sexta-feira, 22 de julho de 2011

TIA DONA

Cresci à sombra daquela árvore. Quando ela emplacou os 80, eu estava lá.

Uma festança, cheia de uma gente diferente que eu nem imaginava que existisse. A homenageada? Já na chegada, a encontrei “de pileque”. Quando saí, rolava o maior carnaval.

Duas frases a traduziam na essência do ser.
A primeira:
- Com música, posso passar a café-com-leite!
A segunda:
- Agora que ganhei a viuvez, não quero saber de casamento nem morta. Quero mais é “ficar”!

80 anos!!!

Tia Dona foi a primeira dama da pós-modernidade, muito antes que se falasse nisso. Para ela, o pecado mortal sem perdão não era perder a virgindade (que bobagem!), era perder a contemporaneidade.
- Perder isso, meu filho, é pior que a morte!

Vivia o presente. Guardava cada rastrozinho do passado, mas, veja bem, só como relíquia. Numa tarde, divagando sobre o medo inclemente da passagem do tempo, me disse:
- Acho de uma bobagem de viver do passado! Tenho saudade do futuro. Tenho tantos projetos...

80 anos!

E foi assim que ela me contou o que sabia da fragilidade do “caniço pensante” de Pascal. Claro! Sem dizer dessa forma, mas disse. E foi tanto que resumir seria medíocre. Reproduzir seria infiel. Não transmitir seria ingrato. Então, simplesmente, traduzo.

A vida, dizia ela, se divide em três trintas. Comprando esse bilhete, você já adquire os primeiros trinta. Com sabedoria e sorte, pode acrescentar, pelo menos, mais duas vezes o saldo da entrada. Claro, que esse filme pode acabar antes, mas seria um péssimo negócio. (Ela adorava cinema, por isso se exprimia assim.) Bom mesmo é ficar até a luz do cinema acender. Para ela, na vida e no cinema, no fim, a luz sempre se acende. Sair da vida, vá lá, mas com saudade dela, como acontece no final de todo filme bom.

E aí veio a “tioria”.

Nos primeiros trinta, a gente nasce, cresce e rala. Deus do Céu, como rala! Os primeiros anos de vida, o prometido Jardim do Éden, são, na verdade, um circo de horrores. “Não mexa!”, “Reparta!”, “Não fure!”, “Não ponha a mão!”, “Não faça”, “Coma..., beba..., vista...” É preciso até aprender a fazer cocô!

Pensa que terminou? Capaz!

Aí vem a escola: a primeira grande explosão de novidade, a primeira exposição ao outro, a todos os seus sarampos, piolhos, caxumbas, brigas e esfolamentos. Tarefas escolares, redações de assuntos impossíveis, exercícios e provas na segunda-feira pra destroçar o final de semana. Será que nunca ninguém se deu conta da selvageria que é marcar prova na segunda-feira?

Pensa que terminou? Nada!

Aí vem o ensino médio, digo, “ensino tédio”. É um horror ter de repetir tudo de novo, com aqueles professores que nem bem são do andar de cima nem bem são do andar de baixo, e o pobre coitado do meio sem saber em que andar está.

E depois, a faculdade... Mas lá, pelo menos, tem festa, bebedeira e farra. Tia Dona andava por dentro disso tudo. Lembra da contemporaneidade?

Daí, quando termina a faculdade, começa a vida. E o sujeito, a menos que tenha pai rico, dana a procurar emprego e submeter-se a qualquer primeira coisa que apareça. E tem outra. Por essa mesma época irrompe uma comichão esquisita que faz todo mundo se apaixonar, acasalar e procriar. E a nem bem formada gente se apaixona e se acasala e antes de cumprir o prazo dos primeiros trinta, procria gente. E a prole aterrissa prolixa.

Sabe aquele passado aterrador, que você jurava nunca mais visitar? Começa tudo de novo: o primeiro choro, a primeira mamada, o primeiro cocô, o primeiro dente, a primeira escola, cursinho, faculdade e, lá vem de novo, soltando fumaça, o trem do primeiro amor. São esses os primeiros trinta. A gente morre de saudade quando olha de longe. Visto de perto, é um horror!

Os segundos trintas chegam sem mandar aviso. Ao completar trinta e um, geralmente, é que você se dá conta que já tem um incipiente diploma, uma incipiente carreira, uma incipiente família e uma incipiente vida. É tudo quase nada. Mas é agora é que as coisas vão começar pra valer! E o começo, tsss... Ah, o começo! Parece o fim.

