quarta-feira, 27 de julho de 2011

COMENTÁRIO ESPICHADO – 8

A Bíblia (1)

Num domingo de Páscoa dos anos 50, um tal Dr. Kirch, depois de um tempão decifrando um manuscrito com mais de 900 anos, anunciou a descoberta da única filha de Adão. O nome da herdeira seria Noaba. (!) Não se admira que a coitada tenha se escondido! Se eu tivesse uma filha..., ia preferir Nicéia. Conheci até uma Jéssica Cinderela, que também se escondeu atrás do codinome “Quinha”. Captou? Jéssica, Jessiquinha, Quinha, pra soar melhor! Deixe pra lá... O que na verdade me intriga é saber o quê o diligente Dr. Kirch tem no lugar onde os outros colocaram a cabeça, que lhe permitiu dedicar tantos anos para decifrar um endiabrado hieróglifo, e, no fim, só para descobrir uma nova e insignificante habitante de uma casa onde já não cabia materialmente ninguém.

Porque essa é a situação da Bíblia: casa cheia.

A Bíblia é álbum de foto de família: tem de tudo. Desde a foto oficial, de estúdio, sem graça, àquela tirada na praia (à milanesa) engraçadíssima! Tem Adão, adepto do nudismo, que seguiu conselhos da vizinhança, aporrinhou o Síndico e acabou expulso do condomínio. E Caim, o que inventou o cassetete com uma queixada de burro. Balaão aprendeu noções de retórica com uma jumenta falante. Josué derrubou muros soprando trombetas. Achou pouco? Josué pa-rou-o-sol! Satisfeito, agora? Raabe, moça mal falada, mas mulher excepcional, exerceu a imaginação e sabe-se lá mais que outras artes para deter os inimigos de Josué dentro de casa. Ló, veja só, bebeu todas e nem notou que as filhas dormiram com ele, e nem que, propriamente, não dormiram, porque os filhos delas foram irmãos (delas) e, logicamente, netos (dele). E ainda falam mal da pobre Jocasta! E Sansão, com aquela cabeleira onde escondia força, secador, chapinha e bobs... Debaixo dos caracóis...? E a amizade de Davi e Jônatas? De deixar a novela das 9 no chinelo! E o caso Betsabé, o harém de Salomão (300 verdadeiras e 700 concubinas) e a rainha de Sabá? O que aquele povo gastou do erário público pra manter a pose!

Viram? Essa é a situação da Bíblia: casa cheia! Assunto é que não falta.

De 1500 a 2000 páginas, em uma ou duas colunas, com ou sem notas de rodapé, numa língua e numa linguagem que as traduções estão longe de recuperar, ela é best-seller há 4000 anos. E como diz minha guru-master-top-de-linha-advanced-plus N. M. (só conto a quem perguntar): “Quando um texto permanece em cartaz há mais de 4000 anos, deve ter, pelo menos, algo interessante a dizer”.

E tem. Convido-os a ouvir.

Porque eu mesmo não desgrudo o ouvido de lá. Desde que percebi que aquela gente sabia das coisas (mesmo não sabendo que sabia), fiz-me ouvinte atento e leitor voraz de tudo quanto já se comentou daquele texto. É claro que falam muita bobagem nesses comentários. Mas isso ninguém precisa reter. Paulo sacou isso lá atrás: “Não extingam o Espírito, não desprezem as escrituras, examinem tudo, retenham o que é bom” (1Ts 5,21).

Por onde, então, começar? Pelo item 001 da recomendação exegética: Não se interpreta a Bíblia. A Bíblia já é uma interpretação e não se interpreta uma interpretação. É preciso conhecer o fato que a interpretação esconde.

Porém, bem antes de Kant e Nietzsche, já sabíamos que o fato não existe. As coisas não são como são, mas são como são contadas. Chame dez pessoas e peça para contarem, separadamente, um acidente que acabaram de presenciar. Confira os dados. Serão praticamente dez acidentes. Cada uma irá contar o “seu acidente”: o que foi que ela viu naquilo que viu. Cada conto aumenta um ponto.
Então, grife aí. Não se interpreta uma interpretação. A pergunta é: cadê o fato? Mas o fato não existe mais. Nenhum fato existe, muito menos o da Bíblia. O que temos é só a interpretação, uma interpretação. A partir dela, nossa tarefa é reconstituir o que poderia ter sido o fato. E a reconstituição é sempre um trabalho em dois tempos.

Observe.

Ninguém precisa imaginar Moisés abrindo o Mar Vermelho como se fosse de gelatina. Ficou muito bonito em “Os Dez Mandamentos”, de Cecil B. DeMille, com Charlton Heston e Yul Brynner, e, no filme, foi feito com gelatina mesmo. (Em 1956 não havia efeito de computador. Imagine aquilo feito hoje!) Mas Hollywood é Hollywood. Bíblia é outra coisa! A encrenca surge quando as imagens do cinema ou de algum quadro ou de qualquer pictografia são transplantadas para a imaginação na hora de ler a Bíblia. O que era só pra ser uma imagem alusiva adquire status de realidade. E é uma covardia lutar contra o imaginário. “A imaginação é a doida da casa” (Teresa D’Ávila). Não tenha dúvida, ela vai sempre vencer.

