domingo, 31 de julho de 2011

COMENTÁRIO ESPICHADO – 10

A Bíblia (2)


“Todo escriba que se torna discípulo do Reino dos Céus é como um pai que tira do seu baú coisas novas e velhas” (Mt 13,52).


Na minha terra, linda terra, havia um rosário iluminado que despencava da frente da matriz nos meses de outubro e um painel iluminado que fazia fundo ao presépio nos meses de dezembro. Foram-se. Como muita coisa se foi. E isso me deu idéias para conversar hoje.

Quando a gente abre algum livro de teologia ou bíblia, o livro em questão, seja ele qual for, não é nem a energia nem a luz. Somente a fiação. E não cabe à fiação questionar a eletricidade. Apenas conduzir. Seria infantilidade confundir fiação e eletricidade. A maior dádiva do mundo adulto é não precisar abandonar o que faz parte do mundo da criança, mas saber que aquilo faz parte só do mundo da criança. O mundo adulto é outro.

Quando se abre um desses livros, sempre surgem duas questões que, a princípio, nem faziam parte da intenção do autor: se Deus existe e se a bíblia é inspirada por Ele.

A resposta básica é: 1) Deus existe, 2) a bíblia é inspirada por ele. A questão não é se, a questão é como: como ele existe, e como a bíblia é inspirada por ele.

Minha guru máster me disse outro dia que, na verdade, a teologia talvez seja “um grande comentário espichado da vida”. Uai? Não é que é! Tanto que eu já cheguei ao capítulo 10º, gastei falatório até não poder, e o mais curioso é que tem gente que lê! Na teologia tudo cabe, tudo se ajeita, tudo comporta, tudo conduz para que a vida, dificinha!, se torne mais viável.

A mesma guru máster já havia dito que um texto em cartaz há mais de 4000 anos precisava, pelo menos, ser conhecido. E é esse texto “em cartaz” que nos intriga. Esse texto é um conjunto de 73 livros (na conta católica) ou 66 (na conta protestante) reunidos num único livro. Um livro que contém uma biblioteca. Daí o nome, bíblia, que significa “livros”, em grego. Bíblia... biblioteca. Simples!

Esses textos não são literalmente a palavra de Deus nem são infalíveis. Ééééé...? Como assim?

Caso, primeiro, ele exista, segundo, ele tenha feito, Deus não ditou o texto, não usou secretários, taquígrafos datilógrafos, amanuenses ou digitadores, pra coisa ficar moderna, para poder dizer o que queria que a homarada e a mulherada do mundo escutasse. Esses “livros” (alguns são, praticamente, bilhetes) denotam cada etapa da vida de um povo – o povo de Israel e o povo cristão. São os povos do livro, melhor, os povos da biblioteca. Nessa antiga coleção, aqueles que acreditaram cristalizaram a sua fé. Essa coleção, aos poucos foi se tornando a fonte que realimentava a comunidade, isso, porque era possível a cada um reencontrar ali a sua própria escuridão e a sua própria clareza, como se fosse ele quem tivesse escrito. O processo foi o mesmo para o AT e para o NT, para a primeira e a segunda aliança.

E o processo era assim. Apresentava-se uma problemática humana ou um questionamento social, do tipo, por que aquela criança nasceu com aquele defeito físico, ou por que o trabalho pesa tanto e alguns se beneficiam mais que os outros? Numa palavra, por que o mundo é como é, por que a vida acaba, por que a gente vive, por que a gente morre, porque periquito tem bico torto? (Tira a última.)

Eram questões difíceis para o século XX AC, tempo de Abraão. Continuam sendo questões difíceis para o século XXI DC, nosso tempo. Quarenta séculos nos separam e ainda estamos com as mesmas encafifações, que nos deixam sempre com a mesma cara de Ó.

Os filósofos gregos do século VI AC teriam outras respostas, porque as perguntas seriam outras. Os gregos não se sentiam tão intrincados com as questões existenciais. Para eles, a vida e o mundo funcionavam de um modo diferente do modo como funcionavam para os judeus. Pra começo de conversa, os gregos não tinham nenhuma obrigação de encontrar sentido no mundo: eles não eram nenhum povo eleito e por isso não se sentiam responsáveis em dar qualquer resposta que justificasse ou esclarecesse o fato de Deus ter escolhido um povo entre outros povos e nem por isso a vida desse povo ter sido mais fácil, justo, por causa disso. Pelo contrário! A tal escolha, justo por causa dela, só complicou as coisas.

O que fizeram os judeus? Eles pensaram, pensaram, pensaram... A biblioteca chamada bíblia reflete a mania desse povo pensar. Eles pensavam, conversavam, discutiam (não havia TV!), e discutiam, conversavam, pensavam... E aí alguém ia lá e escrevia. Esse processo durava, geralmente, cem, duzentos anos. Eles não tinham pressa. Quem tem certeza, não precisa ter pressa nem faz concessões. (Boa essa, é do Freud.) Dessa forma, foi-se constituindo um pensamento, muito diferente dos pensamentos da mesma época ou das outras épocas. Geralmente, existe um pensador ou filósofo. Ele pensa, escarafuncha, ensina, escreve. Outros vão lá e pensam sobre o que ele pensou. E aí se diz: Platão falou isso, Lacan falou aquilo, Agostinho incrementou esse pensamento, Kant complicou tudo para ir mais fundo, Nietzsche desmanchou tudo para...

Com o pensamento bíblico foi diferente. Surgiu das bases, como se fosse um mutirão de idéias, de tal forma que, quem escreveu sequer pode se dizer o dono do pensamento, porque, realmente, não é dele. O fato de levar seu nome – Livro de Isaías, Evangelho de Marcos, Carta de Paulo – não significa que tenha sido ele quem descobriu, elaborou e escreveu. Ele apenas descreveu. Até o mais personalista dos escritores, Paulo, escreveu o que ouviu, e nem tudo o que leva o nome dele é dele. Há cartas dele que foram escritas por outros.

Duas variáveis são as mais importantes de serem retidas.

Primeira. O povo que escreveu essa biblioteca chamada bíblia não teve a si mesmo como referência nem o mundo nem os quatro elementos nem nada que estivesse na moda ou lançasse tendência na época. A referência foi (complicado isso!) Deus. (Hmmm...) Acho que não tenho mais nada a acrescentar. É que eles tiveram a o.u.s.a.d.i.a de trazer para a esfera público-social algo que pertenceu sempre ao foro íntimo-pessoal. Não é que os outros povos da antiguidade não acreditassem em Deus. Acreditavam num punhado, inclusive. Mas foi a proposta de estabelecer essa crença em forma de “aliança” que fez daquele povo um experimento único na História. Parece que a coisa pegou. Está aí até hoje!

Segunda. O pensamento contido na bíblia é feito de palavras: um oceano de palavras. Palavras são organismos vivos. O fato de a bíblia cristã ter permanecido tanto tempo trancada dentro de uma língua morta, talvez, e só talvez, explique a razão dela ter se afastado tanto do solo concreto da existência humana, justamente, de onde ela brotou. A única forma de manter essa biblioteca viva (e não estou falando da biblioteca de Hogworts) é mantê-la falante. Isso significa emprestar conceitos novos para que as antigas palavras mantenham a eloqüência que têm. Se a repetição se instaurar, se-sempre-se-falar-na-mesma-batidinha-de-sempre, e se alguns tomarem posse desse tesouro, brandindo-o inescrupulosamente como espada em defesa de interesses só seus, ninguém vai querer escutar. O que será uma lástima, porque esse tesouro oculta riquezas desconhecidas. Ninguém é dono dessa biblioteca, quando muito curador. A quem se apossar dela ou se pronunciar em seu nome, apliquem-se os rigores da lei: é roubo, estelionato e falsidade ideológica. Crime.

*

Essa é a luz e a energia. O restante é fiação. No entanto, sem fiação, e sem fiação bem feita, qualquer curto-circuito apaga tudo.

A razão de qualquer livro, escrito ou curso que vise clarificar a crença, não é questionar a fé individual de cada um. Seria a fiação questionando a eletricidade. A razão de qualquer tentativa é a de indicar por quais caminhos e vicissitudes a luz chegou até cada um. Não se questiona a eletricidade, menos ainda a luz, mas a fiação. Não se questiona a crença, mas as crendices.

Também não cabe ao texto ou curso fazer a luz iluminar a casa de cada um. Cada um deve ser suficiente para fazer ou deixar de fazer isso, por si mesmo. A razão de um texto é ocasionar o maravilhoso. “Ah! Então foi assim!”. É. Foi assim. Conectada a fiação, a luz se acende, a gente entende tudo e tudo fica mais claro. “Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei adulto, deixei o que era próprio de criança” (1Cor 13,11).

É preciso crescer. Não se pode continuar olhando o rosário iluminado da matriz, o painel do presépio, ou qualquer outro efeito luminoso, do modo como era visto quando éramos crianças. Isso é mais fácil, sem dúvida. Mas é perigoso. Se o adulto se mantém criança, facilmente, se perde na multidão e agarra a mão do primeiro que apareça com promessas de lugar seguro. Isso é perigoso! Por isso, é preciso crescer. É constrangedor vê gente grandona pensando e agindo como criança, e o que é pior, com medo de crescer.

Crescer não significa jogar fora aquilo que constituiu a identidade que abriga o ser. Crescer é outra conversa. Crescer é transformar o jeito de ser da criança no jeito de ser do adulto, o jeito de ver da criança no jeito de ver do adulto. Troquem esses verbos por outros, como entender, captar, vivenciar, maravilhar-se... Vão trocando... Sobretudo o último verbo: maravilhar-se. Quando o adulto se maravilha, algum alvará de licença é dado à criança que há nele, para que ela se manifeste também, mas como adulto.

Abrir a bíblia é ocasião de maravilhamento. É a história de um povo que se encontra ali. Mas é também a sua história, contada ali, em detalhes, para que você se reencontre enquanto lê. É o álbum de fotos da sua família que você encontra ali, com todas as fotos, para que você se reconheça enquanto olha. Estão ali todas as fotos: as de estúdio, sem graça, e as quadradinhas, de antigamente, já quase sem cor, onde você rola na praia à milanesa. Lindo, né! Também são bilhetes e cartas que lhe foram escritos, durante todas as vidas de todos os que passaram por aqui antes de você, para que você possa encontrar um caminho seguro. Precisa, né!

Se acaso, algum dia, a vida lhe der a chance de ir a minha terra, em outubro ou em dezembro, não precisa procurar: você não vai encontrar nem o rosário iluminado nem o painel do presépio (com a corujinha no galho da árvore, bem no canto, de olho arregalado, olhando pra você). As crianças de hoje não sabem do quê a gente sabia antes. Antes? Antes de alguém ter cortado a fiação e desligado a luz. É que, alguém, por lá, confundiu fiação com eletricidade. E pensou que a fiação pudesse ser dispensada. Foi pena! As crianças de lá têm menos coisas para ver e os adultos, menos histórias para contar.

Não se preocupe quando essa fiação lhe parecer confusa. É provável que o Grande Eletricista também tenha de refazer a fiação dele e religar a sua luz, inúmeras vezes. É provável que ele saiba onde os fios se encontrem desencapados e o curto-circuito possa acontecer. Não se preocupe se, às vezes, as coisas lhe pareçam confusas. Quanto mais escura for a noite, mais luminosa será a aurora.

“Agora, vemos como num espelho e de maneira confusa. Mas depois veremos face a face. Agora, o meu conhecimento é limitado. Depois, conhecerei como sou conhecido” (1Cor 13,12).

SAUDADES DA CAUDA

Apesar da razão, da inteligência, do polegar e do privilégio de caminhar com dois pés, é evidente que a cauda faz falta ao homem. Ao que tudo indica, foi a perda desse órgão que levou o animal humano a tornar-se mentiroso. O que não é nada estranho de pensar. Basta levar em conta que é na cauda que se concentra a eloqüência sentimental do cão, sua alegria e seu medo, sua inimizade e sua gentileza. Ao ser privado da cauda – em que pese o cumprimento de alguma terrível punição divina! – o homem perdeu igualmente seus mais primitivos e verdadeiros sentimentos de animal selvagem. Sim, verdadeiros! Ou você já presenciou algum animal selvagem mentindo ou trançando informações com duplo sentido? Bicho não mente. Quem mente é o homem.

Quando perdeu a cauda, o homem desceu das árvores. Quando desceu das árvores, caiu do paraíso. Quando perdeu também o paraíso, teve de se acostumar a ser gente. E ser gente é complicado. Complicadíssimo! Ser gente é sempre expulso, mesmo de algo que nunca se saiba o quê.

A cauda era o ponto de apoio. Perdido esse ponto, o homem perdeu seu centro físico e espiritual, transformou-se num animal terrestre, e com isso precisou de um outro centro de equilíbrio e, consequentemente, também, de um novo idioma que lhe permitisse substituir em parte, mas só em parte, a extraordinária capacidade de expressão da cauda. Assim, teve de aprender a falar, a sorrir, a caminhar sobre dois pés, a dançar e a rezar, tudo isso através de uma lamentável e desesperada improvisação de suas faculdades expressivas. É que ele havia perdido a cauda! É que ele não tinha mais a cauda! E o pior, o pior de tudo, é que todas essas faculdades reunidas e usadas ao mesmo tempo, nunca conseguiram compensar, com sua dispersa e convencional falta de eloqüência, a irreparável perda da cauda.

