quarta-feira, 27 de julho de 2011

RESENHA ESPICHADA – 3

Heteronomia e autonomia

Minha avó interpretava sonhos. “Não presta sonhar com ovo: é morte na família”. Sonhar com cobra verde também não: alguma mulher solteira, da família, ia ficar grávida. (Claro! Como é que ninguém pensou nisso antes?) A bem da verdade, e da minha avó, devo dizer que esse insight onírico não havia nascido com ela. Precisamente, provinha da avó e da outra avó e da outra avó... Para ser tomado, assim, ao pé-da-letra, como verdade infalível, tinha de brotar de fonte mais antiga, muito mais segura, inabalável, fidedigna, que só poderia ser, no caso, a proto-avó.

O ovo e a cobra verde servem de ilustração para aquilo que o nosso autor chama de heteronomia. Heteronomia? É uma esclerose do pensamento que governou a cultura ocidental no passado, até o século XVI, e que ainda governa muitos pensamentos no século XXI. Basicamente, o roteiro do filme é esse: 1) o mundo daqui de baixo depende de outro mundo, lá de cima; 2) o mundão lá de cima é construído nos mesmos moldes do mundinho daqui de baixo. Sei, sei. É de uma incoerência cruel. Mais ou menos como quando as cortes portuguesas foram deslocadas para o Brasil e a matriz se tornou colônia da colônia. (!) Construir o mundo “de cima” pelo projeto do mundo “de baixo” é, pra dizer o mínimo, surreal. Vêm daí as pinturas de Deus barbudo, vestido à moda da época, entronizado, coroado, cercado de cortesãos e servos de uma corte celestial tão rebuliçosa quanto qualquer corte palociana, digo, palaciana, cá e baixo. Desse mundo “de cima” viriam todas as decisões, punições e benesses. Lá é o setor administrativo, aqui, o setor produtivo. (Fico imaginando o tamanho do arquivo desse RH. Daria um dedo só pra fuçar nele.)

É evidente, o tanto de antropomorfismo que rola nessa idéia. Antropomorfismo significa condecorar determinados elementos naturais ou sobrenaturais com semelhanças humanas. Por exemplo, a árvore que fala, dos desenhos animados; os animais que se metem a gente, das fábulas infantis; os atributos divinos, das incipientes teologias do povão: Deus ficou triste comigo, Deus está zangado comigo, Deus vai me castigar. E mais um monte de coisas que, em especial, o catolicismo ocidental criou a respeito do Sobretudo Outro para traduzir em imagens o que a linguagem nunca deu conta, porque não dá. É daí que vem: “subiu ao céu”, “desceu do céu”, “sentado à direita de Deus”, “pra julgar os vivos e os mortos”... Esse modo de falar concreto acerca das realidades últimas (em teologia se diz: escatológicas) supõe uma intervenção direta de Deus na ordem cósmica, como se Deus fosse um gandula de pelada de várzea, sempre apartando briga, buscando a bola no córrego, desempatando o jogo mesmo sem pertencer ao time, essas coisas...

De vez em quando, esse mundo “de cima” até se comunicava com a gente, pra nos dizer o quê, sozinhos, jamais conseguiríamos descobrir. De vez em quando, ele nos concedia parte das inúmeras coisas de que precisávamos e que achávamos que, de novo sozinhos, nunca alcançaríamos. Daí as súplicas, cumprimentos de promessas, sacrifícios, oferendas, tudo para captar o favor dos governantes. Daí a corte celestial contar com santos protetores (lobistas do Céu), gabaritados para alcançar benevolência e, naturalmente, a miudeza que nos falta. Que é, na verdade, o objetivo que interessa à pavimentação do culto. Se não é chuva é sol, se não é emprego é saúde, ou desilusão amorosa ou loteria acumulada. Miudezas! Aos interessados informo que todos os pedidos deverão ser acompanhados de algum presente e que esse presente pode ser em espécie. Afinal de contas, quem tem boca, fala; quem tem dinheiro é que vai a Roma.

Parêntesis. Nada disso é tão venenoso assim! Quem de nós já não se escorou nalgum santinho de estimação que atire a primeira pedra. (Disseram-me que Santo Antonio é rápido, porém, vaidoso. Recebida a graça, espalhe!) Até aí, nenhum problema. O problema é que esse procedimento infantiliza as pessoas. O corolário da heteronomia é deixar (ou fazer?) as pessoas se tornarem totalmente dependentes de uma ordem externa, naturalmente, manipulada apenas por quem detém o “múnus manipulatórius”. Se acontece assim, não adianta, depois, reclamar se essa infantilização é justamente o que não permite às pessoas assumirem o seu papel desejado na ordem pré-estabelecida. Olha o terreno onde a semente é plantada!

Mas ainda não falei da matéria prima essencial dessa usina. São dois acompanhantes, absolutamente inoportunos – a primeira, fumante e o segundo, bêbado – que insistem em sentar-se na mesma poltrona em que a gente viaja: a culpa e o medo. Culpa gera medo, medo gera dívida, e dívida, pagamento. Pára-choque de caminhão estava certo: “Se Deus é o dono da cessionária, Edir Macedo é o pedágio”.

