Lamborghini Aventador LP 700-4 (700 cavalos!!!) você não deixaria ao relento da rua, ah! Meu Deus, nem por Deus! Bem mais fácil, você ficar do lado de fora do que ela!

Essa é a fragilidade do objeto.

Quando algo ficou muito importante para você, há uma grande soma de afeto investida nele e em tudo que lhe diga respeito. Afeto e amor são investimentos. É claro que você não se esqueceu de quando namorava e estava apaixonado? Lembra daqueles 100 cruzeiros (que moeda era mesmo?) que você gastava inteirinhos com o ser idolatrado? Aquilo era “investimento”. Aliás, altíssimo! Não estou me referindo ao dinheiro, mas do brilho do olhar do outro quando recebeu a prenda. Isso não tem preço, pra isso não há Mastercard. Acontece que o objeto, na mesma medida em que é valorizado, se torna frágil. Todos os corações estraçalhados pela dura amargura da desilusão sabem disso. É o Ó!

E tem mais. Você não investe apenas na pessoa, você investe a pessoa. Você investe todas as memórias vinculadas a ela. Quanto mais importante for o relacionamento, maior será a quantidade de investimento. Quanto mais investimento, mais memória. Quanto mais memória, mais coisas a guardar, a perder, a sofrer, a curar.

Porque, mais dia menos dia, quase sempre, a gente perde esse maravilhoso objeto de desejo. Perdeu! E o pior: perdeu a pessoa, mas ficaram as lembranças, as memórias! Quem agüenta isso? Você precisa se desligar do objeto perdido e, para tanto, precisa se desligar das memórias. Mas, aí, nesse doloroso momento, você puxa a chave e desliga tudo, e se desliga de tudo. Infelizmente, não há chave seletora, interruptor. Ao se desligar das memórias, você se desliga do resto, perde o interesse pelo mundo e pelas pessoas do mundo e pelos atrativos do mundo. Parece uma quaresma emocional. Há uma “hemorragia” do desejo e consequentemente do investimento. Nessa hora, é impossível sequer pensar num novo investimento. Como! Se ele ou ela ainda estavam aqui, ontem, ali, conversando comigo, naquela mesa! “Naquela mesa ta faltando ele, e a saudade dele ta doendo em mim”.

Há perdas e perdas. Quem perde pai é órfão. Quem perde cônjuge é viúvo. Quem perde filho é... o quê? Quem perde filho não tem nome. Não há palavra que contenha essa dor.

Um tempo depois da perda começa o luto.

O que é o luto? O luto é a arrumação de cada pedaço de memória ligada ao objeto perdido. É como se você fosse embalando suas lembranças em caixas, embrulhando em papel de seda azul, uma a uma, revendo cada história, revisitando cada lugar, revivendo cada momento, etiquetando pra não esquecer o que a caixa contém. E nem precisa que o objeto altamente investido de afeto esteja ali. Basta que o lugar tenha sido ocupado na imaginação.

Nunca me esqueço de quando fui buscar meu “primeiro filho” em Poços de Caldas. Tudo arrumado, passado no papel, acompanhado a gestação, as idas ao hospital, da mãe, de lá. Na hora em que chegamos à cidade, um telefonema para a assistente social desmontou o castelo:
- Num tenho uma nutícia boa pro cês não!
O pai biológico havia voltado, convencido a mãe a não doar, e ela, pra ficar com ele, ficou com o bebê. Tava certa: ela era a mãe, melhor com ela! Mas quem disse que a gente se conformava? Na volta, bateu um horror de chuva na estrada. O carro dançava na pista. À chegada em casa, o quarto foi desmontado, peça por peça, embrulhadas em papel de seda azul. Começava o luto de quem nem havia chegado, mas já havia partido, por mares nunca dantes navegados.

O tempo passou. O luto foi feito. Outro filho veio. Uau! Né! Esse é meu, ninguém tasca, eu vi primeiro!

Mais tarde soube que “aquele” pai havia sumido outra vez, que “aquela” mãe, decerto, estava perdida outra vez, e que “aquela” criança (não mais filho), sabe Deus, sabe Deus... Nunca nem vi seu rosto. Não sei seu nome. E não me esqueço dele.

Um luto é uma luta. Uma batalha dolorosa, frequentemente relacionada à idéia de superar uma perda. Já perguntei: será que um dia superamos nossas perdas? O que sabemos é que à medida que o luto é feito, a dor da perda diminui, e a própria perda diminui restaurada de outras tantas formas, por outros tantos objetos e por outros tantos investimentos. Afinal, o afeto não cessa de afetar. O luto completado deixa você disponível para um novo investimento. Um amor cura o outro, não é? Você restabelece a conexão com o mundo. Volta a investir outras relações. Abrem-se novas possibilidades. (Eita palavra linda!) E a vida segue seu rumo, sempre em frente, calma e caudalosa como um grande rio.

Minha avó é que sabia avaliar o andamento do luto. Na missa de sétimo dia, dizia ela, a viúva está de vestido preto; na missa de trigésimo dia, de preto com bolinha branca; na missa de ano, conforme o finado, já está de vermelho. Feijão no fogo pra quem ta vivo!

Esse é o processo natural do luto. Mas uma grande encrenca pode acontecer NO MEIO DESSE CAMINHO. Vamos lá, o que acontece no meio do caminho?

Até agora tudo foi muito linear, os fatos foram descritos em linha reta. Mas quem disse que a gente anda em linha reta? O trajeto humano, geralmente, faz S. Paulo - Rio via Moscou. O que eu quero dizer é que ninguém abandona de bom grado qualquer investimento. A gente não se descola de um objeto nem mesmo quando outro já acena do lado de lá da rua. Nós somos conservadores: andamos na trilha conhecida. Não gostamos de mudança. Não trocamos o certo pelo duvidoso. Não abandonamos investimentos.

Para fazer o luto é preciso enfrentar a oposição a se desligar do objeto perdido. A oposição a se desligar do objeto perdido provoca desvios da realidade. Os desvios da realidade fomentam alucinações carregadas de desejo. “Sinto meu filho, aqui. É como se ele fosse entrar pela porta.” Centros de orientação espiritualista, muitas vezes, legitimam essas alucinações. Afinal, elas confortam. Chega a ser até concorrência desleal, tamanha a capacidade de elas garantirem que a falta não faça falta. Fazer o luto é difícil e necessário. Bota necessário nisso! O que se encontrar nesse caminho fazendo obstáculo ao luto ou provocando-o de forma destorcida, pode gerar mais tarde uma dívida difícil de saldar. Bota difícil nisso!

A depressão por luto é isso. Perder não é fácil. Não temos software para perdas. Até o "peso perdido" a gente encontra de novo! Perder um objeto sumamente investido, seja o que for, é sumamente doloroso. A gente fica de luto. Veste preto. Tem vontade de se perder junto. A gente chora tanto que parece que choveu na alma. Mas o luto, justamente ele, não deixa que a gente se perca. E, aos poucos, o ramo cortado brota. Choveu... né!

Há sempre o retorno da esperança. A esperança, não se esqueça, é um fio de cabelo louro ao sol. Mas quem foi que disse que você é cego?

O maior entrave ao luto vai ficar pra daqui a pouco.

Temos assunto!

Um comentário:

  1. Muito boa a parte sobre o luto/perda.

    Adorei a associação de memoria e investimento!

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