A carência desse órgão indispensável fez do homem um animal sem atrativos. É claro que ele precisou desencadear um interminável processo de invenção de novos recursos para tornar possível a reconquista da ostentação desse órgão perdido. O homem aprendeu a cantar e a voar, mas claro, sem conseguir nem de longe imitar os pássaros. Aprendeu a andar na corda bamba, no entanto, com menos graça e menos senso de equilíbrio dos que os gatos. Aprendeu a fazer versos, a escrever, a filosofar e a suicidar-se, procurando superar todos os outros animais, e todos juntos, e dessa forma justificar sua inverossímil existência sem cauda. (E, por que não, sem causa.)

Contudo – riam comigo – o mais hábil dos homens não valeria nem a metade do valor que teria um cachorro cantor, um elefante equilibrista ou um rinoceronte filósofo. O segredo que macacos, leões e cães guardam ao encenar um espetáculo de circo baseia-se, simplesmente, no fato deles apenas terem aprendido a imitar os homens. Mas não pára aí. Ao imitar os homens, esses animais revelam e denunciam de imediato o ridículo que o homem guarda em sua trágica e inconsolável condição de bicho sem cauda.

A gente morre de rir de um macaco de terno e gravata dirigindo um carro. Mas é da gente mesmo que a gente ri. Passar a vida de terno e gravata, dirigindo carros e se achando o máximo, por causa disso, é risível. O macaco do circo apenas nos oferece a ocasião. Então, a gente vai lá, enfrenta fila e paga e se senta na mais-desconfortável-cadeira-que-possa-haver-no-mundo só pra rir de si mesmo. Que falta faz a cauda! Com ela, o riso seria mais solto e sensato e verdadeiro. E grátis.

A vida seria muito mais cômoda e pitoresca se os homens tivessem cauda. As mãos, por exemplo, poderiam se ocupar de todas as suas funções, integralmente, sem a necessidade de cumprir seu melancólico papel de cauda emprestada. O amor seria muito mais seguro e sincero se as caudas não permitissem ao restante do corpo mentir. Já imaginaram quantas possibilidades para a moda se frustraram com a perda desse órgão sem preço?

Não resta dúvida que foi um negócio funesto e de saldo negativo, ter trocado uma coisa tão útil e decorativa, como é a cauda, por algo tão supérfluo e incômodo, como é a razão. Ainda mais, se a razão nos faz perceber sem ver que algo foi perdido, para sempre perdido, sem que saiba onde, quando e, sobretudo, o quê.

sábado, 30 de julho de 2011

O PERU DO MENINO

O menino havia esperado o ônibus na calçada marcada com a faixa amarela e o havia tomado depois de todos os outros passageiros. A diferença é que o menino levava um peru debaixo do braço. E qualquer um que já tenha visto um peru debaixo de um braço sabe que não existe animal mais pacífico, inofensivo e sério, e que nenhum outro exercita e representa com maior propriedade o seu papel de vítima propiciatória.

O menino sentou-se numa poltrona lateral, do lado da janela. Levava o peru a alguma parte. Vendê-lo? Trocá-lo? Dá-lo? Ou nada disso. Poderia ser apenas, por mais que isso pareça estapafúrdio, para dar uma volta com ele, da mesma forma como as senhoras levam seu cãozinho favorito. Bicho é bicho, gente! Uai? Quem nunca pecou que atire a primeira pedra. Em todo caso, o menino ali estava, pacífico e compenetrado, como o peru.

Subitamente, quando já parecia ter passado o momento oportuno para levantar a bandeira do protesto, a senhora que ocupava o assento vizinho começou a dar mostras de vívido e insustentável incômodo. Logo, logo, como num processo de reações internas, levou as mãos às narinas. Em seguida, afastou-se. Procurou o cobrador com olhar carregado de ameaçadoras insinuações. Finalmente, quando a fervura interna chegou ao ponto de ebulição, liberou o estridente protesto que mais parecia um verso fabricado para literatura de alcova:
- Se não tirarem esse peru daqui, vou desmaiar!

Todos sabiam, com certeza religiosa, que aquela saudável e afetada senhora seria capaz de tudo, menos de desmaiar. Mas o protesto havia sido formulado num tom tão contundente, definitivo e irrevogável, que começaram a temer que fosse acontecer o que sempre acontece. Iam mandar o menino e o seu peru descer do ônibus.

E ele continuava ali, o rosto virado para a janela, a face quase colada no vidro, sem preocupar-se absolutamente com o que a senhora pudesse pensar, ousasse dizer, viesse fazer. Em seus braços, o peru ostentava toda a distinção de um cavalheiro arruinado, de um desses mendigos que todos rejeitam quando lembram que, dez anos antes, era um dos mais abonados comerciantes da cidade. Digno e distante, o peru parecia ser, ali, o único ser capaz de desmaiar em conseqüência de qualquer mau odor.

Então, alguém propôs em voz alta que se rateasse o preço da passagem para que o peru pudesse ocupar o lugar da mulher. Outro, menos zombeteiro, ofereceu-se para trocar o seu lugar com o da indisposta dama. Ela, porém, é que não parecia disposta a transigir. Pelo contrário! Rechaçando todas as fórmulas propostas, insistiu, com palavras de discurso cívico, não poder admitir que num veículo público animais emplumados compartilhassem da mesma categoria de atendimento que animais sem plumas.

Apesar da raivosa severidade daquela passageira patrioticamente antipática, o peru continuava digno, impoluto, impassível, imperturbável. Nunca se viu peru mais insultado, mas tampouco animal mais discreto e silenciosamente irônico.

Quando o ônibus diminuiu a marcha e, lentamente, deu a volta à praça, alguém de fora, instigado por destampado compromisso libidinoso, à passagem de formosa dama em trajes de pré-praia, e sem saber quem ia dentro do ônibus, soltou o mais sonoro e sibilante "fiu-fiu" que já se viu! Foi o que bastou.

Gelou-se inteira a comoção dos passageiros.

O peru voltou-se para a destemperada dama a seu lado e discursou em sua própria defesa do modo como lhe coube fazer: "glu,, glu, glu, glu e glu!"

Preciso dizer mais? Ela desceu no ponto seguinte. De longe ainda pôde ouvir todos os que ficaram, lá de dentro, regozijando-se com o "fiu-fiu" mais longo e oblongo de que se deu notícia mais tarde.

E o peru, agora, livre dos entraves da compostura civilizatória e da culpa católica, pode soltar todos os seus pulmões de ave selvagem que era, antes de ser domesticada, e discursar, à moda aviária e sob o aplauso dos circunstantes, tudo o que em todos os anos lhe ficou preso na garganta: "glu, glu, glu, glu e glu".

Pois é. Quem tem boca vai... Não. Quem tem dinheiro vai a Roma. Quem tem boca, grita. Demore o que demorar, um dia, grita.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

COMENTÁRIO ESPICHADO – 9

Algumas pendências

O valor de um texto não é o de ter resolvido um problema, mas o de tê-lo encontrado e formulado.

Foi isso que me fez correr atrás desse texto corajoso, em busca de uma teologia escondida sob camadas e mais camadas de tinta da superficialidade oficial. É do ofício do pesquisador produzir cortes com o instrumento de que dispõe: a palavra. Rara e fugaz, ela é de imediato seguida pela costura significante.

É nessa dialética de corte e costura que se elabora o pensamento, qualquer um, inclusive o pensamento teológico. Manter o tecido de qualquer prática teórica é privilégio de poucos que realmente fazem um pensamento avançar.

Desde o corte inaugural, circuncidante, dado pelo velho Abraão, o pensamento teológico judaico-cristão se debate entre ser oficial, burocrático, institucional ou ser uma espécie de feiticeiro, uma ocasião de surpresa, daquilo que desconcerta, arrisca e ousa, e com isso avança e produz sempre um novo saber.

Ao longo dessa falação, que se arrasta por longos 8 capítulos e nem eu esperava que fosse tão longe, algumas questões foram pipocando, aqui e ali, e, então, resolvi juntar tudo numa inter-falação que desse conta dessas pendências. Vou tentar respondê-las em três itens, com os quais pretendo resolver três equívocos, sem deixar de ter em mente que, nesse caso, pretender já é uma baita pretensão.

As questões são:
1. Fé e representações imaginárias;
2. Jesus e Cristo;
3. Teologia e devoção.


1. A questão fé e representações imaginárias

Parece que é esse o item onde os leitores mais derrubaram obstáculos no salto. Alguns inclusive me perguntaram se não se tratava de mais uma desconstrução da fé. Assim como Nietzsche havia desconstruído o pensamento, este senhor velhinho, o escritor do livro, não estaria também ele desmontando tudo o que outros levaram 4 milênios para construir?

Posso perguntar: que problema existe em deixar as coisas um pouco soltas? Que medo é esse? Pra quê existir manual-de-instrução pra tudo? Até pra crer?

Observe o seguinte: tudo o que vem sendo tratado (nos outros 7 capítulos) só diz respeito à Igreja Latina, vulgarmente, chamada de Católica. Nem a Igreja Grega nem a Igreja da Reforma têm essa obsessão com a ortodoxia, tanto e quanto e como a Igreja Latina. A Igreja Latina permaneceu no formato no Concílio de Nicéia (325 DC), que foi reformatado no Concílio de Trento (1545-1563 DC) e congelado pela Contra-Reforma e pela Companhia de Jesus. Os dominicanos, aqueles da Inquisição (séc. 13...), e os jesuítas, aqueles da expansão (séc. 16...), tomaram a si o encargo de delimitar a mensagem da fé numa única representação: a que fosse favorável a quem mandava e palatável a todos os outros.

Mas peraí: o que jesuítas e dominicanos se tornaram hoje é outra história. Imagino até que tenham certa vergonha dos maus caminhos que andaram no passado. É que mesmo com a melhor das intenções, eles cometeram desvios imperdoáveis. E que ninguém venha dizer que isso fazia parte do contexto histórico. Francisco de Assis e os franciscanos são contemporâneos dos dominicanos e não cometeram as mesmas atrocidades. Nenhum dos franciscanos presidiu a Sagrada Inquisição; pelo contrário, eles foram até vítimas. Teresa D’Ávila, João da Cruz e os carmelitas são contemporâneos e conterrâneos dos jesuítas, e foram por outro caminho de evangelização.

O que está em jogo para ser desmontado ou, se preferir, desconstruído são as representações imaginárias herdadas de uma era de despotismo clerical e que se tornaram herança maldita da qual a Igreja Latina não consegue se libertar. Com o início desse milênio, todo mundo esperou que as mudanças operadas pelas altas esferas do poder religioso oficial caminhassem para uma abertura (abertura!). Ledo engano! Elas só seguiram o modus operandi de sempre: mexeram para não mudar. E quando se pensava que a coisa não tinha mais aonde piorar, aí que piorou de vez.

Assistimos hoje a um triste divórcio entre religião e vida.

Se for preciso desconstruir, vamos nessa, mas não o núcleo da tradição. Tradição é um corpo vivo. Só morre quando nada mais nele é mudado. O modo como se vivencia o núcleo da tradição é totalmente mutável e precisa ser, e deve ser, ou estagna, apodrece, morre, e não interessa mais a ninguém, a não ser a quem se esconda atrás de fachadas arcaicas e defasadas. É esse o escopo do livro que venho comentando. No meu ver, importantíssimo. O autor é um erudito de línguas antigas, de 85 anos, com mais de 30 obras publicadas, e jesuíta, veja bem. Parece até que tomaram jeito!


2. A questão Jesus e Cristo

Como salientei, não há desconstrução da fé, não há desconstrução de Cristo. O que existe é um medo apavorante de afastar-se do bem-sucedido pensamento acomodado, porém, morto e apodrecido. O Cristo continua no mesmo lugar onde Paulo o colocou. É que, antes de Paulo ter inventado Cristo, só tínhamos Jesus. E tudo corria bem. Paulo introduziu Cristo e todas as querelas futuras nasceram daí. Um grande teólogo do passado disse que nenhuma fratura eclesial aconteceu por causa dos evangelhos; todas se deram a partir das cartas paulinas. Eu admiro profundamente Paulo por aquilo que foi. Mas tenho grandes reservas no modo como ele apresentou o cristianismo “dele”.

Perguntem, perguntem... Mas e os evangelhos? Eles também falam de Cristo! Sim, falam, porque todos eles são posteriores a Paulo. Paulo inicia sua carreira de escritor provavelmente em 54 (data da primeira carta) e morre em 64. O evangelho de Marcos (o primeiro da cronologia) só vai aparecer em 70, depois da destruição de Jerusalém. Portanto, os evangelhos foram influenciados por Paulo e não o inverso. Lucas, inclusive, foi discípulo de Paulo.

Com essas representações imaginárias, a Igreja foi superlotando os seus átrios e obscurecendo a figura de Jesus de Nazaré ao longo dos séculos. Era preciso a figura de um Cristo Pantocrator Todo-poderoso, ao gosto medieval. Só ela teria a força de levar, por exemplo, às cruzadas. E já que falei delas, houve duas de uma morbidez estonteante: a primeira, pregada por um louco mistificado, que levou milhares de camponeses da Europa para morrer sem armas numa luta suicida. E houve a das crianças (daí vem a palavra infantaria = infantil), onde morreram 4000 crianças absolutamente ao desamparo e aos horrores do vale-tudo da guerra. A figura de “Jesus de Nazaré” não teria apelo suficiente para soprar a brasa dessas barbaridades. Desmontar as ofertas de consumo das representações da Igreja Latina (a Grega não cometeu esses desatinos), não é desmontar Cristo. Pelo contrário! É resgatar Jesus.

Essa relação Jesus e Cristo é intrincada. Talvez, seja o ponto mais complicado do núcleo da fé cristã.

No Concílio de Nicéia (325 DC), ficou definido que as duas pessoas – Jesus e Cristo – seriam uma só. Minto. Em Nicéia, ficou definido que só haveria uma pessoa: Jesus Cristo, em duas naturezas: humana e divina, Jesus e Cristo. Complicado, não falei! Mais ou menos como se fosse queijo e goiabada. O queijo com a função de representar a natureza humana e a goiabada com a nobre função de representar a natureza divina. (Alguém me ajude, por favor!)

