quarta-feira, 20 de julho de 2011

O CARTÓRIO DO JARBAS

O cartório do Jarbas ficava a um tiro de espingarda da Praça da Matriz. Um dia, aparece por lá um sujeito procurando o Noé.

Para melhor apreciação da história, é preciso que saibam quem era o Noé.

O Noé havia sido prefeito duas vezes. Administrações assinaladas por indelével e ilibada marca de honestidade. Ai de quem falasse mal dele ou de seu staff! Até Papai defendia. Ta certo que não havia feito grande coisa e que, pior, até onde a vista alcança, havia derrubado o coreto (O Coreto!!!) da Praça da Matriz, a fim de construir sei lá o quê que saiu dali e que saiu sem parecer com coisa alguma. Levou tanto tempo pra nova Praça sair da intenção, que o povo, na época, balançava a cabeça e chamava ao lugar de “O Pasto do Noé”. Lugar de amarrar cavalos.

Na verdade, a característica marcante da “Administração Noé” foi o apetrecho gramatical dos seus discursos. Diziam que quem escrevia era uma professora de altas categorias. Mas isso não tinha a menor importância. Noé falava tão bem que dava gosto de ouvir. Era enfático!

Lembro que Papai contava que quando foi a vez de aparecer por lá, sei lá quem de gloriosas patentes (teve até bispo!), e Noé, claro, falou bonito, daquele jeito que dava gosto. Leu que leu, e esqueceu o que havia lido, passou tanta página pra trás que a de trás passou pra frente, e ele começou tudo outra vez. Só quando lhe deram conta do desafortunado reiniciamento, foi que apartou-se do texto escrito e embrenhou-se na mata do improviso. E dali não saiu vivo.
- Senhoras e Senhores – disse por fim – entrei num beco sem saída. E tenho dito.

Esse era Noé: o condutor da barca perdida.

Foi por esses tempos que pareceu no cartório do Jarbas um sujeito, sabe Deus de onde, procurando, justamente, por quem? Pelo Noé. Foi bater os olhos no cavalheiro, e Jarbas percebeu que o distinto não só era de boa chegança como também não fazia a menor idéia de quem fosse o procurado. Fato, esse, aliás, detentor do equilíbrio funcional da história.

- Mas como, então, rapaz! Você não sabe quem é Nóe?
- Sei não senhor.
- Ah! Mas isso é a coisa mais fácil do mundo! – E Jarbas bateu na perna, que, naquele tempo, ainda tinha. (Mas essa eu conto depois.) Mostrou as duas torres da Matriz, lindas, de dar arrepio de orgulho, e falou:
- Ta vendo a torre da Matriz?
- To sim senhor.
- É lá, rapaz, na Praça, bem em frente à Matriz, do lado direito de quem chega, “pareando” com a Rua do Meio e a Rua de Baixo. Entendeu?
- Entendi, sim senhor.

E por um segundo o Jarbas olhou o sujeito à sua frente. Não há quem consiga avaliar o fato, mas, nesse momento, brilhou com real intensidade a estrela do Jarbas.

- Só tem um problema.
E Jarbas coçou o frondoso bigode, coisa de quem lida com autoridades.
- Você nunca teve mesmo com ele?
- Tive não, senhor.
- Hum... - Coçou de novo o bigode – é que ele é surdo de tudo, rapaz, surdo que é uma porta.
E bateu e bateu na mesa para enfatizar a surdez de que era profeta.
- Dá até pena! Olha só, você tem de falar muito alto. Muito alto, compreendeu? Senão ele não ouve nada.
- Compreendi, sim senhor.
E lá se foi o bom homem.

Não falei da estrela? Pois, então, ouçam.

No que o sujeito virou a esquina, Jarbas passou a mão no telefone e ligou pro Noé.
- Simmm! – Atendeu do outro lado sonora voz.
- Ô meu amigo! É o Jarbas. Como tão as coisas?
- Como Deus é louvado!

Não havia tempo a perder e Jarbas foi direto ao procedimento.
- Acabou de passar por aqui um sujeito a sua procura, e eu mostrei sua casa.
- Fez bem. Fez bem. – Falou o digníssimo.
- Só tem um problema. Precisava dizer pro cê, rapaz. O sujeito é surdo que é uma porta. – E bateu, de novo, à mesa, pra enfatizar a surdez.
- Se ocê não falar bem alto com ele, alto, entendeu?, o sujeito não vai ouvir nada.
- Deixa comigo.

Despediram-se.

E Jarbas passou o resto do dia propenso a tanto despacho cartorial que nem se lembrou de perguntar se os dois conseguiram se ouvir mutuamente.

Mais tarde, correu pela cidade um boato estranho. Falava-se que o Noé, homem pacato, gritava histrionicamente com um sujeito, mal acabado de abrir o portão, ao soar da campainha. E o pior, vocês não sabem! O sujeito também gritava com o anfitrião. E balançavam as mãos, no ar, fazendo gestos.

- Imaginem só! – disseram todos – Até parecia coisa de surdos!

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