quarta-feira, 13 de julho de 2011

O BESOURO

Não sabendo que era impossível...

A gente nasce no meio de um campo onde se joga alguma coisa. Nasce dando e levando pernada, às vezes, quebra a perna, se esfola, briga, xinga, bate, apanha. A gente nasce no meio de um campo de luta de forças antagônicas: é o filho que vai mal lá fora, é o casamento que não vai bem aqui dentro, são as contas a pagar, a casa que precisa de pintura nova, o chefe inoportuno que insiste em ser ainda mais inoportuno, o primo inconveniente do irmão do cônjuge (primo do cunhado!) que vem almoçar todo final de semana... é pau, é pedra, é o fim do caminho... é a lama, é a lama...

É o salve-se quem puder.

Por muito tempo, você fica aí, onde nasceu, no meio de um campo devastado por micros e macros lutas diárias, simplesmente, tentando sobreviver pelo maior número de anos que for possível. Leva vaias, mas não sai dali. É a lama, é a lama...

Até que um dia, você se dá conta de que não precisa ficar ali, onde a vida o colocou pelo simples nascimento. Você não é herdeiro de coroa nenhuma. Não faz parte de realeza alguma. Não precisa, desgraçadamente, ficar onde nasceu só porque nasceu.

Aí, você sai do campo, e se senta no primeiro degrau da arquibancada. Já subiu um degrau. Ó.

Mesmo assim a vista ainda é pequena. Os xingamentos chegam de todo lado, a todo instante, você corre o risco de entrar de novo no campo ou porque é chamado ou porque não consegue ver você mesmo onde ainda se acha que está. Perdendo. Você tenta interferir e sai ferido. Não consegue não meter seu dedo na ferida dos outros. A pretexto de um caminhão de boas intenções, geralmente, você perde a direção e é atropelado justamente pelo caminhão que tentava conduzir. É a lama, é a lama...

Só aos poucos, e não tem jeito, não, é só aos poucos, você começa a entender que não é tão necessário ficar no primeiro degrau da arquibancada, da mesma forma como se deu conta de que continuar no meio do campo era pura insanidade. Você começa a entender o que há de mais chic nessa vida pra ser entendido: você mesmo não é tão necessário assim, como se julgava.

Então, daí pra frente, o seu filho pode decidir o emprego e até o sexo que deseja pra si? Então, sua filha pode decidir se vai morar sozinha ou acompanhada, bem sozinha ou mal acompanhada? Então, sua esposa pode querer experimentar o que só uma maravilhosa balconista de loja no shopping pode conhecer no quesito cosmovisão? Então, seu marido pode mudar de emprego, ganhar menos, diminuir o tal padrão de vida? Pode também diminuir o colesterol e as chances de enfarto?

Como isso demora! Fomos todos tartarugas em outra encarnação.

Mas você vai subindo, degrau por degrau dessa arquibancada. Você nem vê que está subindo, mas está. Quando vê, olha aí, já está quase lá. À medida que sobe, percebe que a visão amplia. O campo vai ficando maior, sim, porque quando você estava lá, bem no meio dele, você só via uma pequena parte: a parte que seus pés ocupavam. Você tomava a parte pelo todo. Não sabia por que, mas uma sensação de aperto, angústia, insuficiência, inaptidão, incompetência, vazio, e tanta coisa, invadia você naquela situação, e não sabia se queria sair dali, e nem sabia que queria sair dali. Só ficava porque não sabia onde ficava a saída, e nunca havia experimentado a porta. É a lama, é a lama...

Tem uma coisa que mais tarde você vai dizer quando se lembrar disso: Se tivessem me avisado...

Nada! Se tivesse avisado, você teria virado a cara e feito um inimigo. Sabe aquela história de quando o rei recebia uma mensagem desagradável e matava o mensageiro? Pois é! Essas histórias não nascem do nada. E eu não sou nem besta de avisar alguém assim. Às vezes, penso até em dizer: Cuidado! É a lama, é a lama! Mas, aí...

E, então, de degrau, você chega ao último e a visão é completamente diferente. Ainda lá, se ouvem os xingamentos do campo. Mesmo lá, você corre o risco de receber na cabeça as latas de cerveja arremessadas. De alguma forma, lá, você ainda faz parte daquele contingente insano.

No entanto, da última arquibancada, ainda assistindo o jogo feroz da sobrevivência, de uma coisa você já sabe: você não participa mais nem quer nem precisa nem vai. Porque já entende tudo o que se passa. Entende porque você mesmo passou. Só o passamento traz entendimento.

Só então pode dizer que a visão é outra. Só então pode dizer que enxerga.

A gente gosta de dar nome às coisas; parece que elas ficam mais nossas depois de nomeadas. Caso você queira dar um nome a esse entendimento, sugiro que você o chame de “transcendência”. Mas, não tem nada a ver com religião. Essa ponte entre o-cá-e-o-ainda-cá-mas-diferente, é tão diferente e torna tudo tão diferente, que você pode chamá-la de transcendência. E ela atende. Desde que seja só isso: que seja aquilo que transcenda para-além-do-simplesmente-aqui-e-agora-banal-da-vida.

Cabe bem, aqui, a história batida do besouro que não tendo a menor capacidade aerodinâmica, mas não sabendo disso, sai por aí e voa. Ta certo que bate, cai de costas, dá um trabalhão insano, mas vira, levanta e voa de novo. Até bater de novo, e cair de novo, e...

Cabe bem, aqui, a frase também batida do “Não sabendo que era impossível foi lá e fez”. Se você pensar assim, mesmo pensando assim, ainda que pensando assim, suba um degrau da arquibancada, ou simplesmente saia do campo. Se ainda não der pra voar, pelo menos, desvire-se do tombo que levou. E se levante.

E, assim que der, voe.





Um comentário:

  1. Renato, como não poderia deixar de ser, cá estou eu te seguindo.
    Já assinei feed, já linkei no meu favorito, já inscrevi para receber atualização por sms, tudo o que você nem sabe o que é [exagero, claro!]... mas estou aqui. Poste onde for mais cômodo para você e sempre serei sua leitora! Com muito prazer!!! =D beijo grande. Gi Gi Gih

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