Os concílios seguintes ratificaram o Concílio de Nicéia. Constantinopla (481 DC) o consolidou. Ou seja, aquele menino que nasceu na província Romana da Síria, num lugar esquecido e infeliz chamado Judéia, mais precisamente, Galiléia, chamado Yeshuá bem Yoseph, filho de um operário da construção civil e ele mesmo operário como o pai – tcham – depois de Nicéia, adivinhem o que aconteceu? Foi declarado Deus. (Alguém me ajude, por favor!)

De acordo com o pensamento grego, não havia nenhum problema. Os gregos estavam acostumados a toparem com seus deuses nas esquinas, vestidos como homens comuns ou até como animais. Zeus se travestiu de cisne e o Espírito Santo virou pomba. Ficou tudo ali, na mesma forma aviária.

Já pelo pensamento judaico (estão lembrados que é a fonte de tudo, né?) essa de humano e divino num ser só é muito difícil de engolir. A grande ruptura com o judaísmo se deu em Nicéia. A partir dali, realmente, o cristianismo foi “outra” coisa.

Então, quer dizer você está falando que Jesus não é Deus? Não. Só estou afirmando que – primeiro – durante 300 anos antes de Nicéia essa dúvida ficou pendente e as pessoas conviveram muito bem e obrigado com ela; – segundo – para que a mensagem do evangelho surtisse efeito, essa figura da divindade acoplada à humanidade poderia ser dispensada. Se Jesus for Deus ou não for, sinceramente, eu abro mão de convicções delirantes e me permito guardar essa surpresa para lá, caso eu chegue... lá! Gosto muito desse sujeito e o admiro demais, a ponto de evitar fazer dele um fantoche de interesses políticos coloniais.

Acho que nunca ninguém se deu conta, mas o monoteísmo, como foi implantado, é uma das grandes causas da intolerância. A intolerância é o pior dos comportamentos. E a pior de todas as intolerâncias sempre foi a religiosa. (Alguém me ajude, por favor!)


3. A questão teologia e devoção

Até aqui, estive falando do núcleo da teoria. Agora, vamos às rebarbas do pensamento.

Esse equívoco – teologia e devoção – não deveria existir, mas existe, e não apenas nas igrejas cristãs. Existe também no islã, no budismo, no confucionismo. No budismo, essa dicotomia fica salientada na distância entre a pregação de Buda e as imagens que fizeram dele (gordo, bonachão, risonho, bisonho): um imaginário que entulhou a percepção ocidental a respeito de um trem muito sério como é o budismo.

Apenas nas religiões animistas inexiste a cisão teologia-devoção, porque no animismo não existe nem uma coisa nem outra. Nas religiões afro, polinésias, celtas, etc., não existe algo que se possa chamar nem de teologia sistematizada nem de devoção do espírito. O que existe é apenas uma prática incumbida de aplacar a divindade para alcançar benefícios e proteção. Pronto.

Teologia e devoção não existiam também nas religiões do Estado, como, por exemplo, a religião politeísta romana do culto aos deuses protetores de Roma e ao imperador. Para haver devoção é preciso haver indivíduo. Naquelas religiões, o indivíduo não contava porque não existia, existia apenas o Estado: Roma. Os indivíduos, como tudo, aliás, eram SPQR – Senatus Populusque Romanorum – pertencentes ao senado e ao povo de Roma. SPQR era tatuado no braço dos soldados, e essa tatuagem se chamava sacramentum. Daí, a palavra “sacramento”: a tatuagem de Deus na alma do crente. Mas essa já é outra história. Veja bem, no Estado romano existia o povo, o que não existia era o sujeito.

O judaísmo e o cristianismo deram uma enorme colaboração para o surgimento do sujeito ocidental. Numa e noutra, não bastava acreditar, era preciso entender o que se acreditava, e para isso era preciso ser instruído na crença, e para tanto era preciso saber ler, numa palavra, instruir-se. Libertar-se. Você tem noção de como o Império Romano acolheu essa idéia? Qual império você conhece que gosta de gente instruída e lida e culta e livre?

Daí, as perseguições. É uma bobagem sem tamanho pensar que um império inteiro tenha se voltado contra um grupo de joão-ninguém só porque esse grupo não queimava incenso ao imperador e, dessa forma, ameaçava o Estado de incorrer na ira de deuses ofendidos. Bobagem! O Império Romano era bastante sofisticado pra não acreditar nisso. Só pra citar um exemplo, ele nunca interferiu nos cultos locais. Quando Pôncio Pilatos introduziu estandartes romanos no Templo de Jerusalém, a chiadeira dos judeus chegou até Tibério e Pilatos foi repreendido publicamente. O culto aos deuses do império e ao imperador era simplesmente uma das formas de manter coeso o Estado, e de ter cidadãos devotados a morrer por ele.

O despontar de uma nova crença, melhor, um novo modo de crer em que as pessoas precisavam ler para saber, conhecer para entender, desestabilizou o status vigente do Império Romano. Quer dizer que, então, havia gente querendo entender aquilo que acreditava? Onde é que ia dar isso!

Pense bem, a Igreja Latina não fez diferente. Aliás, fez o mesmo, sobretudo, no que tange à proibição da leitura da Bíblia, após Concílio de Trento (1545-1563 DC). Santa Teresinha de Lisieux, declarada Doutora da Igreja, não tinha sequer um exemplar completo da Bíblia, porque era proibido, e ela se queixava disso. Era como se as autoridades dissessem: Afinal, pra quê ler? Pra quê entender? Nós entendemos por vocês. Vocês só precisam rezar, ficar bonzinhos e fazer doações. Eita sô! Foi preciso esperar a segunda metade do século XX, 400 anos!, para que as portas da Escritura fossem de novo abertas ao grande público fiel.
Foi patrocinando um retrocesso ao modus operandi anterior ao cristianismo, porém, dentro dele mesmo, que a Igreja Latina manteve sua hegemonia. Se o povo não entendia o que acreditava era porque não sabia ler. Não sabia ler, porque o início da Idade Média coincidiu (coincidiu só?) com o fechamento de todas as academias filosóficas e isso fez descarregar o caminhão de cimento da oficialidade religiosa sobre a cultura ocidental. O que fez, então, o povo se não conseguia mais entender sua própria crença? Criou uma crença paralela devocional feita de santos, milagres, magia e medo. Uai?

Uma das urgências do Concílio Vaticano II (1963-1965) foi a de calafetar o fosso que existia entre devoção e teologia. Infelizmente, de lá para cá, esse fosso só tem aumentado. As novas técnicas de abordagem dos “novos católicos” tornaram, praticamente, intransponível a cisão entre religião e mundo.

Vou dar um exemplo.

Para quem se interessar, eu tenho uma entrevista de um professor de liturgia do Colégio Santo Anselmo, dos beneditinos, de Roma, sobre o perigo que se abriu com o disparate da aprovação da volta à missa em latim, no rito tridentino. A idéia seria a de proporcionar formas diferentes de celebração a quem preferisse essa celebração ao invés da missa do rito do Vaticano II. E eu que pensava que preferência era só uma questão de sabor de sorvete! Missa também virou sabor! Chocolate ou morango?

Não se trata apenas de trocar de língua: rezar missa em latim ou em qualquer outra língua. Não é esse o problema. Não há o menor perigo em substituir uma língua por outra (inglês, espanhol, italiano, latim), desde que não se mexa na estrutura do rito. No entanto, o que está sendo proposto é a paridade entre um rito do século XVI, quando se pensava nas coordenadas do século XVI, e um rito do século XX, quando as coordenadas de pensamento são completamente diferentes. A missa do Concílio de Trento (século XVI) foi moldada para um determinado espírito de época. A missa do Concílio Vaticano II (século XX) foi moldada por outro espírito de época. 4 séculos as separam. Dizer que são a mesma coisa é o mesmo que dizer que o homem não mudou nada nos últimos 4 séculos. Só pra lembrar, 400 anos atrás, acreditava-se em dragão, não havia anestesia nem antibióticos nem talheres. Acho que mudamos um pouquinho, né.

Um pensamento mais simplista, ingênuo, diria que o sacrifício de Cristo é o mesmo. Sim, o sacrifício de Cristo é o mesmo, e pode ser celebrado em qualquer barracão desde que a matéria, a forma e a intenção sejam preservadas. Não é esse o problema. A questão é o transtorno que essas duas formas, antagônicas na estrutura e no escopo, vão criar na estrutura de pensamento do homem do terceiro milênio, se forem colocadas lado a lado, e se tanto o fiel como o celebrante puderem, simplesmente, escolher entre uma e outra, repito, como se fossem sorvete. “Não estou com vontade, hoje, de celebrar a missa do Vaticano II. Ficou tão sem graça! Vamos celebrar à moda tridentina?” Daqui a pouco vai ter gente se vestindo à moda do século XVI pra ir à igreja. Acha difícil! Como disse o professor, na entrevista, o papa, supremo legislador, poderia legislar sobre a pertinência de uma forma ou outra, mas jamais dizer que duas formas antagônicas sejam igualmente válidas. Parece que a Igreja Latina tem vocação suicida.

Pelo menos, parece que ela definitivamente não conhece o mundo onde atua.

Esta longa digressão serviu apenas para mostrar como teologia e devoção conseguiram se tornar paralelas que não se encontram nem no infinito. Não era pra ser assim, mas foi isso o que aconteceu. Ainda fico triste quando ouço notícias de certas exegeses executadas no sermão de domingo. O povo se alimenta de comida estragada e bebe água salobra. Ainda fico triste. Um dia, quem sabe, não ficarei mais.

A pergunta do livro, a única pertinente, que eu gostaria de sustentar é essa: HAVERIA COMO SER DIFERENTE, SE A OFICIALIDADE TIVESSE TOMADO OUTRO CAMINHO? POR QUE MANTER O MODELO ATUAL QUE SÓ AUMENTOU A IGNORÂNCIA? OU SERÁ, JUSTAMENTE, ESSA A RAZÃO?

Quero dar três exemplos para mostrar como funciona a dicotomia teologia/devoção. Os exemplos são NS Aparecida, São Jorge e o papa, como protótipos de até onde a devoção pode se afastar da teologia e as duas podem se isolar do mundo.

1) NS APARECIDA
Respeito demais essa devoção. Faz parte da minha identidade mineira. Não encontro grandes obstáculos para enxertá-la no tronco da teologia cristã. Maria é a mais bela filha de Sião, aquela que, ao contrário de Tomé, acreditou para ver: creu, por isso viu. A devoção à Maria surgiu no século IV DC e, de lá pra cá, nunca deixou de crescer e de amadurecer. Ela está inserida na árvore teológica que remonta às grandes e fortes mulheres bíblicas: Sarah, Miriam, Débora, Ruth, sobretudo, Ester. Além disso, o fato de uma Virgem negra emergir das águas e das agruras da vida na época da selvageria da escravidão negra, não deixa de ser um sinal eloqüente num universo simbólico a ser povoado de sentido. Nesse caso, devoção, teologia e mundo se dão as mãos e caminham juntas.

2) SÃO JORGE
Um amigo da baixada fluminense precisa fazer malabarismos para encaixar esse santo dentro da teologia cristã. Na baixada fluminense, imaginem, isso é vital. Já pensou dizer que São Jorge não existiu! É pecado! Contudo, não há nenhum registro histórico da existência de São Jorge. Além do mais, essa história esdrúxula de matar dragão não cola, né! No entanto, o sujeito sozinho é padroeiro da Capadócia, da Inglaterra, da Rússia e da nação Corintiana.

Agora me dia, onde encaixar São Jorge na teologia cristã? Só com muito malabarismo e com rede protetora por baixo. Se algum teólogo disser que “isso é invencionice” o advogado de defesa do santo terá de ficar quieto e fazer de conta que nem abriu a boca. Nesse caso, a cisão entre teologia, devoção e mundo criou um abismo quase intransponível, a menos que o equilibrista não tenha medo de altura.

3) DEVOÇÃO AO SANTO PADRE
Essa é de matar! No seminário, na década de setenta, ainda éramos incentivados a ter devoção ao santo padre o papa. Faça-me o favor! Respeitar o papa, vá lá. Mas devoção ao papa é um resíduo arcaico dos faraós do Egito e do imperador romano em sua pretensão à divindade. Isso não é só abissal: isso nem é devoção. E teologia? Ara!

Pelo lado antropológico, dá pra enxergar, nessas devoções, ranços antigos de antropomorfismo. O antropomorfismo é uma etapa da construção do pensamento infantil, quando as crianças conversam com os animais, dão forma humana aos brinquedos, tratam seres animados e inanimados como se fossem da mesma matéria. E, de certa forma, são: pertencem à matéria da fantasia. Não há nenhum problema nisso. Dependendo de como estiver a constituição psíquico-emocional do sujeito, chega a ser necessário. Existem estacas de madeira que, mesmo podres, seguram a casa e não podem ser retiradas.

De modo que, se você coloca um copinho de pinga pra Santo Onofre e isso lhe traz alívio nas adversidades ou algum conforto nessa coisa emperrada que é a vida, por favor, continue. Vê se, pelo menos, coloca pinga boa! O mesmo vale, caso você coloque comida para o Buda, ou não-sei-o-quê-pra-não-sei-quem ou simplesmente acenda aquela vela votiva diante da Virgem. Tudo vale a pena se a alma não for pequena, não é!

