quarta-feira, 27 de julho de 2011

COMENTÁRIO ESPICHADO – 7

A crise das igrejas


A Igreja, sobretudo, no Ocidente passa por grave crise. Mas é muito mais uma crise do conceito do que da práxis.

Primeiro, porém, vamos colocar os pingos nos is. Não existe uma Igreja cristã. São três as Igrejas cristãs: A Igreja Latina (que a gente chama de Católica), a Igreja Grega (que a gente chama Ortodoxa) e a Igreja da Reforma (que a gente chama de Protestante, e alguns preferem chamar de Evangélica).

Todos os termos são impróprios.

Católico, em grego, significa “universal”. Nesse sentido, a “Igreja Universal do Reino de Deus” pode também ser chamada de “Igreja Católica do Reino de Deus”. Preciso dizer mais sobre a inexatidão dos termos?

Ortodoxo, em grego, significa “reta opinião”. Nesse sentido, qualquer uma delas pode se auto-proclamar ortodoxa. Presunção de reta opinião não falta a nenhuma.

Imagino que chamar alguém de “protestante” não seja nada lisonjeiro. E “evangélico” é o pior dos horrores: t.o.d.a.s são evangélicas, e nenhuma, de fato, o é.

Então, mantenhamos os termos de forma assertiva: Igreja Latina, Igreja Grega, Igreja da Reforma. São três. Ponto. O restante é pretensão. Então, só pra ficar claro, não existe uma só Igreja; não se pode falar da “Igreja de Cristo”, por exemplo. Existem três igrejas, três grandes ramos de um mesmo tronco, por onde, na melhor das hipóteses, corre a mesma seiva. E, cada uma a seu modo, até que se prove o contrário, é de Cristo. Pelo menos, enquanto ele quiser.

Então, recomecemos: as Igrejas cristãs passam por grave crise. As do Ocidente, ainda mais. A Igreja Latina, sobretudo. Não só porque o Islã vem com tudo, e não ta prosa (aliás, nem um pouco), mas porque a Igreja Cristã Latina (Católica, só pra lembrar) tem vocação suicida, perde público, desnecessariamente.

Há quem afirme o contrário, e mostre igrejas cheias e santuários de peregrinação com sucesso renovado, ampliando cada vez mais a rede hoteleira, comercial, logística, etc. Ta. Mas nada disso significa que o escopo foi atingido. Qual? O do Evangelho. Hã? O de instaurar o Reino de Deus, cá e já. Como? Pela estrada real da retificação subjetiva. Mas o que é isso? Explico.

Tendo as pessoas percebido o quanto suas vidas estavam vazias de significado e sentido, tendo se dado conta do tanto que andaram errando o alvo da existência e do quanto poderiam proceder a uma modificação absolutamente interna, absolutamente nova, absolutamente real, de princípios e de alma e de todo ser: assim o fariam. E só assim poderiam instaurar uma retidão (de princípios e de alma e de todo ser). E só isso teria a força de nortear o rumo dos acontecimentos e rebobinar o fio das vidas para gerar luz e calor. Uff!

Estamos longe, né?

No plano ético, entre avanços e retrocessos – um pra frente, dois pra trás – não fomos muito além do que sempre estivemos: tateando, no escuro, de olhos vendados, mãos e pés atados. Muita intenção boa. Muito papel escrito. Decisões de montão. A prática, contudo, revela realizações pífias. Quando vejo, hoje, na TV, os gregos (os gregos!) lutando de pau e pedra e bomba caseira contra o império armado do governo, não há dúvida: estamos de volta às Termópilas. “Me dêem suas armas!”, grita Dario, o persa. “Venham buscá-las”, responde Leônidas, o grego. Orgulhoso século XXI!
No plano religioso, a Europa se paganiza, a olhos vistos, a África se islamiza, a olhos vistos, a Ásia se decompõe, a olhos vistos. A América é o eldorado cristão. A olhos vistos! Todas as igrejas estão cheias nos domingos, né mesmo? Não é à-toa que ávidos desejos se voltem para cá. Até pouco tempo não tínhamos um santo. Agora, estão pipocando; que eu saiba, só numa diocese há três candidatos oficiais. Mesmo assim, a emblemática constatação das igrejas cheias é uma falácia. Engordar não é crescer.

O fato é que a religião usada para fins apenas devocionais ou particulares ou terapêuticos ou paliativos ou promocionais ou interesseiros ou sei-lá-tanta-coisa-mais-se-vê-por-aí, com ou sem honestidade, ficou longe da proposta inicial lançada por um sujeito carpinteiro-pedreiro, mão-de-obra barata da construção civil, que, um dia, como já havia feito seu mais ilustre antepassado chamado Abraão, saiu à noite para olhar estrelas, e ficou apaixonado por aquilo que viu. E por tanta coisa que viu, além delas.

