quinta-feira, 11 de agosto de 2011

DEPRESSÃO, LUTO E MELANCOLIA - 1

- Cada comprimido encontra-se em total solidão!
Foi o que disse o paciente depois de abrir a caixa de antidepressivos e constatar que os comprimidos estavam separados uns dos outros por um espaço desproporcional de papel alumínio.
- Por que não estão todos juntos, num vidro, livres, soltos?
Sua idéia seguinte foi a de engolir todos juntos. Perguntei por quê?
- Para que não se sintam, assim, tão sozinhos!

Não fiz farmácia, não faço a menor idéia do porquê dos comprimidos estarem hermeticamente separados uns dos outros. Mas fiz outras coisas. Isso me deixa margem pra pensar na metáfora dos comprimidos isolados e na mensagem cruel que eles enviam a quem abre a caixa. “Assim é você”, eles dizem. A imagem desanimadora de unidades separadas transmite o modelo exato do individualismo atual, onde cada um é considerado um agente isolado, separado dos outros, orientado para a disputa de bens e serviços no mercado, em vez de ser orientado para o social, o esforço conjunto e o bem comum.

Viajei?
Não ligo. Essa situação-metáfora permite examinar a situação do sofredor no momento em que são priorizadas soluções medicamentosas que nem mesmo são poções mágicas. Pelo menos, se fossem! Mas não são. O que deixa a situação ainda mais triste. Seguir as instruções para tomar o comprimido ficou mais importante do que examinar as relações reais da pessoa com o medicamento. Relações que, por sua vez, poderiam mostrar como é a relação da pessoa com os de sua vida. A depressão, assim, é concebida como um problema biológico, uma infecção bacteriana, que requer um medicamento específico para que os sofredores voltem rapidamente a seus estados anteriores de produtores felizes.

O que foi que aconteceu? Nada além disso: a exploração da interioridade humana está sendo substituída por uma idéia fixa de higiene mental. É preciso eliminar o problema, em vez de entendê-lo. Mesmo sem entendê-lo. Somos tecnólogos.

Mas o quê faltou foi mesmo a serotonina?

O medicamento objetiva devolver ao sofredor níveis ótimos de integração e utilidade sociais. Isso é bom. No entanto, quanto mais a sociedade compreende a vida humana por meios mecanicistas, maior a probabilidade dos estados depressivos ramificarem. Parece ser uma decisão perigosa do profissional tratar uma depressão com o mesmo modelo de uma infecção que demanda antibiótico. Parece ser uma decisão perigosa do paciente requerer só isso. QUANTO MAIS OS SINTOMAS FOREM VISTOS COMO SINAL DE DESVIO OU DE COMPORTAMENTO INADEQUADO, MAIS O SOFREDOR SENTIRÁ SOBRE SI O PESO DA NORMA, OU SEJA, DO QUE SE ESPERA QUE ELE SEJA. Mas não foi justamente essa, entre outras, a razão dele estar deprimido?

A visão atual do ser humano como “recurso” (há os Recursos Humanos), na qual cada pessoa é apenas uma unidade de energia, um pacote de habilidades e competências que pode ser comprado e vendido no mercado, não está muito longe das baterias humanas da Matrix. Se a vida humana se tornou isso, por que se surpreender quando tantos escolhem recusar esse destino, perdendo sua energia e recusando seu potencial mercadológico ao caírem na depressão e no sofrimento?

Em 1917, Freud escreveu um ensaio chamado “Luto e melancolia”. Alguns que vieram depois dele consideraram (consideram) os termos ultrapassados. No entanto, aqueles termos eram precisos, continuam precisos, e nos dois sentidos, para nos ajudar a entender como lidamos ou como fracassamos ao lidar com o resultado das perdas na biografia de cada um. É aí que entra o luto.

Na psicologia popular, luto está sempre relacionado à idéia de superar uma perda. Mas será que alguma vez superamos nossas perdas? Ao invés disso, será que não as tornamos parte de nossas vidas de maneiras diferentes – às vezes proveitosamente, às vezes catastroficamente – mas nunca sem dor? O problema é como fazer a dor caber dentro do universo dos analgésicos e anti-anti-qualquer-coisa. Só há um jeito: falando nela. Mas quem vai ouvir?

O mecânico “ouve” o carro. O veterinário “conversa” com o paciente. No caso humano, as modernas complexas teorias de como respondemos mentalmente às experiências de perdas foram substituídas por descrições de comportamento que são superficiais, bioquimicamente dúbias e psicologicamente rasas. NÃO HÁ, NEM NAS ESTATÍSTICAS NEM NOS GRÁFICOS, RELATOS DA FALA REAL DOS PACIENTES, COMO SE OUVI-LOS JÁ NÃO IMPORTASSE MAIS. Perdeu-se o eixo da subjetividade. Isso lá é progresso?

Tem outra.

Todas as sociedades documentadas atribuem um lugar central aos rituais públicos de luto. A perda era inscrita tanto na comunidade como na subjetividade por meio de um sistema de ritos, costumes e códigos. Mudava-se o vestuário, os hábitos alimentares e o gestual em cerimônias altamente elaboradas. Estavam envolvidos o indivíduo enlutado, a família, os próximos e o grupo social. A perda era sempre tratada publicamente.

As sociedades modernas, na mesma medida em que desconfiam das demonstrações públicas de sentimentos, provocam essas demonstrações nos programas de domingo à tarde. Percebem a confusão? Não sabemos mais como lidar com o luto da perda. Ele sequer é feito. Para muitos, nunca acontece. Freud avisou que sem lidar com o luto, ele se transforma numa melancolia estagnada. No luto, sentimos pesar pelos mortos; na melancolia, morremos com eles.

Temos assunto!

2 comentários:

  1. Olá, concordo contigo em genero, número, grau... os anti... só escondem a dor... por isso ela dura tanto... E NÃO SE FALA MAIS NISSO... ESTÁ BEM COM OS ANTI.. E DEU, MAS A DOR FICA LÁ, não é como uma inflamação de garganta que o antibiotico cura. vc sabe mto bem do que estou falando, Vc trab. com as dores que ninguem vê.. por isso pessoas que tem estas "dores" são tão criticadas... Obrigada pelos seus escritos. Gde abraço

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  2. Nossa!
    Na veia! Esse texto está ótimo!

    A impressão que tenho é de que, hoje, somos ensinados a fugir dos lutos desde cedo... o texto me fez lembrar... minha mãe mesmo, quando eu era pequena me levava à tudo que era funeral, eu não entendia nada, mas sabia que tinha algo ali a ser encarado com respeito, algo a ser digerido de maneira digna, mesmo morrendo de medo de estar lá!
    Quando me tornei adolescente algo mudou e minha mãe passou a evitar todos os enterros, aí eu acreditava que era para ir!
    E ela falava: "Não precisava, melhor lembrar da pessoa viva"
    Enfim... lembro que isso causou uma baita confusão na minha cabeça... era para ir ou não?
    Era para viver o luto, chorar e tentar entender ou simplesmente ignorar?
    Depois de muito tempo me senti livre para decidir (mesmo adolescente!) e resolvi optar por comparecer aos enterros, causando a ira da minha mãe rsrs
    Dá pra entender?
    Ela parecia que ía no mesmo barco de uma tendência da época...
    Enfim... o luto é doloroso, mas tão necessário!

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