Mas o pensador-teólogo não tem esses direitos. O teólogo tem a responsabilidade e o peso extra de responder à altura sobre aquilo que crê e aquilo que não crê. Aliás, todos não deveriam? “Estejam sempre prontos a responder, a todo aquele que pedir, qual é a razão da esperança que vocês têm” (1Pe 3,15).

O teólogo pode acreditar, aliás, acho que deve. O que ele não pode é usar sua fé como bússola para definir teologia. Seria como se o médico apalpasse o paciente tentando achar nele as dores que estão em si mesmo.

Para ser fiel, basta ao homem de fé acreditar e viver de acordo com seus princípios. Para ser fiel, o teólogo tem de acreditar, viver conforme os seus princípios e, tcham, encaixar sua crença dentro da mais antiga tradição de pensamento que remonta às origens. Ser fiel, nesse caso, é ser fiel às origens das origens, à fonte de onde brota água limpa. Se o teólogo for conhecedor das águas não pode beber, muito menos, oferecer água salobra. Para ele, ou a água é pura ou, simplesmente, não é água. Eu sei, eu sei... ficou radical demais. Água suja também é água. Mas você tomaria? Ofereceria? “A quem pedir um pão dar-se-á uma pedra? A quem pedir um peixe, dar-se-á uma cobra?” (Lc 11,11).

A espiritualidade é uma usina: pode entrar qualquer coisa, mas o que tem de sair é luz. Anda acontecendo o contrário: entrando luz e saindo cada coisa! São transformações ao contrário: o que entra é a luz do Evangelho; o que sai é alguma monstruosidade irreconhecível. A impressão é a de algo se perdeu nessa usinagem.

Duas palavras finais.

Primeira. Aquele que ouve é o senhor do discurso. Portanto, o que realmente se espera é que cada um cultive a sua própria capacidade de ouvir e entender. A começar dessas pobres e tilintantes palavras.

Segunda. O que há de mais irrefreável é a tendência ao um. De muitos se faz o um. De vários apartamentos se faz um prédio. De vários prédios, uma rua. De várias ruas, um quarteirão. De vários quarteirões, um bairro. De vários bairros, uma cidade. De várias cidades, um estado. De vários estados, um país. De vários países, um continente. De vários continentes, um planeta. De vários planetas... (...) O que há de mais irrefreável é a tendência ao um (João 17,11). Essa é a tendência universal. Portanto, as desarticulações são patologias dentro da irrefreável tendência ao um.

E assim termino, lembrando e reverenciando Dona Bilú, inesquecível catequista e mestra, da época em que as professoras usavam anel de esmeralda e cabelo de rosca. Hoje eu sei que ela não sabia direito a diferença entre o pão eucarístico e o pãozinho de Santo Antonio, mas também sei o quanto dedicou a vida inteira ao magistério e a preparar os infantes (como ela chamava) para a primeira comunhão. Um dos seus infantes é esse falador, que se mete a teólogo nas horas vagas. Ta vendo no que deu, Dona Bilú! E viva Dona Bilú!

COMENTÁRIO ESPICHADO – 8

A Bíblia (1)

Num domingo de Páscoa dos anos 50, um tal Dr. Kirch, depois de um tempão decifrando um manuscrito com mais de 900 anos, anunciou a descoberta da única filha de Adão. O nome da herdeira seria Noaba. (!) Não se admira que a coitada tenha se escondido! Se eu tivesse uma filha..., ia preferir Nicéia. Conheci até uma Jéssica Cinderela, que também se escondeu atrás do codinome “Quinha”. Captou? Jéssica, Jessiquinha, Quinha, pra soar melhor! Deixe pra lá... O que na verdade me intriga é saber o quê o diligente Dr. Kirch tem no lugar onde os outros colocaram a cabeça, que lhe permitiu dedicar tantos anos para decifrar um endiabrado hieróglifo, e, no fim, só para descobrir uma nova e insignificante habitante de uma casa onde já não cabia materialmente ninguém.

Porque essa é a situação da Bíblia: casa cheia.

A Bíblia é álbum de foto de família: tem de tudo. Desde a foto oficial, de estúdio, sem graça, àquela tirada na praia (à milanesa) engraçadíssima! Tem Adão, adepto do nudismo, que seguiu conselhos da vizinhança, aporrinhou o Síndico e acabou expulso do condomínio. E Caim, o que inventou o cassetete com uma queixada de burro. Balaão aprendeu noções de retórica com uma jumenta falante. Josué derrubou muros soprando trombetas. Achou pouco? Josué pa-rou-o-sol! Satisfeito, agora? Raabe, moça mal falada, mas mulher excepcional, exerceu a imaginação e sabe-se lá mais que outras artes para deter os inimigos de Josué dentro de casa. Ló, veja só, bebeu todas e nem notou que as filhas dormiram com ele, e nem que, propriamente, não dormiram, porque os filhos delas foram irmãos (delas) e, logicamente, netos (dele). E ainda falam mal da pobre Jocasta! E Sansão, com aquela cabeleira onde escondia força, secador, chapinha e bobs... Debaixo dos caracóis...? E a amizade de Davi e Jônatas? De deixar a novela das 9 no chinelo! E o caso Betsabé, o harém de Salomão (300 verdadeiras e 700 concubinas) e a rainha de Sabá? O que aquele povo gastou do erário público pra manter a pose!

Viram? Essa é a situação da Bíblia: casa cheia! Assunto é que não falta.

De 1500 a 2000 páginas, em uma ou duas colunas, com ou sem notas de rodapé, numa língua e numa linguagem que as traduções estão longe de recuperar, ela é best-seller há 4000 anos. E como diz minha guru-master-top-de-linha-advanced-plus N. M. (só conto a quem perguntar): “Quando um texto permanece em cartaz há mais de 4000 anos, deve ter, pelo menos, algo interessante a dizer”.

E tem. Convido-os a ouvir.

Porque eu mesmo não desgrudo o ouvido de lá. Desde que percebi que aquela gente sabia das coisas (mesmo não sabendo que sabia), fiz-me ouvinte atento e leitor voraz de tudo quanto já se comentou daquele texto. É claro que falam muita bobagem nesses comentários. Mas isso ninguém precisa reter. Paulo sacou isso lá atrás: “Não extingam o Espírito, não desprezem as escrituras, examinem tudo, retenham o que é bom” (1Ts 5,21).

Por onde, então, começar? Pelo item 001 da recomendação exegética: Não se interpreta a Bíblia. A Bíblia já é uma interpretação e não se interpreta uma interpretação. É preciso conhecer o fato que a interpretação esconde.

Porém, bem antes de Kant e Nietzsche, já sabíamos que o fato não existe. As coisas não são como são, mas são como são contadas. Chame dez pessoas e peça para contarem, separadamente, um acidente que acabaram de presenciar. Confira os dados. Serão praticamente dez acidentes. Cada uma irá contar o “seu acidente”: o que foi que ela viu naquilo que viu. Cada conto aumenta um ponto.
Então, grife aí. Não se interpreta uma interpretação. A pergunta é: cadê o fato? Mas o fato não existe mais. Nenhum fato existe, muito menos o da Bíblia. O que temos é só a interpretação, uma interpretação. A partir dela, nossa tarefa é reconstituir o que poderia ter sido o fato. E a reconstituição é sempre um trabalho em dois tempos.

Observe.

Ninguém precisa imaginar Moisés abrindo o Mar Vermelho como se fosse de gelatina. Ficou muito bonito em “Os Dez Mandamentos”, de Cecil B. DeMille, com Charlton Heston e Yul Brynner, e, no filme, foi feito com gelatina mesmo. (Em 1956 não havia efeito de computador. Imagine aquilo feito hoje!) Mas Hollywood é Hollywood. Bíblia é outra coisa! A encrenca surge quando as imagens do cinema ou de algum quadro ou de qualquer pictografia são transplantadas para a imaginação na hora de ler a Bíblia. O que era só pra ser uma imagem alusiva adquire status de realidade. E é uma covardia lutar contra o imaginário. “A imaginação é a doida da casa” (Teresa D’Ávila). Não tenha dúvida, ela vai sempre vencer.

E Moisés? O que foi que ele fez? Passou por um lugar onde o Mar Vermelho recua conforme a maré. E os egípcios que morreram afogados, cavalos e cavaleiros? Não foram tantos, nem havia tanta gente disponível nem motivo suficiente para colocar um exército no encalço de uns pés-rapados que fugiram da segurança para morrer no deserto. Morreram nas emboscadas dos guerrilheiros hebreus. Originalmente, o nome deles era habirus: mascates, biscateiros, com um cheiro de vale-tudo.

Esse foi o primeiro tempo.

O segundo tempo é que tudo isso foi contado e narrado e escrito com ufania épica, por volta de seiscentos anos depois, numa situação absolutamente desfavorável que foi a do exílio da Babilônia (587-537 AC). Foi escrito com finalidade cívica de elevar o moral do povo e com finalidade catequética de fazê-los crerem que o Deus de Moisés que tirara seu povo da servidão do Egito era o mesmo que também os tiraria do exílio da Babilônia. Garantia é tudo o que precisamos na vida, e não faz a menor diferença se a garantia for do Paraguay.

Entendeu os dois tempos?

O primeiro é aquele onde o fato “aconteceu” e se escondeu. O segundo é o momento quando e onde a interpretação o resgatou, mas aí, pelo ato de resgatá-lo, o esconde ainda mais. Porque o que temos é a interpretação, só ela. E se nos atemos à interpretação, como se fosse o fato, perdemos a força do gesto, a única que foi capaz de fazer de um fato, no mais das vezes insignificante, um baita acontecimento – um gesto – capaz de mover céus, terras, mares e gentes atrás daquilo que, realmente, tem importância. No caso, a liberdade. A soberana liberdade, sem a qual a vida não vale uma titica de tico-tico.

Não há a menor necessidade de enxergar mais do que havia na intenção do escritor. Mas esse assunto não tem fim e vou ter de deixar pra outro dia. Hoje, queria dizer três palavras finais: uma sobre as traduções, outra sobre o uso abusivo que se faz da Bíblia e uma terceira sobre a revelação.

Traduções... é caso pra PROCON.

Submeteram a um tradutor instantâneo (Google?) a frase latina “Spiritus quidem promptus est, caro autem infirma” (O espírito está pronto, a carne, porém, é frágil) numa região onde havia um whisky chamado, justamente, Spiritus. Você imagina o que saiu da frase latina? O whisky é bom, mas o bife não presta.

Certas traduções não ficam longe disso. Sem um conhecimento, algo em torno do mínimo, de hebraico bíblico antigo (aramaico) e de grego bíblico antigo (koiné) é impossível saber o que foi dito e escrito ali, naquele lugar e naquele tempo. Até porque – concordam comigo? – pensar, falar e escrever são coisas bastante diferentes. O que foi pensado não é o que foi falado. O que foi falado não é o que foi escrito. Leia a frase no sentido contrário, por favor, e constate como é impressionante a flexibilidade do rabo da lagartixa. Quem comenta Bíblia, geralmente, glosa para indicar que aquilo faz algum sentido “para hoje”. Mas isso é conjectura, apropriação indébita. Fazer algum sentido “para hoje”, propaganda de supermercado também faz.

A idéia é tributária da palavra. Qualquer idéia perde seu impacto e sua força se mal traduzida. As distorções são cogumelos que nascem em madeira podre. Quando acontece alguma distorção numa idéia, pode ficar sabendo: alguém foi lá e glosou. “Traduttori traditori”: todo tradutor é um traidor.

A segunda palavrinha é sobre o uso popular que se faz da Bíblia, abrindo páginas aleatoriamente ou tirando bilhetinhos de alguma caixinha. Você já viu periquito de realejo? Então... A menos que você seja periquito de realejo, isso não se faz. São abusos da paciência divina, arbitrários e desnecessários. Não há nada que me faria mais feliz do que imaginar Deus debruçado em alguma janela, com a mão no queixo, apenas esperando pela manifestação de alguma necessidade, pedido ou questionamento meus. Como eu ficaria feliz! No entanto, minha honestidade não me permite pensar assim, assim como minha compreensão não me permite criticar quem pense. Se você precisar, respire fundo e abra a tal caixinha que a resposta vem num estalo de dedos! Você sabe que o sentido vai ser sempre aquele que você esperar que seja e que você mesmo criar, não sabe? Mesmo assim, se isso valer pra você, considere-se um felizardo. Não vale pra mim. Azar o meu, mas honestidade não tem preço.

A terceira palavrinha, sobre a revelação, será justamente o assunto da segunda parte dessa conversa. Luteranamente falando (o Vaticano II também falou), não existe nenhuma revelação fora da escritura. Nenhuma, quer dizer, nenhuma. Se você é cristão ou simpatizante, saiba que tudo o que é preciso saber a respeito de Deus na tradição judaico-cristã, se encontra na escritura. Essa edição do discurso é a única autorizada pelo Autor. E está bom demais, não está? Se você quiser estudar a fundo os 73 livros dessa originalíssima biblioteca, recomendo que reserve uma boa parte do seu tempo. Esteja certo: não vai ser em qualquer final de semana que você vai conseguir fazer isso.

Como essa “revelação” se deu, é algo que precisamos de um espaço inteiro e não cabe aqui, agora. Paro por aqui e vou pensar na Noaba. Espetáculo de nome!

COMENTÁRIO ESPICHADO – 7

A crise das igrejas


A Igreja, sobretudo, no Ocidente passa por grave crise. Mas é muito mais uma crise do conceito do que da práxis.

Primeiro, porém, vamos colocar os pingos nos is. Não existe uma Igreja cristã. São três as Igrejas cristãs: A Igreja Latina (que a gente chama de Católica), a Igreja Grega (que a gente chama Ortodoxa) e a Igreja da Reforma (que a gente chama de Protestante, e alguns preferem chamar de Evangélica).

Todos os termos são impróprios.