Na década fatal, 30-40, cada um se presume chamado a provar a que veio. A faculdade tem de virar mestrado; o mestrado, doutorado; e o doutorado, aquilo que vem depois dele, sem que nada do que tenha vindo antes já tivesse alguma razão de estar ali. Você nunca soube pra quê!!!

Sabe aquele tio babaca? Pois é, ele vai lhe perguntar, e na frente de todo mundo: E aí, rapaz, você já virou diretor da empresa?

Porque o diploma tem de virar uma boa colocação, a carreira tem de deslanchar, a casa pequena se transformar numa maior ou duas ou três, e o carro do ano passado precisa virar do ano seguinte. Lá pelos 40, há provas e tarefas diante das quais as do vestibular e da faculdade ficaram no chinelo. Uma boca enorme e voraz se abre cada vez que você se liga ao mundo, exigindo sempre mais, sempre mais... Ah, que saudade dos bons tempos das aulas e da gandaia!

E soa a sinere, é o sinal de alerta! Surgem na cintura os primeiros sinais dos temidos 50! À medida que eles se instalam e, nessa, o sujeito já ganhou a marca indelével de uma respeitável proeminência abdominal, o edifício começa a balançar, a despencar e a desmoronar, desmontando, rápido, monótono e cruel o carrossel de ilusões que você julgava a razão de tudo. Tempus fugit. A grande urgência dos 50 é segurar o tempo. O grande problema dos 50 é que quanto mais você segura o tempo, mais depressa ele escorre. Quando os famigerados 60 batem à porta, somos levados a pensar que o melhor da vida já passou. Daí pra frente, babau.

Mas aí é que ta. É mentira! Tia Dona, enfática, batia com a mão na mesa, cada vez que repetia: é mentira, é mentira!

Quando os 60 chegaram pra ela, já na porta de entrada avisaram que tinham vindo para libertar. A nobre função dos 60 é a de livrar cada sujeito das ilusões que o atulharam a vida inteira, sabe, feito sofá velho na frente da porta. Jogar fora as pretensões, desatar o peso da vida e sua felicidade mórbida, desfazer-se de toda inerente insegurança que ronda essa coisa efêmera chamada existência, tornar a vida um closet-clean, isso e mais, são as promessas dos 60. Se você deixar, é isso que eles fazem.

Claro que há dores nas juntas e a inapelável força da lei da gravidade. Tanto melhor! Daí pra frente, nada de deixar pra depois, nada de fazer bobagem e, sobretudo, nada de acumular tranqueira. Daí pra frente, é proibido não ir. Sei lá, pra onde. É proibido não ir.

- Apreciou, meu filho, os últimos três trinta?

A partir daí, quem ganhou, ganhou. Quem perdeu, perdeu. Quem comprou, comprou. Quem vendeu, vendeu. Pra quem chorou, as lágrimas lavaram. Para quem riu, o riso alimentou. Quem amou, percebeu que o amor faz bem ao coração. Quem se desiludiu, descobriu que ervas amargas consertam o estômago. E descobriu a esperança. E não é que a Adélia estava certa? "O encardido da alma, um pouco de esperança lava". Pra lá dessa porta abre-se o melhor dos tempos: ninguém espera mais nada de ninguém, e por não esperar mais nada, tudo tem. Tudo bem!

Até os 30, a gente não pode cumprimentar qualquer um, de qualquer jeito. Dos 30 em diante, é preciso aprender como, quando e a quem reservar sua gloriosa atenção. Depois dos 60, você pode dar até bom dia a cavalo que não vai causar nenhum arranhão à imagem que o mundo tem de você.

- A gente ta nem aí!
E ela morria de rir quando falava disso.
Pena de demore tanto, que custe tanto, que implique tamanho risco! O perigo de não enxergar a ponte aumenta o dano se, ao olhar atrás, você perceber que desceu na margem errada do rio.

- “Forando” isso, vai lá, meu filho! Tudo passa rápido! Água escorrendo pelo vão dos dedos.

E concluiu assim, a conversa de uma tarde, num alpendre (porque Minas tem alpendre), comendo bolo de fubá, bebendo café, e cumprimentando cada um que passasse.

Nunca soube o seu nome. Tia Dona viveu e morreu na mesma casa, num domingo, com 99 anos. Bem depois da marca dos últimos três trinta.

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