quinta-feira, 14 de julho de 2011

A QUARTA BAILARINA

Então, ele pegou e foi. Não havia jeito e quando não há conserto... Tsss... Ah! Então, ele foi. Era final de dezembro, e era a última apresentação de balé da única afilhada e única sobrinha e única filha do irmão e única neta dos avós. Única!

Mas de um desengonço total. Jesus Cristo! Que é que era aquilo! Que menina desengonçada! Desde não sei quando, ela fazia balé. Desde não sei quando, a mãe não deixava ninguém não saber que ela fazia balé. Desde não sei quando, todo mundo achava a-coisa-mais-linda-do-mundo ela fazer balé. E mesmo assim, desde não sei quando, não havia quem consertasse aquele desengonço. Que menina desengonçada!

Mas não adiantava! Ele falou: Vou ter de ir lá, mas é só porque não consegui uma caxumba básica nem uma pneumonia salvadora, sequer uma gripezinha mixuruca de última hora. O que não tem conserto...

Mas tudo o que pode ficar pior, nunca tenha dúvida, ficará. Aquela era uma tarde de domingo, no inferno do calor de dezembro, após uma discussão acalorada no almoço com a concunhada insuportável, que insistia porque insistia que ele precisava emagrecer. Existe coisa pior do que ser chamado de gordo pela concunhada insuportável? Tudo o que pode ficar pior...

O lugar! O lugar onde se daria a dita apresentação era um salão de assento duro, co’a tinta descascando, sem ventilador, mais feia que igreja de bairro.

Pronto, quadro completo: o inferno de Dante!

Entraram, sentaram, esperaram, conversaram, esperaram mais um pouco, bocejaram, olharam pros lados, esperaram ainda e... Cadê a dança, pelo amor de Deus? Abriu-se pesado cortinado vermelho e a música invadiu o ar. (Esse pedaço da frase ficou brega, mas vou deixar assim mesmo.)

Dizer que a música era feia, não era. Dizer que era bonita, não era. Dava pra agüentar. E entraram as bailarinas. Gente, o que aquela gorda ta fazendo ali? Psiu, repreendeu a patroa. Mas é verdade, o que aquela gorda ta fazendo ali? Cadê nossa afilhada? Ah! Olha ela lá! Aquela menina não toma jeito de bailarina nem se nascer de novo! Psiu, a patroa não tava de brincadeira. Mas é verdade!

E o balé transcorria. De vez em quando, uma rangida na poltrona, uma olhada pra trás, e a cara de quem pagava caro pra não estar ali.

Mas aí, foi aí, ali mesmo, naquele momento, que aconteceu. Sem se dar conta, imperceptível com um fio de cabelo louro ao sol, a impressão que o suspendeu era a de que nem o lugar era mais o mesmo lugar. Uma brisa fresca atravessou o salão e a percepção do momento foi o equivalente a folhas de papel esvoaçando. Como quando uma a uma elas saem do maço sobre a mesa, levadas, sabe-se lá por que demônio do vento, e vão parar ali, ali e ali. Foi isso. Uma queda d’água que esborrifou o ar pesado e dissipou a vontade de apedrejar o palco. Ele estava surpreso. Era outro.

Parou. Colocou o queixo entre as mãos. Não se mexeu mais. Nem um rangido da poltrona. Nem uma virada pra trás. Nem um suspiro longo de vontade de matar quem o havia arrastado. Nem um nada. Nadinha. Ele parou.

Um tempo de não sei quanto se passou e o amigo ao lado percebeu a mudança.
- Ta gostando?
- Não.

Silêncio.

- Mas você parece estar gostando!
- Nem um pouco.

Silêncio.

- Mas então que cara é essa?

Silêncio.

Então ele falou:
- A quarta bailarina à direita. Presta atenção na quarta bailarina à direita.

A quarta bailarina à direita era tudo o que tirava a insalubridade do lugar. Era linda. Não, era mais que linda. Não, era excepcionalmente linda. Leve. Graciosa. Esvoaçante. Dessas que o pé não toca o chão nem quando o pé toca o chão. Linda. Linda. Linda.

Quando o dever sisudo se deu conta, havia dado lugar ao inconfundível prazer. O inferno da tarde de domingo, no calor de dezembro, depois de ter sido chamado de gordo pela concunhada, depois de ter de inventar palavras com que definir a maravilhosa total destreza da afilhada em sua infinitesimal incapacidade de acertar um pas-de-deux sequer, depois de ser conduzido pelo nariz feito boi de canga, lá estava ele, babando, porque havia descoberto a beleza imensa da quarta bailarina à direita. Nem Colombo! Nem Gagarin! Nem Dumont!

Nem você!

E você? Cadê sua quarta bailar...

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