Católico, em grego, significa “universal”. Nesse sentido, a “Igreja Universal do Reino de Deus” pode também ser chamada de “Igreja Católica do Reino de Deus”. Preciso dizer mais sobre a inexatidão dos termos?

Ortodoxo, em grego, significa “reta opinião”. Nesse sentido, qualquer uma delas pode se auto-proclamar ortodoxa. Presunção de reta opinião não falta a nenhuma.

Imagino que chamar alguém de “protestante” não seja nada lisonjeiro. E “evangélico” é o pior dos horrores: t.o.d.a.s são evangélicas, e nenhuma, de fato, o é.

Então, mantenhamos os termos de forma assertiva: Igreja Latina, Igreja Grega, Igreja da Reforma. São três. Ponto. O restante é pretensão. Então, só pra ficar claro, não existe uma só Igreja; não se pode falar da “Igreja de Cristo”, por exemplo. Existem três igrejas, três grandes ramos de um mesmo tronco, por onde, na melhor das hipóteses, corre a mesma seiva. E, cada uma a seu modo, até que se prove o contrário, é de Cristo. Pelo menos, enquanto ele quiser.

Então, recomecemos: as Igrejas cristãs passam por grave crise. As do Ocidente, ainda mais. A Igreja Latina, sobretudo. Não só porque o Islã vem com tudo, e não ta prosa (aliás, nem um pouco), mas porque a Igreja Cristã Latina (Católica, só pra lembrar) tem vocação suicida, perde público, desnecessariamente.

Há quem afirme o contrário, e mostre igrejas cheias e santuários de peregrinação com sucesso renovado, ampliando cada vez mais a rede hoteleira, comercial, logística, etc. Ta. Mas nada disso significa que o escopo foi atingido. Qual? O do Evangelho. Hã? O de instaurar o Reino de Deus, cá e já. Como? Pela estrada real da retificação subjetiva. Mas o que é isso? Explico.

Tendo as pessoas percebido o quanto suas vidas estavam vazias de significado e sentido, tendo se dado conta do tanto que andaram errando o alvo da existência e do quanto poderiam proceder a uma modificação absolutamente interna, absolutamente nova, absolutamente real, de princípios e de alma e de todo ser: assim o fariam. E só assim poderiam instaurar uma retidão (de princípios e de alma e de todo ser). E só isso teria a força de nortear o rumo dos acontecimentos e rebobinar o fio das vidas para gerar luz e calor. Uff!

Estamos longe, né?

No plano ético, entre avanços e retrocessos – um pra frente, dois pra trás – não fomos muito além do que sempre estivemos: tateando, no escuro, de olhos vendados, mãos e pés atados. Muita intenção boa. Muito papel escrito. Decisões de montão. A prática, contudo, revela realizações pífias. Quando vejo, hoje, na TV, os gregos (os gregos!) lutando de pau e pedra e bomba caseira contra o império armado do governo, não há dúvida: estamos de volta às Termópilas. “Me dêem suas armas!”, grita Dario, o persa. “Venham buscá-las”, responde Leônidas, o grego. Orgulhoso século XXI!
No plano religioso, a Europa se paganiza, a olhos vistos, a África se islamiza, a olhos vistos, a Ásia se decompõe, a olhos vistos. A América é o eldorado cristão. A olhos vistos! Todas as igrejas estão cheias nos domingos, né mesmo? Não é à-toa que ávidos desejos se voltem para cá. Até pouco tempo não tínhamos um santo. Agora, estão pipocando; que eu saiba, só numa diocese há três candidatos oficiais. Mesmo assim, a emblemática constatação das igrejas cheias é uma falácia. Engordar não é crescer.

O fato é que a religião usada para fins apenas devocionais ou particulares ou terapêuticos ou paliativos ou promocionais ou interesseiros ou sei-lá-tanta-coisa-mais-se-vê-por-aí, com ou sem honestidade, ficou longe da proposta inicial lançada por um sujeito carpinteiro-pedreiro, mão-de-obra barata da construção civil, que, um dia, como já havia feito seu mais ilustre antepassado chamado Abraão, saiu à noite para olhar estrelas, e ficou apaixonado por aquilo que viu. E por tanta coisa que viu, além delas.

Deixo pra qualquer outro a discussão se o edifício construído saiu melhor ou pior do que a planta. Só não deixo pra ninguém a dedução de que o quê saiu não foi o quê estava na planta. Ali atrás, já deixei claro que não somos capazes de avaliar se faríamos ou não melhor do que está aí. Não é essa a questão. Pensar por esse layout é não pensar. Será muito saudável ter sempre em pauta e à mão a verificação da honestidade dos representantes oficiais do projeto e dos operários da obra. Sobretudo, saudável. Infinitamente, saudável. Críticas criteriosas são salutares. Os homens também podem criticar o parto cesárea, mesmo não podendo dar à luz.

Vamos lá: o que aconteceu para que as Igrejas, sobretudo, a Latina, se deslocassem do rumo e do prumo?

Nas altas esferas, sobretudo, da Igreja Latina, a explicação tem dois bodes expiatórios: a secularização e o humanismo moderno. O chavão repetitivo é que o homem está buscando sua salvação apenas na Terra, tentando suplantar a ação de Deus e dispensar sua intervenção. A Igreja Latina acusa um ovo podre “quinta coluna”, que aderiu perigosamente aos ideais progressistas e seus erros, tais como as exigências de democracia (a Igreja Latina sempre adorou uma monarquia: a Solenidade do Cristo Rei foi criada no momento em que as monarquias viravam sucatas). Vamos lá, a Igreja Latina reconhece que há coisas perigosas e indesejáveis como democracia, a participação na Igreja, a supressão do celibato obrigatório, o sacerdócio das mulheres, a valorização da sexualidade... Que mais? Que mais poderia abalar o trono onde se instalou o altar? E o pior é que tem gente dentro dela bajulando essas idéias e querendo esses horrores!

Seja como for, nos círculos conservadores, a culpa recai sobre a recepção negativa da mensagem, nunca sobre o conteúdo da pregação, menos ainda sobre os pregadores. Para eles, sobretudo, os que usam Mercedes com placa SCV (Stato Città del Vaticano), que os italianos ironicamente lêem: Se Cristo Visse!, para eles, não há dúvida de que os ouvintes deixaram de ter sede. Mas será isso mesmo: deixaram de ter sede? Ou será que a água ofertada se tornou insalubre?

Mesmo a água mais pura deixa de ser potável em copo sujo.

A pregação do Evangelho deve ser feita aos homens de boa vontade. Aliás, foi justamente a eles que os anunciadores cantaram sua mensagem na noite de Natal: Paz na Terra aos homens de boa vontade! Nem aos católicos nem aos ortodoxos nem aos protestantes nem aos budistas nem aos xintoístas nem aos ateus nem aos à-toa. Aos homens de boa vontade! Pax hominibus bonae voluntatis! OK? Acontece que se prega numa linguagem que não tem mais energia vital nem existencial, por se ter perdido, lá trás, numa ingenuidade primeira, numa visão de mundo totalmente defasada e anacrônica, que corresponde a uma época anterior à crítica racional e aos direitos humanos. Aí a água não mata a sede, mesmo.

Fato verídico.

Na minha terra viveu, morreu e foi enterrado Padre Teófilo Jazedé: um francês-alemão de 1,60m, que eu nunca soube como é que foi parar lá. Sei que ele tinha duas coisas: um mico adestrado, que um dia quase o matou, e um telescópio por onde vigiava as estrelas. O Observatório Astrofísico Nacional, que lá se encontra, leva o seu nome. Nas missas das crianças, todo domingo, 9 da manhã, ele se dirigia “aos creanços” (como as chamava) e explicava o que ia acontecer ali. (Carregue no sotaque, por favor.)
- Creanços, o que viemos fazer aqui? Viemos para assistir o mistério do transubstanciaçón. (Rapidamente) E-o-que-é-o-mistério-do-transubstanciaçón? (Pausadamente) O mistério do transubstanciaçón é a mudança do pan e do víneo na corpo e sangue, álllma e divindade, de Nosso Senhor Jesucrrristo! (Rapidamente) E-parra-que-serve-o-mistério-do-transubstanciaçón? (Pausadamente) Serve para nos levar parra a Céu!

E ele ficava brava porque os creanços balançavam as pés debaixo das bancos do igrrreja...

Não riam. Porque esse discurso cômico é oficial. Pode não ser feito com essa verve franco-germânica. Mas é oficial. Agora, me digam: Isso serve pra quê? Além de nos levar para o Céu, é claro!

No nosso contexto, não serve pra nada. Nesse contexto, a única pergunta que interessa é: há uma vereda por onde se possa caminhar? O autor diz que sim, e aponta. O princípio fundamental que orienta e guia a tradução das representações e fórmulas tradicionais para outras atuais é o seguinte: sempre que uma fórmula supuser a existência de um mundo exterior superior ao universo, capaz de intervir em nosso mundo, essa representação ou fórmula deve ser substituída por outra na qual Deus seja, implícito ou manifesto, o fundamento mais profundo do universo a que pertencemos.

Se não fosse demais, eu pediria para se considerar se tudo não começa, continua e termina... por aqui? E se isso, por si só, já não seria bom? Seria demais, eu sei. Então, não vou pedir.
Gostaria, apenas, de salientar a troca saudável do pensamento heterônomo por um pensamento autônomo. Que, com certeza, também, irá nos “levar para o Céu”, desde que se imagine “levar” como um carreto e “Céu” como um guarda-volumes. Mas, antes, com igual ou maior certeza, será capaz de providenciar uma existência com maior densitometria vital, aqui mesmo, neste vale de lágrimas – in hac lacrimarum valle – onde vivemos, amamos, sofremos, emagrecemos, engordamos, perdemos, perdoamos, e tentamos fazer tudo isso e muito mais, dentro do possível, sem perder a pose. Caramba! Bom demais, né!

O Padre Jazedé não estava errado. Estava apenas out.

O conceito de salvação, central no Cristianismo, diz respeito àquilo que é saudável para o sujeito, enquanto ele mesmo, ser vivente, precisa ser salvo, a começar de si mesmo. Acompanhe a evolução do termo: salus = saúde/salvação. A mesma palavra é empregada para dois conceitos primos: saúde e salvação. Atar o conceito de salvação, eminentemente, existencial aos conceitos de Céu ou de Igreja organizacional é forçar a amizade. Não há a menor necessidade.

Dois exemplos.

Cipriano de Cartago, morto em 258 DC, na perseguição de Décio, não estava errado quando dizia: Extra Ecclesia nula salus, nenhuma salvação fora da Igreja. Acontece que o que ele entendia por Igreja/Ecclesia não é o mesmo que entendemos hoje. Para ele, a Ecclesia era (etimologicamente) a comunidade dos escolhidos, aqueles que eram capazes de se unir para juntos poderem enfrentar as perseguições romanas. E ali não havia nenhuma metáfora, OK? Naquele contexto, Cipriano estava in.

Agostinho de Hipona, morto em 430 DC, no próprio leito, dentro de casa, já pensava em outro contexto. É dele a frase, tantas vezes citada, de que “é preferível errar com a Igreja a acertar fora dela”. Os tempos e contextos eram outros. Já ali, a Igreja era a fiel escudeira do Império Romano. No conceito agostiniano de Ecclesia não cabia mais a comunidade daqueles que se uniam para fugir, sofrer, chorar e morrer juntos. Duzentos anos se passaram, desde Cipriano de Cartago. A Igreja de Agostinho era uma instituição que, já então, precisava ser salva dela mesma. Com certeza, já havia quem acertasse fora dela e ameaçasse a sua hegemonia da salvação. Por isso, a insistência de errar com ela a acertar fora dela. Naquele contexto, Agostinho estava out.

Retorno ao início. A Igreja no Ocidente, sobretudo, a organizacional Latina, passa por grave crise. Mas é muito mais uma crise do conceito do que da práxis. Ela foi fazendo, e foi se fazendo, e não foi vendo o que fazia. Deve ser muito difícil para uma senhora de 2000 anos, com as artrites, artroses e escleroses do tempo, mudar o passo e o pensamento. Nada podemos fazer. Respeitamos.

Somos pessoas educadas e gentis, respeitamos os mais velhos. Aprendemos tudo o foi possível aprender, entendemos lacunas e dificuldades, e respeitamos. Mas não precisamos mais seguir por aonde eles vão. Aprendemos tanto com eles, que descobrimos nosso próprio caminho e nosso próprio passo. Temos consciência do perigo de caminhar, e mais consciência ainda do perigo de estacionar. Entendemos, respeitamos, caminhamos. Mas só aonde nos levam nossos próprios pés.

Já me perguntaram por que essa minha preocupação e esse tempo gasto?

Sei lá. Fico triste em pensar, e em saber, que toda essa riqueza de significantes, construída desde muito, tenha caído em mãos abusadas, e o quanto, o tanto e o como isso pôde destroçar em vez de construir, separar em vez de unir, passar o rolo compressor da intolerância sobre gente que só queria entender melhor. Só isso.

Sei lá. Eu gosto de acreditar que há gente disposta a pensar, assim como, gosto de pensar que há gente disposta a crer. Mas o que eu gosto mesmo é de imaginar que, quando essas duas faculdades se unem, do resultado pode brotar um rebento novo. Se esse broto ajudar uma pessoa, uma só que seja, a pensar e entender, entender e voar, valeu a pena. Ô!

COMENTÁRIO ESPICHADO – 6

Constantino

“Pelos frutos conhecereis a árvore” (Mt 7,16)

A terceira rama forte do cristianismo foi plantada e adubada por Constantino.

Começo dizendo que todo sistema se adapta, no correr do tempo, ao molde da alma a que serve. Com o sistema religioso não é diferente.

