domingo, 17 de julho de 2011

ATEU, GRAÇAS A DEUS!

Pra quem não conheça, apresento Arnaldinho. Figura!

Arnaldinho, primo-irmão de tio Amarildo, era ateu. Nunca quis saber de religião, mas nunca foi desrespeitoso. Foi batizado, fez a primeira comunhão, casou-se na igreja. Se algo não dava certo não punha a culpa na religião e em ninguém. Só não havia dado certo! Pronto.

Além de ateu, o que já era por demais desmeritoso, se dizia comunista. Isso, sim, naquela época, era o inferno garantido ou o seu dinheiro de volta! Mas era um comunista diferente, variado, sortido: vivia bem, não perdia nem enterro de anjinho, freqüentava a fina society, os ternos eram do corte mais aprumado, só fumava de piteira, andava de táxi, chamava o motorista de chauffeur e ia à missa. Pois é! Era ateu, comunista e ia à missa. E fazia questão de cumprimentar o padre:
- A prática de vossa reverendíssima, hoje, foi direto ao ponto!
Aos mais novos, preciso dizer que “prática”, naquele tempo, era o sermão da missa.

E assim o Arnaldinho se assumia convicto e eclético, jamais, hermético. Não que fizesse a menor idéia do que isso significasse. Falaram, ele achou bonito e embarcou. Pronto. Com ele era assim.

Fino no andar, no viver e no trajar, nunca saía de sapato sem meia, e sem meia dúzia de canetas no bolso da camisa: canetas-tinteiro (uma preta, outra azul) lapiseira, e as recém aparecidas esferográficas (verde e vermelha e preta). Parecia condecoração de general. E a idéia era essa. Comunista e general: era só o que faltava! Dessa forma, vivia e zanzava, despachado, airoso, solene.

Soleníssimo. Atendia o telefone num “Pronto”, que soava a speaker de rodoviária. Um gentleman, mais liso que quiabo. Quem não conhecesse, comprava na hora. Vivia dizendo que, na vida, era cada um “si por si”. E cerejava o bolo: “Nasci pelado, vou morrer vestido. Já ando no lucro”.

Trabalhava. Quero dizer, quase. Pra dizer a verdade, pouco. Ah, vá... nunca! Trabalho pra ele era coisa de escravo. Bon-vivant, fazia tudo o que queria e ainda sobrava tempo. Quem melhor captou e definiu aquela alma foi Tio Amarildo.
- O Arnaldinho tem muita iniciativa, pouca continuativa e nenhuma acabativa.
E não é que era! E tio Amarildo, espartano, completava: - Uma aberração! Nem no casamento teve juízo.

Esse era Arnaldinho, primo-irmão de tio Amarildo, por parte de pai, e primo segundo de tia Ordália, por parte de mãe. Tio Amarildo, peixe sisudo. Tia Ordália, pássaro faceiro. Ele sempre nos livros; ela, medindo rua.

Domingo à tarde, no que saiu à praça, veio do clube o riso solto do Arnaldinho, num lero-lero que não havia quantia. Contaram, sei lá o que foi de sei lá quem foi, e ele, despachado, respondeu:
- Sua alma, sua palma: aquilo é o cão chupando manga!

No fundo, era isso mesmo. Era isso só. Quem foi mesmo que disse que a vida não precisa de grandes apetrechos nem grandes arrumações? Não sei. Mas quem disse, acertou. É só viver e deixar viver, e já ta pra lá de bom.

Aquele, sim, viveu a vida sem culpa, remorso ou desconsolo: colônia Lancaster, cabelo corte americano, barba feita no barbeiro, um palmo de costeleta, óculos escuros, cerveja numa mão, piteira na outra, camisa engomada, calça tergal de vinco impecável, sapato bico fino duas cores, comunista e ateu... Graças a Deus!

Um comentário:

  1. Blog do Renato também é cultura: não sabia que antigamente prática era sermão. Sabe de uma coisa o Arnaldinho tá mesmo certo,a vida não precisa de tantos apetrechos assim...Deixa viver. Me fez sorrir.

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