E Moisés? O que foi que ele fez? Passou por um lugar onde o Mar Vermelho recua conforme a maré. E os egípcios que morreram afogados, cavalos e cavaleiros? Não foram tantos, nem havia tanta gente disponível nem motivo suficiente para colocar um exército no encalço de uns pés-rapados que fugiram da segurança para morrer no deserto. Morreram nas emboscadas dos guerrilheiros hebreus. Originalmente, o nome deles era habirus: mascates, biscateiros, com um cheiro de vale-tudo.

Esse foi o primeiro tempo.

O segundo tempo é que tudo isso foi contado e narrado e escrito com ufania épica, por volta de seiscentos anos depois, numa situação absolutamente desfavorável que foi a do exílio da Babilônia (587-537 AC). Foi escrito com finalidade cívica de elevar o moral do povo e com finalidade catequética de fazê-los crerem que o Deus de Moisés que tirara seu povo da servidão do Egito era o mesmo que também os tiraria do exílio da Babilônia. Garantia é tudo o que precisamos na vida, e não faz a menor diferença se a garantia for do Paraguay.

Entendeu os dois tempos?

O primeiro é aquele onde o fato “aconteceu” e se escondeu. O segundo é o momento quando e onde a interpretação o resgatou, mas aí, pelo ato de resgatá-lo, o esconde ainda mais. Porque o que temos é a interpretação, só ela. E se nos atemos à interpretação, como se fosse o fato, perdemos a força do gesto, a única que foi capaz de fazer de um fato, no mais das vezes insignificante, um baita acontecimento – um gesto – capaz de mover céus, terras, mares e gentes atrás daquilo que, realmente, tem importância. No caso, a liberdade. A soberana liberdade, sem a qual a vida não vale uma titica de tico-tico.

Não há a menor necessidade de enxergar mais do que havia na intenção do escritor. Mas esse assunto não tem fim e vou ter de deixar pra outro dia. Hoje, queria dizer três palavras finais: uma sobre as traduções, outra sobre o uso abusivo que se faz da Bíblia e uma terceira sobre a revelação.

Traduções... é caso pra PROCON.

Submeteram a um tradutor instantâneo (Google?) a frase latina “Spiritus quidem promptus est, caro autem infirma” (O espírito está pronto, a carne, porém, é frágil) numa região onde havia um whisky chamado, justamente, Spiritus. Você imagina o que saiu da frase latina? O whisky é bom, mas o bife não presta.

Certas traduções não ficam longe disso. Sem um conhecimento, algo em torno do mínimo, de hebraico bíblico antigo (aramaico) e de grego bíblico antigo (koiné) é impossível saber o que foi dito e escrito ali, naquele lugar e naquele tempo. Até porque – concordam comigo? – pensar, falar e escrever são coisas bastante diferentes. O que foi pensado não é o que foi falado. O que foi falado não é o que foi escrito. Leia a frase no sentido contrário, por favor, e constate como é impressionante a flexibilidade do rabo da lagartixa. Quem comenta Bíblia, geralmente, glosa para indicar que aquilo faz algum sentido “para hoje”. Mas isso é conjectura, apropriação indébita. Fazer algum sentido “para hoje”, propaganda de supermercado também faz.

A idéia é tributária da palavra. Qualquer idéia perde seu impacto e sua força se mal traduzida. As distorções são cogumelos que nascem em madeira podre. Quando acontece alguma distorção numa idéia, pode ficar sabendo: alguém foi lá e glosou. “Traduttori traditori”: todo tradutor é um traidor.

A segunda palavrinha é sobre o uso popular que se faz da Bíblia, abrindo páginas aleatoriamente ou tirando bilhetinhos de alguma caixinha. Você já viu periquito de realejo? Então... A menos que você seja periquito de realejo, isso não se faz. São abusos da paciência divina, arbitrários e desnecessários. Não há nada que me faria mais feliz do que imaginar Deus debruçado em alguma janela, com a mão no queixo, apenas esperando pela manifestação de alguma necessidade, pedido ou questionamento meus. Como eu ficaria feliz! No entanto, minha honestidade não me permite pensar assim, assim como minha compreensão não me permite criticar quem pense. Se você precisar, respire fundo e abra a tal caixinha que a resposta vem num estalo de dedos! Você sabe que o sentido vai ser sempre aquele que você esperar que seja e que você mesmo criar, não sabe? Mesmo assim, se isso valer pra você, considere-se um felizardo. Não vale pra mim. Azar o meu, mas honestidade não tem preço.

A terceira palavrinha, sobre a revelação, será justamente o assunto da segunda parte dessa conversa. Luteranamente falando (o Vaticano II também falou), não existe nenhuma revelação fora da escritura. Nenhuma, quer dizer, nenhuma. Se você é cristão ou simpatizante, saiba que tudo o que é preciso saber a respeito de Deus na tradição judaico-cristã, se encontra na escritura. Essa edição do discurso é a única autorizada pelo Autor. E está bom demais, não está? Se você quiser estudar a fundo os 73 livros dessa originalíssima biblioteca, recomendo que reserve uma boa parte do seu tempo. Esteja certo: não vai ser em qualquer final de semana que você vai conseguir fazer isso.

Como essa “revelação” se deu, é algo que precisamos de um espaço inteiro e não cabe aqui, agora. Paro por aqui e vou pensar na Noaba. Espetáculo de nome!

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