A gente sabe quem tem de pagar. Mas quem é que vai gerenciar a empresa?
Diferente do judaísmo e do islamismo, o cristianismo ensina que há dois mil anos, Jesus de Nazaré revestido de poder e sabedoria divinos, Deus em forma humana, honrou esse infeliz planeta com a sua presença, e voltou ao Céu depois de morte ignominiosa e ressurreição gloriosa, pra retornar no final dos tempos. No lugar dele, foi constituída, no mundo “de baixo”, uma hierarquia vigária que estabelece e mantém o contato com esse mundo “de cima”. É esse o vínculo que essa hierarquia garante conhecer melhor do que o público fiel, e é através dele que ela reivindica a clarividência determinante do que é certo e do que é errado, verdadeiro ou falso, de modo infalível. Essa ponte construída entre o Céu e a Terra autodenomina-se Magistério. Essa é a base e, ao mesmo tempo, o resultado da heteronomia.

Só que essa heteronomia durou até o século XVI e já acabou.

Por que até o século XVI e por que acabou? Fácil! Porque no século XVI o mundo virou de cabeça pra baixo e, com isso, caíram dos bolsos tudo o que mantinha as posições anteriores. Os grandes descobrimentos trouxeram notícias de outros lugares, mundos, modos e gentes que desbancaram a oficialidade doutrinal em vigor até aquele momento. Lutero incendiou a Europa apenas afixando à porta da igreja do castelo de Wittenberg as famosas 95 teses. Claro que não foi por isso que a Europa pegou fogo. As teses haviam sido colocadas lá, apenas (veja bem, apenas), para debate escolar na universidade do castelo. Coisa mais ingênua do mundo! E não teria passado disso e nada teria acontecido se a imprensa, inventada no século anterior, não soprasse aquela fogueira. Um sujeito foi lá, arrancou as teses da porta da igreja e imprimiu para distribuição gratuita nos postos de gasolina e hotéis. Boom! Aquilo alastrou entre o povo feito fogo em plantação de eucalipto. Os príncipes do norte da Europa estavam até à tampa com o papado e com tudo o que haviam perdido por causa dele no desastre das Cruzadas, das quais ainda não se haviam recuperado quatro séculos depois. E também por tudo o que pagavam de impostos tributados, ainda, no auge do Sacro Império Romano Germânico. Lembram-se do Carlos Magno? Então, é aquele ali, mesmo. Dizem que o sujeito não sabia nem escrever, e dividiu o mundo em dois: metade pra ele, metade pro papa, isso é meu, isso é seu...

Tem outra. A partir desse século, a Dona Ciência evoluiu. E ela sacou algo que revolucionou tudo: a ciência descobriu que a natureza segue suas próprias leis, que a regularidade dessas leis pode ser calculada, e que as conseqüências podem ser previstas. Percebe aonde isso ia dar? Com essa caixa de ferramenta, a ciência já era capaz de tomar precauções. Então, o ramo bento, a água benta e o sal bento podiam ser aposentados? Uai, podiam. Ainda podiam servir, é claro, para outros fins: podiam ser fios-terra para captar o divino, isso podiam. Pra outros efeitos já existiam outros meios. Existem. Tentar curar dor de garganta com vela benta continua válido? Sim, sim, sim. Mas aproveita, passa também no médico e na farmácia, melhor antes.

A maior das descobertas do século XVI não foi o Novo Mundo. Foi um mundo novo de idéias. A partir daí, o universo passou a obedecer às suas próprias (autos, em grego) leis (nomos, em grego). Daí, autonomia. Diferente do que vinha vigorando até então, a partir daquele momento, o universo se tornou autônomo. E assim também a vida das pessoas. E assim também o que cada um pudesse escolher e decidir fazer com ela. Cada um estava apto a descobrir e viver “a dor e a delícia de ser o que é”. E viva o menino Caetano!

Até então essa escolha havia sido sempre anteriormente decidida por quem detinha o poder de escolher. Se você escolhesse diferentemente seria considerado herege. A propósito, você sabe o que significa heresia? Heresia era a escolha que você fazia do seu modo de pensar, ser e viver, mas que era contrária àquilo que status quo dominante havia escolhido para você pensar, viver e ser. Eles é que sabiam o que era melhor pra você. Se você fizesse as suas escolhas, naturalmente, elas seriam punidas com exílio, tortura e morte.

Agora a pergunta que vale um milhão de dólares! Você sabe de onde vem a palavra heresia? Vem do grego, como quase tudo. Em grego, heresia se diz haeresis. E haeresis significa? Dou-lhe uma... Haeresis significa ESCOLHA. Justamente, escolha. Heresia = haeresis = escolha. (Pausa para o riso.) O verbo escolher, a partir de um determinado ponto da história ocidental se tornou altamente perigoso: escolhesse pra ver! Mais ou menos como na prateleira de Mac Donald, todas as escolhas já haviam sido feitas por você. A liberdade que lhe restava era só a de pedir pelo número.

