domingo, 31 de julho de 2011

SAUDADES DA CAUDA

Apesar da razão, da inteligência, do polegar e do privilégio de caminhar com dois pés, é evidente que a cauda faz falta ao homem. Ao que tudo indica, foi a perda desse órgão que levou o animal humano a tornar-se mentiroso. O que não é nada estranho de pensar. Basta levar em conta que é na cauda que se concentra a eloqüência sentimental do cão, sua alegria e seu medo, sua inimizade e sua gentileza. Ao ser privado da cauda – em que pese o cumprimento de alguma terrível punição divina! – o homem perdeu igualmente seus mais primitivos e verdadeiros sentimentos de animal selvagem. Sim, verdadeiros! Ou você já presenciou algum animal selvagem mentindo ou trançando informações com duplo sentido? Bicho não mente. Quem mente é o homem.

Quando perdeu a cauda, o homem desceu das árvores. Quando desceu das árvores, caiu do paraíso. Quando perdeu também o paraíso, teve de se acostumar a ser gente. E ser gente é complicado. Complicadíssimo! Ser gente é sempre expulso, mesmo de algo que nunca se saiba o quê.

A cauda era o ponto de apoio. Perdido esse ponto, o homem perdeu seu centro físico e espiritual, transformou-se num animal terrestre, e com isso precisou de um outro centro de equilíbrio e, consequentemente, também, de um novo idioma que lhe permitisse substituir em parte, mas só em parte, a extraordinária capacidade de expressão da cauda. Assim, teve de aprender a falar, a sorrir, a caminhar sobre dois pés, a dançar e a rezar, tudo isso através de uma lamentável e desesperada improvisação de suas faculdades expressivas. É que ele havia perdido a cauda! É que ele não tinha mais a cauda! E o pior, o pior de tudo, é que todas essas faculdades reunidas e usadas ao mesmo tempo, nunca conseguiram compensar, com sua dispersa e convencional falta de eloqüência, a irreparável perda da cauda.

A carência desse órgão indispensável fez do homem um animal sem atrativos. É claro que ele precisou desencadear um interminável processo de invenção de novos recursos para tornar possível a reconquista da ostentação desse órgão perdido. O homem aprendeu a cantar e a voar, mas claro, sem conseguir nem de longe imitar os pássaros. Aprendeu a andar na corda bamba, no entanto, com menos graça e menos senso de equilíbrio dos que os gatos. Aprendeu a fazer versos, a escrever, a filosofar e a suicidar-se, procurando superar todos os outros animais, e todos juntos, e dessa forma justificar sua inverossímil existência sem cauda. (E, por que não, sem causa.)

Contudo – riam comigo – o mais hábil dos homens não valeria nem a metade do valor que teria um cachorro cantor, um elefante equilibrista ou um rinoceronte filósofo. O segredo que macacos, leões e cães guardam ao encenar um espetáculo de circo baseia-se, simplesmente, no fato deles apenas terem aprendido a imitar os homens. Mas não pára aí. Ao imitar os homens, esses animais revelam e denunciam de imediato o ridículo que o homem guarda em sua trágica e inconsolável condição de bicho sem cauda.

A gente morre de rir de um macaco de terno e gravata dirigindo um carro. Mas é da gente mesmo que a gente ri. Passar a vida de terno e gravata, dirigindo carros e se achando o máximo, por causa disso, é risível. O macaco do circo apenas nos oferece a ocasião. Então, a gente vai lá, enfrenta fila e paga e se senta na mais-desconfortável-cadeira-que-possa-haver-no-mundo só pra rir de si mesmo. Que falta faz a cauda! Com ela, o riso seria mais solto e sensato e verdadeiro. E grátis.

A vida seria muito mais cômoda e pitoresca se os homens tivessem cauda. As mãos, por exemplo, poderiam se ocupar de todas as suas funções, integralmente, sem a necessidade de cumprir seu melancólico papel de cauda emprestada. O amor seria muito mais seguro e sincero se as caudas não permitissem ao restante do corpo mentir. Já imaginaram quantas possibilidades para a moda se frustraram com a perda desse órgão sem preço?

Não resta dúvida que foi um negócio funesto e de saldo negativo, ter trocado uma coisa tão útil e decorativa, como é a cauda, por algo tão supérfluo e incômodo, como é a razão. Ainda mais, se a razão nos faz perceber sem ver que algo foi perdido, para sempre perdido, sem que saiba onde, quando e, sobretudo, o quê.

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