Em Alexandria, centro da vida religiosa egípcia, Ptolomeu I ergueu um grande templo, o Serapeum, no qual era venerada uma trindade de deuses: Serápis (novo nome de Osíris-Apis) Ísis e Hórus. Os três não eram encarados como deuses separados, e sim como três aspectos de um mesmo deus. Serápis era identificado com o Zeus grego, com o Júpiter romano e com o deus-sol persa. Essa veneração se disseminou por todos os lugares onde houvesse influência helênica, alcançando o norte da Índia e a China Ocidental.

Nesse tempo, a idéia da imortalidade, uma imortalidade de compensações e consolo, era aceita com avidez num mundo em que a vida comum era uma desgraça incontornável. Pois é, meio lá, meio cá. Serápis era conhecido como o “salvador da alma”. Os hinos religiosos da época diziam que “após a morte, ainda estaremos protegidos por sua providência”. Ísis era a que atraía mais devotos. Suas imagens de Rainha dos Céus, com o infante Hórus nos braços, dominavam os templos dedicados a ela. Velas eram mantidas acesas diante dela, ela recebia oferendas votivas, e sacerdotes celibatários de cabeça raspada cuidavam do seu altar.
A ascensão do Império Romano abriu as portas da Europa Ocidental para esse culto crescente. Os templos de Serápis-Ísis-Hórus, as cantorias dos sacerdotes e a esperança de uma vida imortal seguiram os estandartes romanos até a Escócia.

Agora, observe bem o seguinte. Esses cultos aliciavam de escravos a cidadãos porque eram religiões pessoais, direcionadas à salvação pessoal e à imortalidade da alma. Antes deles, as religiões mais antigas não eram pessoais, eram sociais. A divindade à moda antiga era, em primeiro lugar, um deus da cidade ou do Estado; o indivíduo vinha em segundo plano. Sacrifícios e preces eram atividades públicas, e não privadas, diziam respeito às necessidades coletivas do mundo em que se vivia, e não às agruras de cada alma. A novidade daquele momento, foi que, primeiramente, os gregos e depois os romanos despojaram a religião de sua função política e social. Guiada pela tradição egípcia, a religião passara para outro mundo e, literalmente, para o outro mundo.

Não sei se vocês sabem, mas a religião dos hebreus, no início, não abrangia o pós-morte. Era tudo para aqui mesmo. Foi só no exílio da Babilônia (587-537 AC) que, ao contato com o Mitraísmo persa, os judeus foram picados pela vespa da imortalidade. Até, então, para o judeu piedoso, ser imortal era fazer-se sobreviver nos filhos dos seus filhos até a terceira e quarta geração. A maior glória era ter o próprio nome unido ao sagrado e impronunciável Nome de Javé, e por aqui mesmo, e bendito seja o seu Nome! Contemporâneos de Jesus, só os fariseus acreditavam na vida eterna. Os saduceus não esperavam nenhuma vida para além da morte. E ninguém achava que isso fosse o fim do mundo.

Em Roma, os Césares haviam aprendido dos egípcios que podiam ser deuses; em seus templos praticava-se uma veneração política fria e oficial em que o devoto queimava incenso para demonstrar lealdade. Porém, era ao templo de Ísis, a querida Rainha dos Céus, que o sujeito recorria, com seu fardo de problemas pessoais, pra obter conselho, consolo e alívio. Naquele meio, honrar os deuses era uma coisa, acreditar neles era outra. Honrar não exigia pensamento, crer, sim.

Nascia, então, uma nova concepção do sujeito. Ele não era mais bucha-de-canhão para o engrandecimento dos impérios. Ele era (vejam bem!) alguém (vê se pode?) que podia querer algo (aonde isso vai dar?). Ele agora tinha deuses para ampará-lo na descoberta da sua essência mais íntima, que era o seu desejo. Ora, ora! E de desejo em desejo, ele foi desejando mais do que a simples vida estaria à altura de conceder. Ele não queria só viver, o que ele não queria mais era morrer. Desejou contornar a morte, e se não fosse pedir demais, viver para sempre. Bom, né!

O derivado torto disso foi a ascese, no nosso caso, a ascese cristã. No Oriente, bem antes de Buda, já homens e mulheres desprezavam os prazeres, abraçavam os sofrimentos e abriam mão da propriedade para fugir das perturbações e complicações da vida. Eles almejavam a solidão. Para esse tipo de gente, o mundo era pouco. A ascese cristã pegou carona nessa onda. E forjou um cristianismo, quase, antagônico ao pensamento do Fundador, porque esse, sim, comia e bebia e não perdia nenhuma festança e, inclusive, era mal visto por causa disso. Esse cristianismo ascético era deformado, mas era balsâmico. Deixou de ser profético para ser terapêutico.

É que o mundo havia mudado, e muito, e muito rápido.

Ao longo dos três primeiros séculos da era cristã cristalizou-se uma tendência quase mundial de repúdio à vida normal e de busca por uma “salvação” que acabasse com os tormentos recorrentes. Já não existia mais a antiga sensação de ordem estabelecida nem a antiga confiança no sacerdote, no templo, na lei e nos costumes. Num tempo de escravidão inescapável, de crueldade, ansiedade e medo, esbanjamento, ostentação e comodismo egoísta, grassava uma epidemia de desgosto e insegurança mental, uma busca angustiante de paz, que implicava renúncia e sofrimento voluntário.

Os cristãos embarcaram nessa, de cabeça.

Foram eles os que mais abandonaram e desprezaram as formas externas dos cultos oficiais para se apegarem à religião da retidão e do conforto interior. Nem preciso dizer que, com isso, se fizeram mal vistos: poderiam atrair a ira dos deuses ofendidos pelo desprezo. Aí, veio o incêndio de Roma (64 DC), e Nero tinha o bode expiatório no tamanho exato para carregar a culpa. Os cristãos. E daí em diante, ser cristão era ser candidato à crucifixão, a virar churrasco ou farelo de leão. Aliás, a palavra “candidato” vem daí, mesmo. “Candidati” eram os vestiam a “cândida”, ou seja, a roupa branca com a qual enfrentavam o martírio. Essa você não sabia!

De repente, só o discurso cristão não supria as lacunas de um sujeito dividido entre o seu desejo e o seu medo. Numa angústia que não tinha fim, os crentes foram lançando mão de outros apetrechos religiosos, em cujas promessas instantâneas eles encontravam mais eficácia e consolo do que nas palavras da bem-aventurança cristã. Lembrem-se, eles não tinham nada a que se agarrar: nem uma medalhinha de Nossa Senhora à moda católica, nem uma Bíblia pra por debaixo do braço à moda protestante. Nada. O cristianismo do início ainda não havia sido fetichizado. Santos e andores e padres cantores só viriam depois.

Já dissemos que as comunidades cristãs começaram a ser dilaceradas por disputas teológicas complexas. É que quando religiões florescem lado a lado, elas tendem a adotar peculiaridades externas uma da outra. Depreciando a essência do ensinamento de Jesus, o cristianismo nascente adotou práticas da vizinhança religiosa. Adotou das crenças alexandrinas e mitraicas não apenas aspectos formais como a tonsura do sacerdote, a oferenda votiva, os altares, as velas, os cantos e as imagens, mas também tomou de empréstimo expressões de devoção e idéias teológicas. Todos esses cultos floresciam lado a lado, cada um deles disputava adeptos, e ocorriam constantes idas e vindas de convertidos entre eles.

E surgiram grupos. Os arianos afirmavam que Jesus era divino, mas distinto e inferior ao Pai. Os sabelos afirmavam que Jesus era meramente um aspecto do Pai, e que Deus era Jesus e Pai ao mesmo tempo, assim como um homem pode ser padeiro e pai ao mesmo tempo. Os trinitários propunham uma doutrina mais sutil, na qual Deus era um e também três, Pai e Filho e Espírito Santo: essência, existência e consistência.

E vieram as perseguições. A perseguição de Diocleciano foi a mais agressiva, mas fracassou, e foi a última tentativa de eliminar a crescente comunidade cristã. O fracasso se deu porque a imensa base do triângulo social, os pobres e os escravos, havia se tornado cristã, tributária da necessidade de encontrar qualquer coisa que justificasse e desse sentido a uma vida sem sentido. Ao mesmo tempo, também muitos oficiais haviam passado para as fileiras cristãs. Em 313 DC, o novo único governante do mundo romano apenas selou o que já vinha acontecendo de fato. Dentro de poucos anos, o cristianismo se estabeleceu como religião oficial do império e as religiões adversárias desapareceram ou foram absorvidas com extraordinária rapidez. Em 390, Teodósio, o Grande, ordenou que a estátua de Júpiter Serápis fosse destruída em Alexandria. Do século V em diante, os únicos sacerdotes ou templos do Império Romano eram sacerdotes e templos cristãos.

Mas, peraí, volta um pouco, que essa história carece de maiores detalhes.

Constantino I, o Grande, imperador do Império Romano, deu liberdade aos cristãos, em 313 DC. Em 319, fez do cristianismo a religião oficial do Império Romano. Em 325, convocou e presidiu o primeiro concílio ecumênico da igreja cristã, definiu a base da ortodoxia doutrinal para os próximos milênios e ainda teve tempo de cometer um punhado de barbaridades. Era pagão. Há quem sustente que nunca foi batizado. Aqueles que gostam de pintar tudo cor-de-rosa garantem que ele pediu o batismo na hora da morte, mas não há o menor motivo pra pensar nisso. O fato é que um sujeito, general de exército, imperador romano e pagão, foi quem definiu a fé cristã. Só isso deveria por muita gente pra pensar. Se a gente pensar que Moisés, nascido e naturalizado egípcio, com nome e RG egípcio, definiu a fé judaica, não fica nem longe nem tão ruim assim. Como essas coisas acontecem é um mistério. A resposta usual simplista diz que é obra do Espírito Santo. Mas, assim, o Espírito Santo fica parecendo caixa de brinquedo de criança: cabe tudo lá dentro.

O cristianismo de Constantino, a terceira perna do tripé cristão, foi um condensado teológico (tão firme quanto aglomerado de madeira) que apareceu só no século IV, 300 anos depois da primeira geração cristã e, sem dúvida, a anos luz da experiência original. Afinal, como se deu isso?

Até o século IV, as primeiras levas de cristãos alternaram períodos de perseguição com períodos de relativa paz. O maior período de paz se deu no século II, na gestão dos cinco chamados “bons imperadores”, em cujo início o Evangelho de João foi escrito. A maior e mais sangrenta perseguição, a de Diocleciano, se deu, por estranha coincidência, justamente, pouco antes dos acontecimentos que geraram o “cristianismo de Constantino”. Diocleciano morreu em 311 DC, e o sucessor soube capitalizar a força irreprimível que os outros quiseram sufocar.

Conta a lenda que Constantino teve uma visão: enxergou no céu uma cruz com os dizeres “IN HOC SIGNO VINCES” – “com esse sinal vencerás”. Botou a cruz nos estandartes do exército, partiu para a guerra e derrotou Magêncio, pretendente ao trono. Por causa disso, Constantino nunca mais subiria ao altar de Júpiter para oferecer sacrifícios pelas vitórias, encaminhar-se-ia para conceder liberdade aos cristãos e, praticamente, dividiria o poder com eles.

É lenda. A História é outra. Por causa do seu gigantismo, do enorme gasto com a defesa das fronteiras e, é claro, da corrupção interna, o Império Romano se via a cada dia pior das pernas. Numa situação dessas, qualquer império, seja romano, seja americano, se une a quem possa sustentá-lo em pé. (Os USA não encheram o ditador do Egito de dinheiro?) No caso do Império Romano, havia uma força humana irreprimível e (naquela época) incorruptível, crescendo dentro das fronteiras, sendo combatida e se avolumando, sendo morta e brotando por todo canto. “O sangue dos mártires é semente de novos cristãos”, foi o que disse Tertuliano no frisson do momento. Constantino, que de lerdo não tinha nada, viu aquilo ali e, se não podia vencer o inimigo, uniu-se a ele. Ao invés de barbarizar o cristianismo, deu-lhe reconhecimento, oficialidade, garantias, e o colocou para trabalhar a favor do império.

Aí aconteceu um fato tão indescritível, que fica difícil qualquer avaliação. Já disse que em 313 DC, Constantino concedeu liberdade de culto aos cristãos. Seis anos depois, em 319, fez do cristianismo a religião oficial do Estado. Em 325 convocou e presidiu o primeiro concílio da cristandade: o Concílio de Nicéia.

Agora, vem comigo.

Em 325, fazia (só!) 14 anos que Diocleciano havia morrido. Portanto, há apenas 14 anos antes, os cristãos eram perseguidos, torturados, mortos. De repente, um pouco mais de três copas do mundo depois, eles já eram religião oficial do império, já tinham seu primeiro concílio convocado, presidido e pago pelo imperador. Sim, porque Constantino pagou o deslocamento dos padres conciliares, sua estadia, etc. Era de pirar o cabeção de qualquer um! Imagine a fila de gente chegando para as sessões inaugurais do concílio: gente sem olho, sem braço, sem perna, mutilada de toda ordem, com rancores e azedumes e, sobretudo, com um medo tremendo de aquela fosse mais uma armadilha para cortar cabeças e deixar a igreja acéfala. Pode colocar sua imaginação pra funcionar, porque a lista de horrores era grande. Nem o papa foi a Nicéia.