Vem cá! A possibilidade de escolha também é perigosa. Né! Pra todo mundo, é perigosa. Para o indivíduo, existe o perigo de ter de tornar-se sujeito de sua própria vida, saber o que quer e cuidar de si mesmo, por própria conta e risco. Para as instituições existe o perigo de perder o apoio da heteronomia, supremo bastião onde elas concentravam e de onde mantinham o poder da hegemonia.

Porém, já era tarde, não havia mais jeito! Do ponto de vista cultural, o século XVI deu à luz a música tonal, sobretudo, com Bach, e isso deslocou o foco do universo religioso e, consequentemente, social. A Igreja católica havia exaltado o ideal de impessoalidade musical e condenava as obras que deixavam de se aproximar dele. O compositor católico compunha apenas obras onde a música fosse serva da liturgia. Ao contrário, o compositor protestante podia exprimir-se com maior liberdade e, nisso, a música tomou outro caminho: a música deu a mão à expressão do desejo. O público entendeu, aprovou, aplaudiu. E o músico não se preocupou mais com a aceitação das autoridades. Coisa de nada, né! Foi só um pequeno desvio, mas a estrada mudou de lugar.

Do ponto de vista político-social, o século XVII baniu o demonismo das mentes pensantes (claro!) e tomou em mãos as rédeas da civilização. O século XVIII suprimiu a tortura como método processual. Em seguida, vieram os ideais da Revolução Francesa e a primeira declaração dos direitos humanos. Depois, a abolição da escravidão. Por fim, a penetração irrefreável do ideal da democracia, chamado na época de liberalismo, na mesma época, aliás, frontalmente combatido pela hierarquia institucional católica. E voilá! Havia nascido a modernidade. E depois a pós-modernidade, como sua autocrítica.

Deus ainda existia? Decerto. Nunca trombei com ele na esquina, por isso não posso afirmar categoricamente. O máximo que posso dizer é que, caso não exista, existe o desejo que exista. Mas se esse desejo existe, nele mesmo vem embutido um outro desejo que não pode ser desprezado: que o objeto do desejo exista de outra forma, com outras representações, e não mais submetido a quem tire proveito desse desejo de existência, cobrando pedágio, indevidamente.

A partir desse ponto, estamos prontos para acompanhar o autor em sua proposta de retificar, gentilmente, as representações (apenas as representações) que foram tomadas de maneira literal e, por essa mesma razão, acabaram avalizando o oposto daquilo a que se haviam se proposto desde os inícios de sua intervenção. Parece que temos muito a revisar. E se essa revisão for feita com coragem e gentileza, quem sabe, às apropriações indébitas do mistério da fé sucederá um novo modo de pensar aquilo que, para muita gente, tem sustentado a vida. Nunca diga para um sujeito que, toda noite, coloca um pires de leite sobre o muro, e que recolhe o pires vazio no outro dia, feliz da vida porque Deus aceitara a sua oferta, que não foi Deus, mas o gato do visinho que aceitou a sua oferta. Pobre homem, vai ficar sem seu Deus! Pobre Deus, vai ficar sem seu homem! Pobre gato, vai ficar sem seu leite!

Mexer no que as pessoas crêem é nevrálgico. Deslizar suas representações é sumamente necessário. As coisas nunca são o que foram feitas parecerem. As formulações tradicionais são expressões de culturas que pensavam em termos pré-científicos e heterônomos. Essas formulações foram válidas apenas no interior daquelas culturas. Não são mais e nem precisam ser. Não têm validez absoluta, não são eternas, não são imutáveis. O homem moderno que ainda quer crer não rejeita essas formulações como errôneas. Apenas sabe que elas articulam a mesma experiência de fé e de encontro com Deus, porém, partindo de outro axioma, de um outro jeito de pensar, que não é o dele. O Catecismo vigente, formatado nos moldes da Igreja da Contrarreforma, foi bom para o século XVI e, lá mesmo, já estava defasado. Se ele servir para o homem moderno encontrar Deus, então, ótimo! Se não servir, tornou-se uma ferramenta obsoleta. Ou imprópria, como tentar abrir porta com chave-de-roda. É chave. É boa. Pra roda.

A minha avó morreu acreditando que sonhar com ovo e cobra verde tinha o significado concreto de alerta para desastres vitais. Acontece que a minha avó estudou, como ela própria repetiu a vida inteira, só 8 meses do primeiro ano, porque ela era caçula, e órfã de pai, e os irmãos mais velhos achavam que “mulher não precisava estudar”. Mas ela nunca se conformou com isso, como também nunca se conformou com nada que restringisse sua faculdade de pensar, e nunca deixou meu avô mandar na vida dela, e morreu depois dele. Devo a ela certo dom de inconformidade que me acompanha a vida inteira. Porque as coisas nunca são o que foram feitas parecerem.

Uma moça fina, educada na mais alta sociedade sorocabana, me fez ver que essa arenga toda, que eu levei páginas pra escrever, Drummond havia condensado numa frase só, com a genialidade com que só os gênios sabem resumir. “As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão”. Bom esse menino, né!

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