domingo, 21 de agosto de 2011

DEPRESSÃO, LUTO E MELANCOLIA – 4

“Jamais a dor esquecerá!” (Electra, de Sófocles)


E o luto? Por que é tão importante? O que aconteceu com os rituais de luto?

Estudos de antropologia afirmam que o declínio dos rituais públicos de luto, no Ocidente, está relacionado à carnificina da 1ª Guerra Mundial. O excesso de mortos (10 milhões) e de enlutados, muito maior que em todas as guerras anteriores, forçou a comunidade a fazer mudanças profundas. Que sentido faria para a comunidade ficar de luto por cada soldado morto quando os cadáveres sequer eram contados? De forma significativa, foi justamente nessa época que Freud escreveu “Luto e Melancolia” (1915-1917). O entendimento do luto como assunto individual veio à tona justamente na hora em que ele se apartava da vida comunitária.

Na África, os rituais de luto entraram em erosão depois da AIDS, principal causa de morte em pessoas entre 15 e 40 anos, sobretudo, na Tanzânia. A quantidade das mortes e a carência econômica tornam inviável a manutenção dos rituais tradicionais.

Em Minas ou aqui, quando alguém morria, o defunto era velado dentro da casa que ele construiu e onde ele viveu. Ali, as cadeiras eram afastadas, a mesa tirada do lugar, e todo espaço era redimensionado para que, ao redor dele no centro da sala, a vida inteira, dele e de todos os outros, fosse repassada, contada e recontada, lembrada nos pormenores. Os parentes de perto e de longe iam chegando, e gente que não se via há anos, estava ali, com todas as interjeições de direito do momento: “Nossa, como fulano cresceu!”, “Nossa! Como fulana engordou!”, “Nossa! Faz tanto tempo que a gente não se via!”. E, sobretudo, a maior de todas: “Eita! A gente só se encontra em velório!” E era verdade. Mais uma vez, como sempre, a vida se alimentava da morte, ali, um alimento simbólico de uma morte real. E assim a vida prosseguia seu rumo e a ela era dada a última palavra, porque muitas palavras haviam sido ditas e feitas. Palavra feita é quando o sujeito que fala está embutido na sua palavra e a sua palavra, embutida nele.

Hoje, dadas as circunstâncias e as necessidades, o defunto é levado para um lugar clean, bem longe, onde é velado, em salas contíguas, todos do mesmo jeito, como se o sujeito, depois de morto, perdesse toda singularidade que o caracterizou em vida e que, justamente, havia feito dele aquele que foi. De repente, por causa dos “trombadinhas”, instaura-se o costume noturno de trancar o defunto dentro da sua sala (que não é dele) e os parentes irem embora e só voltarem no dia seguinte à hora agendada. Em seguida, o (como é mesmo o nome dele?) é levado para um cemitério clean, onde, de tudo o que ele foi e fez, vai sobrar apenas uma plaqueta, cada vez mais minúscula, com um nome e duas datas. O Simbólico tem cada vez mais a cara do Real.

A uma senhorinha que tem pavor de ficar trancada, sozinha e morta, eu tive de prometer que passaria com ela, sozinho e vivo, aquela noite. Pelo que sei, ela ainda está por aqui... Eu invento cada coisa!

Os rituais de luto não cabem no tempo do “Time is Money”. As conseqüências desse sumiço e seus efeitos no esgarçamento do tecido social ocidental já podem ser observados.

O tabu da era vitoriana foi o sexo: assunto proibido. O tabu da nossa época é a morte: assunto impossível. E, no entanto, somos o tempo inteiro expostos a imagens de morte violenta no cinema, na TV e por aí afora. É surpreendente perceber o que o homem ocidental faz, todo dia, depois do trabalho: ele assiste programas onde a morte é assunto, em noticiários ou novelas, a cada dia mais truculentos. Parece que o fato disso ser reiterado infinitamente, ad nauseam, sugere que a morte, em última análise, é algo que não pode nem precisa ter nenhum significado. As imagens, cada vez mais sangrentas, se multiplicam, justamente, na ausência de uma moldura simbólica que possa mediar-lhas. É. O Real invade o Simbólico.

É possível fazer o luto? Vou repetir a pergunta de outra forma: é possível assimilar a perda? É possível conseguir perder?

Melanie Klein, fundadora da escola inglesa de psicanálise, nos diz uma coisa muito interessante a respeito do luto. Ela diz que o processo de luto pode ser viabilizado se os nossos objetos internos também estiverem enlutados como nós. O que são objetos internos? São as representações inconscientes de todos aqueles que fazem ou fizeram parte de nossas vidas. Enfim, é a multidão que vive dentro de nós. Dizer que todos estão enlutados como o sujeito e com o sujeito é mais ou menos aquilo que o poeta diz quando diz “que a natureza chora com aquele que está de luto”.