Qual era a do imperador? A localização de Nicéia, por si só, responde à pergunta. A cidade ficava na Anatólia, hoje Turquia, longe do Ocidente, longe de tudo e, sobretudo, longe de Roma. Como disse, nem o papa Silvestre I participou; em seu lugar, enviou apenas cinco corajosos representantes. Atanásio estimou em 300 o número dos participantes, portanto, nada mais do que seria hoje o sínodo de uma igreja particular. Quase nada em termos de universalidade. Constantino, desta vez, usou uma tática inédita no Império Romano: não mais dividiu para governar, ele reuniu para governar. Nicéia foi sua mesa de negociações e seu palanque.

E foi um palanque reconhecido. Para a propaganda oficial, o I Concílio de Nicéia foi responsável por duas coisas: declarar que Jesus era Deus e definir a data da Páscoa. Mas o que fez Nicéia aparecer no mapa-mundi foram as determinações jurídicas tomadas para retirar a Igreja do gueto e torná-la visível e universal. Vem cá, porque essa era a intenção do imperador: um Deus, uma igreja, um império. Ele conseguiu. Mas não foi fácil.

Em Nicéia, dois sujeitos entraram vencedores de Constantino: Eusébio e Atanásio. Constantino saiu vencedor, Atanásio levou o prêmio de consolação e Eusébio saiu com nada. Eusébio tinha cara de pombinha de pé de santo. Vira casacas, quando viu que a maioria pendia pro lado do imperador e que quem ficasse contra não teria aposentadoria de servidor público com adicionais garantidos, passou pro lado do poder e garantiu o seu. Até escreveu uma “História Eclesiástica” cheia de impropriedades, só para garantir posteridade. Mas quem passou mesmo à posteridade foi Atanásio. Quem vai à igreja, todo domingo, professa o credo escrito por ele. E menciona um tal de Pôncio Pilatos, como única referência histórica para lembrar que Jesus, um dia, realmente, existiu.

Não é complicado perceber porque foi que Nicéia aconteceu. Foi uma questão política. Complicado é entender o que foi que Nicéia entendeu. Deus é um ou Deus é três? É um em três ou é três em um? Jesus é Deus ou Jesus é só Jesus? Se Jesus nasceu em berço humano, então, Deus nasceu de berço humano? Como é que Deus é? Vocês imaginam que as pessoas daquela época discutiam essas coisas nas ruas, e com o mesmo ardor com que hoje se discute futebol? É que o mundo judaico e o mundo grego eram vizinhos. Muito vizinhos. Clareia um pouco a questão se a gente pensar que cristianismo nasceu de mãe judia e mamou em ama grega.

Para o judeu, é impensável, absolutamente impensável, ontologicamente impensável, sequer imaginar que Deus em pessoa tenha pisado essa Terra, nascido de mulher, padecido morte vergonhosa nas mãos de um procurador medíocre, no último fim de mundo empoeirado do Império Romano. O mesmo império que agora agia no sentido de proclamar deus a um sujeito que, um dia, tratou como escória. Impensável, intragável, impossível. E ponto.

Para o grego, a situação era bem outra: conhecida e comum. Os seus deuses desciam do Olimpo, assumiam formas humanas, visitavam os humanos, entravam em conúbio com eles e elas, geravam filhos, às vezes assumiam, às vezes não, mas sempre perambulavam por aqui com a destreza que só deuses podem ter. Uma farra! Festa do caqui. Afinal, eles eram mais ou menos humanos, também. Para o grego, Deus era “chapa”!

Um judeu, certa vez, apontou a lâmpada do sacrário e me perguntou o que era aquilo. Respondi. O quê! Disse-me ele. Quer dizer que vocês acreditam que Deus está dentro daquela caixa? Sim, respondi. Se eu acreditasse nisso, ele completou, teria de entrar na igreja me arrastando pelo chão, de gatinhas. Entenderam?

A situação era constrangedora. De duas, uma: ou Jesus era só Jesus, um filho de Deus como todos os outros, e essa honestidade dispensaria quaisquer malabarismos teológicos, mas morria ali mesmo um mito, talvez, o maior de todos, e uma crença feita e pronta para acalentar a nulidade humana... Ou Jesus era o Cristo, o Filho de Deus, The Only One, e nascia ali o maior dos mitos e uma crença bonita, necessária, mas necessitada, é claro, de um trapézio descomunal, porque o malabarismo teológico seria grande.

A primeira hipótese era judaica, a segunda, grega. Venceu qual? A grega, claro! E por que venceu a grega? Simples: por todas as razões elencadas desde o início desta fala. Venceu a grega, porque era a mais necessária naquele momento, a que mais respondia à angústia e ao desespero de uma época totalmente em crise, feito um corredor sem saída. Venceu a grega, porque ninguém agüentava mais viver para a grandeza de qualquer império. As pessoas queriam viver, só viver, nalgum lugar em algum outro sol, que não fosse o sol romano. Só isso, e já estava bom. (Constantino, aliás, não sacou essa.) Diante do desamparo humano, por que não um Deus feito homem, nascido homem, vivido homem, morrido homem, mas sem deixar de ser Deus? Olha só, que baita garantia para o dilema humano!

Tava ali a solução. Atanásio trouxe no bolso a proposta de um novo sistema de pensamento, feito para durar. Jesus e o Pai e o Espírito eram um Deus em três pessoas? OK. Uma ousia em três hipóstases. Saiba que, em grego, ousia era o jeito de enxergar um objeto por dentro, hipóstase era o jeito de enxergar esse mesmo objeto por fora. Olha que simples! Deus era assim: por dentro, era um, por fora, era três. Simples! (Lembra do Serapeum?)

E vieram as questões satélites. Jesus seria inteiramente Homem e inteiramente Deus? OK. Havia a questão do Theotókos: a espinhosa encarnação do Verbo e a maternidade divina de Maria. Tica esse item também. Se os dois eram um só, Maria era mãe dos dois. Como? Depois a gente vê. (Lembra de Ísis com Hórus no colo? É por ai!) Tudo certo, né! E os adoradores do sol, como ficam? Coloque-se um aro solar na cabeça dos mártires e fica tudo resolvido. OK? Mais alguma questão? Todo mundo satisfeito? Era importante que estivessem. Lembram-se: um Deus, um império, um imperador? Unanimidade era tudo em Nicéia.

Para fechar com chave-de-ouro, Constantino fez uma doação de 50 bíblias diretamente do erário público. Mas, para isso, era preciso que existisse uma Bíblia, coisa que ainda não existia, porque o cânon (a lista) dos livros não estava fechado. Providencie-se a votação dos livros que devam fazer parte dessa biblioteca. E foi feita. O Apocalipse passou por um voto. Está nas Atas de Nicéia. Êta Nicéia! Se eu tivesse uma filha...

Percebem?

Atrás das questões teológicas que tanto assombravam e continuariam assombrando, por mais mil anos, a demência humana, havia uma questão política. É, uai! Ninguém, por aí, acredita em Papai Noel, certo? A questão não era teológica, era política. No caso, a questão política dizia respeito ao bem estar e à estabilidade de um império capenga. Constantino estava “se lixando” pra essa questão de Três Em Um! Era só o que faltava! Ele era um general romano, gente. Constantino queria governar. Encontrou o meio. Foi lá, e fez o fim.

Os evangelhos e Paulo haviam sido as duas pernas que deram agilidade ao cristianismo. Constantino foi a terceira perna: deu estabilidade. Agilidade? Nunca mais.

A partir dali, o Império Romano caminhou a passos largos para esfacelamento. Não fazia diferença. Constantino havia consolidado a sucessão criando o sucessor. A igreja nasceu com vocação para durar infinitamente, porque seria uma monarquia sem dinastia e de base democrática. O mais alto poder, à moda romana, poderia ser exercido por qualquer um que ambicionasse exercê-lo. Outros príncipes fracos nascidos de dinastias sem carisma, aptos para governar simplesmente porque brotaram de úteros reais, não teriam vez nessa monarquia absoluta. (Pense no Charles da Camila.) Nesse novo império, para dominar, era preciso mostrar a quê veio e ter apetite. Constantino abriu um novo cenário, uma nova ordem mundial: o casamento perfeito entre o trono e o altar. Mas o dote dessas núpcias trouxe o ranço antigo da dissimulação. Os filhos nasceram com má-formação genética.

Quando começamos a perceber o quanto o Império Romano, esse grande império de fala latina e grega, naquele engatinhar do cristianismo, foi em essência um Estado de escravos, e como era pequena a minoria que podia viver com liberdade e orgulho, começamos a colher os indícios de sua decadência e de seu colapso. Não havia pensamento ativo nem estudos. Escolas e academia de ensino eram raras. O livre-arbítrio e a mente livre não seriam encontrados em lugar algum. As grandes estradas, as ruínas dos esplêndidos edifícios, a lei e o poder, o legado que o império deixou para as gerações futuras não conseguiram esconder o fato de que todo esse esplendor externo foi construído em cima de vontades contrariadas, inteligências reprimidas, desejos deformados e pervertidos. E mesmo a minoria que governava o vasto reino de subjugação e repressão e trabalho forçado sentia desconforto e infelicidade na alma.

A arte, a literatura, a ciência e a filosofia – frutos de mentes livres – definharam naquela atmosfera. Havia cópia e imitação, uma abundância de artífices, muito pedantismo servil entre homens cultos, mas o Império Romano como um todo, em quatro séculos, nunca produziu nada que se igualasse às ousadas e nobres realizações intelectuais que a pequena Atenas produziu em apenas um século de grandeza. Atenas decaiu sob o cetro romano. Alexandria não produziu mais ciência. O espírito do homem, ao que parecia, vagou de decadência em decadência naqueles dias. Dali pra frente...

Dali pra frente, mil anos de escuridão se estenderiam. E o cristianismo, herdeiro do espólio romano, não se deu conta de que seria refém de uma herança maldita. Quando o papado assumiu os mesmos títulos do império moribundo, assumiu também uma alma morta. O resto foi só desdobramento. “Pelos frutos conhecereis a árvore” (Mt 7,16). Pois é.

No fim dessa arenga, fico pensando se o que vale não é apenas o conselho do guru indonésio da Liz, de “Comer, Rezar, Amar”: Apenas feche os olhos e sorria para Deus, sorria com a boca, com a mente, e com o fígado.

Simples! Completo.

COMENTÁRIO ESPICHADO – 5

Paulo de Tarso

“Sejam meus imitadores, como eu o sou de Cristo” (1Cor 11,1)


A segunda forma de cristianismo é o cristianismo by Paulo de Tarso.

Voltemos no tempo. Quando as hordas arianas irromperam nas civilizações antigas, passou a ser inevitável que os velhos deuses e templos e sacerdotes sofressem modificações, adaptações ou desaparecessem. Os povos agricultores das civilizações morenas haviam modelado suas vidas e seus pensamentos numa rotina ao redor do templo. Os rituais religiosos, o medo de uma perturbação da rotina, sacrifícios e mistérios dominavam suas mentes. Era uma religião do fato e do feito.

Quando os povos arianos de pele clara e olhos azuis desceram do norte, trouxeram enormes diferenças. Pra começar, eram muito propensos à oralidade, ou seja, faladores, contadores de histórias. Seus bardos cantavam e recitavam nas festas tudo o que a memória ia construindo, porque a memória também constrói. Não mais o feito nem o fato, era o símbolo e a imaginação. Era o momento da palavra. O centro da vida se deslocou do templo para a casa do líder, onde aconteciam banquetes, recitações, jogos e discussões. Havia uma espécie de comunismo patriarcal na tribo. O chefe cuidava do gado e das pastagens de acordo com o interesse de todos; as florestas e rios eram território selvagem.

Esse estilo de vida, naturalmente, fez a passagem entre o sistema fetichista primitivo e o que viria depois, entre o fato e a palavra.

O fetiche é o sistema de causa e efeito predominante no pensamento primitivo. Alguém come planta venenosa e morre: verdadeiro ou falso? Alguém come o coração do inimigo morto e fica forte: verdadeiro ou falso? Numa mente primitiva, o sistema de causa e efeito processa as duas possibilidades acima como verdadeiras. Por quê? Porque, para o fetichista, tudo é urgente. A marca desse sistema de pensamento é a urgência: urgência para obter a caça, para não ficar sem o alimento, para evitar qualquer ameaça, para que a chuva caia na hora certa, para que a semente não apodreça na terra, para que o barco retorne, enfim, urgência para que os cuidados com a vida sejam tomados a tempo. Esse sistema caracterizava a religião do fato e do feito. Tudo era fato, e tudo era feito para dar conta das necessidades básicas do fato. Ainda hoje existe muita coisa parecida, porque a perda da saúde, do amor ou do emprego são fatos que pedem soluções de urgência. E soluções de urgência são oferecidas a granel nos supermercados credenciados. Mas, lá, isso evoluiu. Cá, veremos.

Com o passar do tempo, os povos foram se tornando maduros, e novas necessidades foram aparecendo e se impondo. Uma delas era a de dar conta com uma novidade que irrompia, sabe-se lá de onde, e ameaçava tanto quanto qualquer ameaça real. Era a angústia: não mais daquela da tremedeira diante da fera que ameaça do lado de fora, mas daquela do suor frio diante da fera que ameaça por dentro. A marca do humano é a fragilidade. Angustia sinaliza fragilidade. E vice-versa.

Com a percepção dos perigos de toda ordem e o surgimento da angústia reciclada, a religião do fato deu lugar à religião do credo. Antes, bastava queimar vítimas ao deus protetor, e pronto. Depois, isso não bastou mais. O homem quis entender aquilo que fazia, quis crer naquilo que fazia e, para tanto, precisou ser instruído. A instrução e a leitura nasceram desse desejo inquieto de entender as causas e aprofundar os efeitos. É que o homem já era outro homem. Comer o coração do inimigo não tornava ninguém mais forte, e isso o homem já sabia. O fetiche não respondia mais, isso ele também sabia. Quem sabe, os deuses não existissem de fato, disso ele já desconfiava. Só não sabia o que colocar no lugar pra preencher o vazio.

