quarta-feira, 13 de julho de 2011

PÃES-DE-BATATA

O início de fevereiro de 1973 ficará para sempre na memória. Num domingo, por volta de 1:30h da tarde, eu tomava o ônibus, em minha terra, com direção a outras terras. No final daquela tarde, eu entrava no seminário para iniciar longa jornada de 10 anos. Eu tinha 14 anos. E, em 1973, 14 anos não era a mesma coisa que hoje. Naquela época, a gente ainda brincava na rua e o mundo tinha o tamanho de um quarto de criança.

A distância entre as cidades era de setenta km. Mas, naquele dia, a impressão era a de ter ido da Terra à Lua. Troquei de ônibus quatro vezes, e quando entrei pelo portão do seminário, a tarde havia caído.

Nunca na vida senti uma tristeza tão grande nem acho que vá sentir. Metade de mim estava ali, onde queria estar, para estudar e realizar o sonho. A outra metade havia ficado na minha terra, e ainda corria pelo quintal de casa, por entre os pés de laranjeiras, as bananeiras, a jabuticabeira e os caminhos de terra que eu mesmo havia feito, nos primeiros 14 anos de vida. A metade que havia ficado em casa, naquela hora, estava em cima da velha mangueira que já não mais dava mangas, mas que permanecia, lá, em pé, com o respeito que se deve às velhas mangueiras de quintal.

Entrar pelo portão enorme do seminário não significava deixar para trás a melhor parte da vida. Significava deixar para trás a vida inteira. Subir pelas escadas na direção do dormitório, em fila indiana e em silêncio, era começar a crer que o mundo da infância, naquele lugar, não teria lugar. Nunca na vida senti uma tristeza tão grande nem acho que vou sentir.

Cheguei ao lugar que me indicaram.

O dormitório, como tudo por lá, era enorme. Ou será que para mim é que era enorme e frio, tão diferente do lugar e da casa que deixara? Comecei a abrir as malas para colocar as coisas no lugar. Foi então que, ao abrir a mala maior, um cheiro conhecido invadiu-me narinas e alma. Um cheiro da infância, do quintal, da mangueira, da cozinha. Dentro da mala, embrulhados em papel de padaria, vieram sete pães-de-batata que minha mãe fazia, e que só ela, nesse mundo inteiro, sabia fazer.

Sentir aquele aroma significou, para mim, naquele momento, saber que alguém, nesse mundo inteiro, me amava e cuidava de mim, nem que fosse à distância de setenta, extravagantemente, longos quilômetros. Sentir aquele aroma da cozinha de casa num dormitório de piso frio e paredes pintadas de branco foi como que renascer para uma outra vida. Havia uma outra vida, ela havia ficado no quintal da minha casa, e eu a poderia acessar, de perto ou de longe, lá mesmo onde ela havia ficado, ou ali, onde ela acontecia, outra vez, num simples aroma de pães-de-batata.

Nunca na vida senti um consolo tão grande nem acho que vou sentir. Ainda guardo de relíquia o papel de padaria com o cheiro da casa. Guardei pra vida inteira a lembrança daquele dia. Mais que uma lembrança era uma vivência, uma re-vivência, quase, uma celebração. A celebração dos sete pequenos pães-de-batata. Ainda hoje, quando fecho os olhos e penso naquele dia é como se o mesmo aroma atingisse, de novo, a alma. E, depois de tanto tempo e tantos quilômetros rodados, alguma coisa ainda viesse me garantir que o quintal continuava lá, e lá estava minha mangueira e todos os mesmos pés-de-laranjeira, bananeiras, a jabuticabeira e os caminhos de terra.

Aí, cresci, estudei, viajei pra mais longe, virei o que quis.

Toda vez que eu me virava para o povo e dizia: Eis o Mistério da Fé! – a vontade mesma era de dizer: Eis os pães-de-batata de Deus! Sintam o aroma! Não lembram a casa de onde viemos, não recordam o Céu? Vejam o formato! Não lhes recordam nada de uma cena antiga, onde o Pai, Ele mesmo, confeccionou esses pães para que a gente nunca se esquecesse de onde a gente mesmo veio e quem é? Partam esses pães, sintam o gosto! Não têm gosto de eternidade, de um quintal eterno de onde nunca suportaríamos ter saído a menos que alguma coisa, alguma penhora, maior que tudo, nos garantisse a volta?

Saímos por aí, mundo afora, andando por distâncias que não têm mais fim. Nem sempre felizes nem sempre amados nem sempre em casa. Mas vamos e vamos. Porque partir faz parte. Partir é o segredo. Partir o pão é abrir a mala da vida. E encontrar nela a surpresa inesperada do aroma de casa, das mãos que amassam o trigo e fazem o pão, para que nunca, nunca, em lugar algum desse mundo a gente se sinta só ou fique sem lugar.

Daqui pra frente, eu parto e reparto um outro pão: um segredo.

Toda vez que alguém ergue o pão consagrado e repete as palavras formais: Eis o Mistério da Fé!, eu sinto, de onde estou, que um outro Alguém me espia dentro de mim, sonda os meus sentimentos de viajante longe de casa, e me garante as mesmas palavras ali repetidas, mas de modo informal: Menino! Esse é o pão que eu coloquei em sua bagagem. Pus de surpresa. Para que a cada surpresa, cada vez que sua mala se abrir, cada vez que o aroma escapar e lhe subir alma adentro, você se lembre de onde veio, quem é e para onde vai.

Já é tarde e temos saudade. É hora!

Nenhum comentário:

Postar um comentário