Deixo pra qualquer outro a discussão se o edifício construído saiu melhor ou pior do que a planta. Só não deixo pra ninguém a dedução de que o quê saiu não foi o quê estava na planta. Ali atrás, já deixei claro que não somos capazes de avaliar se faríamos ou não melhor do que está aí. Não é essa a questão. Pensar por esse layout é não pensar. Será muito saudável ter sempre em pauta e à mão a verificação da honestidade dos representantes oficiais do projeto e dos operários da obra. Sobretudo, saudável. Infinitamente, saudável. Críticas criteriosas são salutares. Os homens também podem criticar o parto cesárea, mesmo não podendo dar à luz.

Vamos lá: o que aconteceu para que as Igrejas, sobretudo, a Latina, se deslocassem do rumo e do prumo?

Nas altas esferas, sobretudo, da Igreja Latina, a explicação tem dois bodes expiatórios: a secularização e o humanismo moderno. O chavão repetitivo é que o homem está buscando sua salvação apenas na Terra, tentando suplantar a ação de Deus e dispensar sua intervenção. A Igreja Latina acusa um ovo podre “quinta coluna”, que aderiu perigosamente aos ideais progressistas e seus erros, tais como as exigências de democracia (a Igreja Latina sempre adorou uma monarquia: a Solenidade do Cristo Rei foi criada no momento em que as monarquias viravam sucatas). Vamos lá, a Igreja Latina reconhece que há coisas perigosas e indesejáveis como democracia, a participação na Igreja, a supressão do celibato obrigatório, o sacerdócio das mulheres, a valorização da sexualidade... Que mais? Que mais poderia abalar o trono onde se instalou o altar? E o pior é que tem gente dentro dela bajulando essas idéias e querendo esses horrores!

Seja como for, nos círculos conservadores, a culpa recai sobre a recepção negativa da mensagem, nunca sobre o conteúdo da pregação, menos ainda sobre os pregadores. Para eles, sobretudo, os que usam Mercedes com placa SCV (Stato Città del Vaticano), que os italianos ironicamente lêem: Se Cristo Visse!, para eles, não há dúvida de que os ouvintes deixaram de ter sede. Mas será isso mesmo: deixaram de ter sede? Ou será que a água ofertada se tornou insalubre?

Mesmo a água mais pura deixa de ser potável em copo sujo.

A pregação do Evangelho deve ser feita aos homens de boa vontade. Aliás, foi justamente a eles que os anunciadores cantaram sua mensagem na noite de Natal: Paz na Terra aos homens de boa vontade! Nem aos católicos nem aos ortodoxos nem aos protestantes nem aos budistas nem aos xintoístas nem aos ateus nem aos à-toa. Aos homens de boa vontade! Pax hominibus bonae voluntatis! OK? Acontece que se prega numa linguagem que não tem mais energia vital nem existencial, por se ter perdido, lá trás, numa ingenuidade primeira, numa visão de mundo totalmente defasada e anacrônica, que corresponde a uma época anterior à crítica racional e aos direitos humanos. Aí a água não mata a sede, mesmo.

Fato verídico.

Na minha terra viveu, morreu e foi enterrado Padre Teófilo Jazedé: um francês-alemão de 1,60m, que eu nunca soube como é que foi parar lá. Sei que ele tinha duas coisas: um mico adestrado, que um dia quase o matou, e um telescópio por onde vigiava as estrelas. O Observatório Astrofísico Nacional, que lá se encontra, leva o seu nome. Nas missas das crianças, todo domingo, 9 da manhã, ele se dirigia “aos creanços” (como as chamava) e explicava o que ia acontecer ali. (Carregue no sotaque, por favor.)
- Creanços, o que viemos fazer aqui? Viemos para assistir o mistério do transubstanciaçón. (Rapidamente) E-o-que-é-o-mistério-do-transubstanciaçón? (Pausadamente) O mistério do transubstanciaçón é a mudança do pan e do víneo na corpo e sangue, álllma e divindade, de Nosso Senhor Jesucrrristo! (Rapidamente) E-parra-que-serve-o-mistério-do-transubstanciaçón? (Pausadamente) Serve para nos levar parra a Céu!

E ele ficava brava porque os creanços balançavam as pés debaixo das bancos do igrrreja...

Não riam. Porque esse discurso cômico é oficial. Pode não ser feito com essa verve franco-germânica. Mas é oficial. Agora, me digam: Isso serve pra quê? Além de nos levar para o Céu, é claro!

No nosso contexto, não serve pra nada. Nesse contexto, a única pergunta que interessa é: há uma vereda por onde se possa caminhar? O autor diz que sim, e aponta. O princípio fundamental que orienta e guia a tradução das representações e fórmulas tradicionais para outras atuais é o seguinte: sempre que uma fórmula supuser a existência de um mundo exterior superior ao universo, capaz de intervir em nosso mundo, essa representação ou fórmula deve ser substituída por outra na qual Deus seja, implícito ou manifesto, o fundamento mais profundo do universo a que pertencemos.