Mas, chora, como? Sobretudo, chora, por quê?

Na Ilíada, Homero escreveu que homens e mulheres choravam juntos com Aquiles pela morte de Pátroclo. Mas que, no entanto, “cada uma chorava por suas próprias dores” e cada homem “lembrando o que deixara em casa”. É isso o acontece nas demonstrações públicas de pesar, melhor, essa é a usina que as alimenta: nas manifestações públicas de pesar cada sujeito acessa suas próprias perdas. Milton Nascimento diz isso, de forma invertida, na música “Paixão e Fé”: “O povo esquece a sua paixão para viver a do Senhor”. Esquece, mesmo, ou justamente o contrário, acessa?

É assim. O luto público existe para permitir que o privado se expresse. A lamentação pública dos heróis, das Emma Winehouse, das princesas Diana, tem a função de oferecer um espaço para o lamento das perdas privadas e de permitir que, nem que seja por tabela, os outros nos ofereçam seu conforto naquela dor. Nem que seja, também, por estarem sofrendo junto à pretensa mesma dor. “O povo esquece a sua paixão para viver a do Senhor”.

Acontecia a mesma coisa com a solene instituição das carpideiras profissionais. À medida que as carpideiras lamentavam e pranteavam a morte do falecido, os enlutados ficavam liberados para curtir seus lutos pessoais que, por vezes, nem eram daquele momento nem por aquele falecido. Mas nesse fenômeno das carpideiras acontecia algo a mais. O fato de aquelas profissionais serem contratadas assinalava a lacuna entre o público e o privado. Havia uma certa artificialidade. E aquilo era fundamental para que o enlutado não permanecesse no mesmo lugar do morto, e assim pudesse situar sua perda num lugar diferente, num outro lugar, um lugar simbólico, de onde fosse possível olhar a perda.

É esse lugar que a sociedade ocidental dita moderna perdeu. Ela quis tanto catalogar as coisas, fenômenos e sentimentos que, simplesmente, perdeu o olhar que os simboliza a partir de outro lugar e gera conhecimento a cerca deles. Estou falando de conhecimento, não de informação. Simbolizar uma perda é fundamental para começar a pensar nela e ocupar o vazio que ela deixou com o conhecimento que só ela produz. Só o conhecimento da perda preenche o vazio deixado pela perda. É aí que entram os lugares. Eles inscrevem o conhecimento num espaço.

Durante a ditadura na Argentina, as mães dos desaparecidos – torturados e mortos pelos militares do regime – reuniam-se às quintas-feiras em um monumento público numa das principais praças de Buenos Aires. Silenciosamente, elas circulavam o monumento, cada uma segurando um lenço onde estava inscrito o nome do filho e a data do desaparecimento. Elas insistiam naquele gesto simbólico para que houvesse uma inscrição mínima que marcasse a perda. Nesse lugar, o Simbólico dá nome ao Real-sem-nome.

Essas inscrições mínimas são uma forma rudimentar de conhecimento, sinalizando a perda ao invés de escondê-la. A exclusão de fatos, como um suicídio ou aborto, impossíveis de virarem fala, gera uma pressão de guardar segredo bastante destrutiva. Só o conhecimento emancipa. De novo, repito, conhecimento não é informação nem captação e armazenamento de dados. A gnose dos gregos incluía o saber e o deixar-se saber pelo saber. Abrir mão desse conhecimento, ser amputado ou amputar-se dele é uma mutilação, um furar de olhos, jocastianamente falando.

Geoffrey Gorer, antropologista inglês, nos diz que a partir da metade do século XX tornou-se lugar-comum esconder do paciente o seu diagnóstico fatal. Isso nos mostra como a contemporaneidade lida com a relação entre morte e conhecimento. É interessante observar também que até o século XVIII, toda pintura com cena de leito de morte incluía crianças. Aos poucos, elas foram sumindo, das telas e na vida. Quando um genitor decide, para o bem da criança, que é preciso afastá-la do funeral do outro genitor, sabemos o tanto que isso pode acarretar de mágoa futura. Fica um buraco, uma foraclusão, como se no meio de um romance algumas páginas arrancadas fossem, justamente, as que faltam para dar sentido ao enredo. Eu gosto de dizer que na clínica a gente "desembrama" o nó, mas não inventa a corda. Cada vez mais está chegando um tipo de paciente que traz o nó, mas vem sem corda.

Onde, quando, como e por que os humanos acharam que o não-saber é saber? E até onde é nesse buraco do não-saber-tornado-saber que caímos?

Acho que, na próxima, podemos recomeçar daí.

Gente, o assunto não acaba!

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