Foi aí que aconteceu algo completamente novo.

A alma do homem, sob o império romano, nos dois primeiros séculos da era cristã, cabia exatamente dentro do parágrafo acima: estava fragilizada, atormentada, frustrada e vazia. A vida era uma luta sem trégua nem vitória nem louros. O divertimento se fazia com sangue: homens e feras, homens e homens, eram trucidados e lutavam até a morte. Não é à-toa que os anfiteatros sejam as mais características ruínas romanas. É que a vida era levada nesse tom. Então, quando o desconforto dos corações se manifestou numa profunda inquietação religiosa, apareceu um novo discurso. O cristianismo surgiu na hora que o mundo precisava dele.

Mas o que é “Cristianismo”?

Perguntinha complicada. O “cristianismo” que aparece nos evangelhos deve ser escrito entre aspas; na verdade, só recebe esse nome para efeito pedagógico. Nos evangelhos, não há o quê já se possa chamar de “cristianismo”. Cristianismo, como tal, um sistema de pensamento articulado e coerente consigo mesmo, é criação de um homem: Paulo de Tarso. Foi ele quem assumiu a tarefa de botar ordem na casa e coerência no pensamento. Claro, que foi a coerência dele, o jeito dele, o evangelho segundo Paulo. Até aí, nada demais, porque os outros fizeram a mesma coisa. Acontece que o quê Paulo fez não foi apenas narrar a sua versão fatos a partir da experiência que teve na estrada de Damasco. Ele fez mais.

Paulo, judeu-romano que se expressava em grego, trouxe para o caldo cristão ingredientes das culturas por onde havia transitado. Entre outras coisas, familiarizou os discípulos com a idéia de que Jesus, como Osíris, foi um deus que morreu e ressuscitou, e irá voltar para dar aos homens a tão sonhada imortalidade. Isso, ele ficou devendo aos egípcios. Em breve, a nascente comunidade cristã seria dilacerada por disputas teológicas complexas em torno da relação entre o Deus Jesus, redentor, e o Deus Pai, criador de tudo, como veremos no próximo capítulo. Esse dilaceramento era antagônico aos ensinamentos de Jesus. E Paulo, infelizmente, concorreu bastante para essa discrepância. Um dos grandes conhecedores de Paulo afirma que todos os desentendimentos da ninhada cristã se deram por causa da doutrina paulina, nenhum por conta do cristianismo dos evangelhos. É que Paulo é intramuros e os evangelhos são extramuros.

O ensinamento de Jesus, nos evangelhos, é transparente, e parece assinalar uma nova fase na condução ética e espiritual da espécie humana. Jesus não falou para uma determinada ecclesia, falou para todos. Sua insistência no Deus Pai universal e na irmandade implícita de todos os homens, e conseqüentemente na sacralidade de toda pessoa humana – cada uma, um templo vivo de Deus – teria um efeito incomensurável sobre a subseqüente vida social e política da humanidade. Com esse ensino em expansão, apareceu no mundo um novo respeito pelo homem enquanto homem.

Paulo, judeu-romano que se expressava em grego, ainda era fruto do mundo antigo que desabrochou no novo. Mesmo assim ou talvez por isso mesmo, no meio de todas as correntes cristãs, brotando que nem capim, foi ele quem prevaleceu porque, decerto, foi ele quem, entre todas, mais de perto alcançou a essência do pensamento e do ensinamento de Jesus. Mesmo sem tê-lo conhecido e mesmo derrapando um pouco na proposta. Mesmo assim, o sujeito foi um fenômeno. Paulo percorreu o seu mundo, a pé, numa média estimada de 30 km/dia, incansavelmente, ininterruptamente, sem a menor consideração por si mesmo, pelo próprio presente e pelo próprio futuro. É um espanto! Paulo redesenhou a imagem que o homem mediterrâneo tinha de si; depois dele, o centro da Terra se deslocou de Roma para o leste, na direção do árido Oriente Médio. Voltou, porque a política exigia. Mas voltou outro. Pelo menos, com outra cara.

Países formados por grandes planícies ou cortados por grandes rios, como o Nilo ou o Eufrates, tendem a se unificar sob uma lei comum. As cidades do Egito ou da Suméria eram administradas por um único sistema de governo. Os povos gregos, ao contrário, isolados em ilhas ou vales de montanhas, mantiveram uma tendência oposta. Quando os gregos passaram a fazer parte da História, já apareceram divididos em pequenos Estados que não exibiam nenhum sinal de coalizão. Eram diferentes até mesmo em matéria de raça. Os maiores Estados gregos eram equivalentes aos menores condados ingleses; nenhuma cidade alcançou a marca de 350 mil habitantes. Existiam interesses e simpatias em comum, mas não havia coalizões.

Na era dourada, séculos VII e VI AC, a Grécia se manteve unida graças a dois elementos culturais de altíssimo poder de determinação: os épicos e as olimpíadas. Mas até o ouro azinhavra; um e outro caíram no esquecimento. Quando Paulo despontou com sua mensagem, os povos gregos a quem se dirigiu não passavam de restos do que um dia foram. Não há a menor dúvida de que a mensagem que os gregos abraçaram era o que eles precisavam para se manterem unidos. O cristianismo foi a terceira formação cultural que os uniu, e eles agarraram essa chance com as duas mãos.

Tanto que, nascido em solo judaico, rapidinho o cristianismo se helenizou. Na virada do primeiro século da Era Comum, entre os cristãos, os judeus eram minoria. Eles nunca haviam entendido o filho rebelde que tinham gerado. O pensamento grego foi a ama de leite do espírito cristão. E assim permaneceu. Mesmo depois que a igreja cristã, nascida judia e adotada grega, se tornou latina, foi em termos gregos que ela desenvolveu sua teologia. No auge da performance do papado, no século XIII, foi de novo da Grécia que a igreja cristã bebeu o leite que a iria nutrir pelo resto de sua história. Tomás de Aquino batizou Aristóteles, mas o feitiço virou contra o feiticeiro. Aristóteles não se tornou cristão, o cristianismo é que se tornou aristotélico. Quando eu estudava filosofia, era comum ouvir “philosofia ancilla theologiae”: a filosofia é serva da teologia. Que bobagem! É, justamente, o contrário.

Paulo captou essa ferramenta e fez uso dela, mesmo se dizia o contrário, como na sua estréia no areópago de Atenas, quando quase foi vaiado pelos gregos. Ele soube o seu momento e não o deixou passar. Foi grande, e teve noção dessa grandeza: “Sejam meus imitadores, como eu o sou de Cristo” (1Cor 11,1). Né!

Na antiga Suméria, os reis selavam as telhas de barro onde corria sua fala em escrita cuneiforme. A escrita e o selo do rei podiam ir muito além do que alcançavam sua vista e sua voz, e viveriam depois de sua morte. Paulo teve esse mesmo insight e mandou ver: escreveu, escreveu, escreveu. Entre pregar, coordenar, dirigir, orientar, fomentar, tecer tendas (é claro, para viver), arrumou tempo para escrever. Escreveu até da cadeia de Roma. E quando não pode mais escrever, ditou. E quando não pode mais ditar, apenas leu e assinou o que outro havia escrito. (Navegar é preciso, viver não é preciso!) Paulo foi, talvez, o primeiro místico da linhagem cristã. Mas não foi um místico alucinado, pelo contrário, teve os pés bem no chão, e escreveu para não deixar as comunidades esquecerem que não se dispensa o bom senso até quando o assunto é o Céu.

Aliás, pé no chão foi o que ele mais teve. Paulo andou muito, falou muito, e derrapou, óbvio, muito. Ou não seria completo, nem seria Paulo.

Ele teve de organizar a comunidade e a organizou em forma de estabelecimento, instituição, status quo. Paulo inventou uma nova religião. E não foi bem isso que Jesus quis. Pelo menos, não é o que aparece em cada página dos evangelhos. Jesus era um judeu que adorava o Deus dos judeus. Ta certo que de um modo incrivelmente diferente dos judeus, mas não tão incrivelmente diferente que denotasse, de início, ruptura total. Se fosse para fazer outra religião, ficasse com a que já existia. Entre o que foi feito lá, já na segunda geração, e o que o evangelismo/catolicismo selvagem faz aqui, não há propriamente grandes diferenças. E foi nesse sentido que Paulo “traiu” Jesus: ele fez o que Jesus não faria. Não faria, e não fez.
E o que foi que Jesus não fez? Ele não instituiu. Institucionaram em nome dele. (Vamos falar sério? A instituição é a morte da proposta.) Fizeram isso e ainda, retroativamente, colocaram na boca dele o desejo de instituir. “Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam” (Mt 16,18). Vem cá, faça o favor, menos! Qualquer boa exegese limpa toda demão de tinta que foi passada sobre as palavras originais. Se depois dessa limpeza, o que surge na tela é bem diferente do original, por que continuar insistindo na mesma tinta? Um grande pintor consegue reproduzir a mesma, veja bem, a mesma Mona-lisa, aquela do Louvre, idêntica. Mas não será a Mona-lisa do Louvre: o pigmento será outro, a tela será outra, o traço será outro, e os quatro séculos que as separam conferem à original o que só quatro séculos de envelhecimento natural conseguem imprimir. Portanto, se alguém quiser fazer algo seu, não faça a Mona-lisa; aquela já existe e tem dono.

Evangelismos e catolicismos selvagens fazem isso: pintam de novo a Mona Lisa. O resultado é falso, fake, fraudulento.

Foi isso o que as instituições, a partir do evento Paulo de Tarso, fizeram com a herança: já na segunda geração modificaram o patrimônio original. Mas que fique bem claro: nenhum de nós faria diferente, nem melhor nem pior. Mas a questão não é essa. A questão é se o prédio que foi construído, a partir da segunda geração, obedeceu ou não à planta original. Assim, e com todo o respeito a um sujeito que trocou a cabeça pela coerência ética, tudo indica que o que Paulo quis não foi o mesmo que Jesus. Jesus não queria “edificar”, aliás, em nenhum sentido. Bastava a liberdade, e já estava bom demais.

Jesus não queria nenhum instituto universal, nenhum estado-clerical, nenhum confronto com o poder estabelecido, nenhuma simples alternância de poder. Quando tirou a moeda da goela do peixe, o que perguntou foi: “De quem é a imagem na moeda?” Responderam: “De César.” E ele: “Então, devolvam a César o que é de César, devolvam a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21). Se a moeda carrega a impressão de César, estão fazendo o quê com isso em suas mãos? É dele, devolvam pra ele. Mas se algo dentro de vocês, em sua alma, traz a impressão do Incognoscível Outro, então, não retenham o que não lhes pertence: devolvam a quem de direito. O Sermão da Montanha (Mt 5-7) é a magna carta do novo estado de coisas. O centro dessa mudança repousa na pobreza: “Felizes os pobres em espírito” (tecla SAP: Felizes os que são pobres porque querem ser pobres) “porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3). As bem-aventuranças seguintes estão no futuro, só essa se encontra no presente. “Um rico dificilmente entrará no Reino do Céu, é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino do Céu” (Mt 19,23).

Simples como beber água. Quem dera fosse fácil, como beber água!

Alguém me questionou se a fidelidade a Cristo não se abalaria com o repensar das letras. Por quê? Se há algo a ser abalado, são apenas as representações acerca do mistério, sob as quais a fidelidade pode emergir ou desaparecer, vigorar ou se submeter. Se alguma entidade sócio-político-econômica-e-afins se autodenomina gerente desse banco, desconfie. As “letras” podem ser falsas. Toda unanimidade é suspeita e a presunção de unanimidade universal é mais suspeita ainda. “Quando uma atividade qualquer não consegue se sustentar na ética de sua prática, acaba se transformando no exercício de um poder” (J. Lacan, Escritos).
“Para quem busca a verdade, só a verdade interessa” (Al-Kindi, 870 DC).
A intenção do pensamento não é a destruir nem a de reconstruir, mas a de erguer possibilidades, justamente, ao pensamento. Haveria como construir de outra forma esse edifício da tradição cristã? Teria evitado cruzadas, inquisições, pedofilia? Teria erguido todas as obras de assistência social que aliviaram por 20 séculos seguidos a dor e a miséria humanas? Teria incentivado todas as formas de arte como fez? Como saber? É difícil conhecer o caminho antes de percorrer o caminho. E percorrer é correr risco. O que temos foi o que construímos nessa história de erros, enganos e engodos. Daria pra ser diferente? Não sei.
O que temos para hoje é isso, senhor! – diz, em monalísico sorriso, a gentil comissária de bordo.
Paulo! Uma incógnita. No século dos horrores de Tibério, Calígula e Nero, mesmo tendo incitado a obediência nos escravos, incentivado o respeito pelas autoridades (confira os nomes aí em cima!) e mandado as mulheres calarem a boca e se cobrirem de véu, Paulo foi uma luz. Ta certo que Jesus faria (e fez) diferente: curou servos-escravos, acudiu adúlteras e impediu apedrejamentos da vil virilidade, andava acompanhado de mulheres e outros seres, e não quis saber quem era dono do quê na política do mundo: “Minha realeza não é desta ordem” (Jo 18,36). Mas Jesus era Jesus.

Seja como for, caro Paulo, saiba que o fato de eu não ir muito com a sua cara não me dá o direito, sequer, de pensar que você deixou a desejar naquilo que se propôs. Exageros à parte, eu não sou digno de lamber a sola do seu pé. E espero que quando chegar aí, gentilmente, você me sorria de longe, apenas, como quem diz: To sabendo, to sabendo! E me deixe seguir para minha humilde casinha-geminada em algum conjunto residencial para classes populares, no Céu.