Se não fosse demais, eu pediria para se considerar se tudo não começa, continua e termina... por aqui? E se isso, por si só, já não seria bom? Seria demais, eu sei. Então, não vou pedir.
Gostaria, apenas, de salientar a troca saudável do pensamento heterônomo por um pensamento autônomo. Que, com certeza, também, irá nos “levar para o Céu”, desde que se imagine “levar” como um carreto e “Céu” como um guarda-volumes. Mas, antes, com igual ou maior certeza, será capaz de providenciar uma existência com maior densitometria vital, aqui mesmo, neste vale de lágrimas – in hac lacrimarum valle – onde vivemos, amamos, sofremos, emagrecemos, engordamos, perdemos, perdoamos, e tentamos fazer tudo isso e muito mais, dentro do possível, sem perder a pose. Caramba! Bom demais, né!

O Padre Jazedé não estava errado. Estava apenas out.

O conceito de salvação, central no Cristianismo, diz respeito àquilo que é saudável para o sujeito, enquanto ele mesmo, ser vivente, precisa ser salvo, a começar de si mesmo. Acompanhe a evolução do termo: salus = saúde/salvação. A mesma palavra é empregada para dois conceitos primos: saúde e salvação. Atar o conceito de salvação, eminentemente, existencial aos conceitos de Céu ou de Igreja organizacional é forçar a amizade. Não há a menor necessidade.

Dois exemplos.

Cipriano de Cartago, morto em 258 DC, na perseguição de Décio, não estava errado quando dizia: Extra Ecclesia nula salus, nenhuma salvação fora da Igreja. Acontece que o que ele entendia por Igreja/Ecclesia não é o mesmo que entendemos hoje. Para ele, a Ecclesia era (etimologicamente) a comunidade dos escolhidos, aqueles que eram capazes de se unir para juntos poderem enfrentar as perseguições romanas. E ali não havia nenhuma metáfora, OK? Naquele contexto, Cipriano estava in.

Agostinho de Hipona, morto em 430 DC, no próprio leito, dentro de casa, já pensava em outro contexto. É dele a frase, tantas vezes citada, de que “é preferível errar com a Igreja a acertar fora dela”. Os tempos e contextos eram outros. Já ali, a Igreja era a fiel escudeira do Império Romano. No conceito agostiniano de Ecclesia não cabia mais a comunidade daqueles que se uniam para fugir, sofrer, chorar e morrer juntos. Duzentos anos se passaram, desde Cipriano de Cartago. A Igreja de Agostinho era uma instituição que, já então, precisava ser salva dela mesma. Com certeza, já havia quem acertasse fora dela e ameaçasse a sua hegemonia da salvação. Por isso, a insistência de errar com ela a acertar fora dela. Naquele contexto, Agostinho estava out.

Retorno ao início. A Igreja no Ocidente, sobretudo, a organizacional Latina, passa por grave crise. Mas é muito mais uma crise do conceito do que da práxis. Ela foi fazendo, e foi se fazendo, e não foi vendo o que fazia. Deve ser muito difícil para uma senhora de 2000 anos, com as artrites, artroses e escleroses do tempo, mudar o passo e o pensamento. Nada podemos fazer. Respeitamos.

Somos pessoas educadas e gentis, respeitamos os mais velhos. Aprendemos tudo o foi possível aprender, entendemos lacunas e dificuldades, e respeitamos. Mas não precisamos mais seguir por aonde eles vão. Aprendemos tanto com eles, que descobrimos nosso próprio caminho e nosso próprio passo. Temos consciência do perigo de caminhar, e mais consciência ainda do perigo de estacionar. Entendemos, respeitamos, caminhamos. Mas só aonde nos levam nossos próprios pés.

Já me perguntaram por que essa minha preocupação e esse tempo gasto?

Sei lá. Fico triste em pensar, e em saber, que toda essa riqueza de significantes, construída desde muito, tenha caído em mãos abusadas, e o quanto, o tanto e o como isso pôde destroçar em vez de construir, separar em vez de unir, passar o rolo compressor da intolerância sobre gente que só queria entender melhor. Só isso.

Sei lá. Eu gosto de acreditar que há gente disposta a pensar, assim como, gosto de pensar que há gente disposta a crer. Mas o que eu gosto mesmo é de imaginar que, quando essas duas faculdades se unem, do resultado pode brotar um rebento novo. Se esse broto ajudar uma pessoa, uma só que seja, a pensar e entender, entender e voar, valeu a pena. Ô!

Um comentário:

  1. Ontem li o 8, interessante demais da conta, e hj li o 7, ri demais com o padre Jazedé! Só rindo e muito mesmo. Perguntarem pq se preocupar tanto com isso? Eu sempre me pergunto pq não se perguntar e pq, principalmente pq ir sempre ao sabor do vento, sem maiores questionamentos. Em relação a Paulo me intriga muito essa figura. Era fanático fariseu, Perseguiu seguidores da doutrina de amor incondicional e perdão absoluto que Jesus trouxe e... Foi tb fanático qdo decidiu por Jesus. Não teriam suas palavras sido mal interpretadas, ou ainda direcionadas pra justificar os interesses? Pq justificativa a gente tem pra tudo. Por exemplo qto ao celibato, a estória dele é forte,, ele decidiu pra ele isso e aí... Não disse que dava muito o que conversar...

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