quarta-feira, 20 de julho de 2011

A GALINHA “LÉBISCA”

Não fosse pelo tanto de água que caiu naquela tarde, sem dó nem piedade, ele até corria o risco de passar pela vida sem saber do que acontecia ali. Mas a chuva o reteve, e tio Amarildo ficou mais um pouco no sítio. E foi por isso, e foi então, que ficou a par de tudo, de fonte limpa, da boca do caseiro.

O caseiro era o Adão.

E tio Amarildo agüentava o Adão, mas não por aquilo que ele fazia. Na verdade, nem fazia grande coisa. Consertava “umas cerca”, plantava “umas couve”, colhia “umas laranja”, descascava “uns pé de bananeira”, caiava “umas parede”, regava “umas pranta”, encharcava “as jabuticabeira”, tratava “das galinha”, apartava “umas vaca”, levava “os latão de leite” pra estrada, podava “as parreira”, rachava lenha. Tudo assim: começado no plural e destroçado no singular. E tudo muito “umas” e “uns”. Nada inteiro, só pelas beiras, pelas bordas, “pelas metade”.

Se fosse por tia Ordália, Adão não ficava nem mais um dia lá.
- Só você não vê que ele é um vagabundo – dizia, todo dia.

Mas tio Amarildo mantinha o Adão no sítio só por uma razão, uminha: por não haver ninguém como ele pra contar uma história, causo ou piada. Ninguém! Na verdade, o que não expulsava o Adão do paraíso era, sem dúvida, o fato dele ser a única pessoa que conseguia fazer tio Amarildo abrir a boca, conversar e dar risada. Uma façanha de ninguém mais!

Naquele dia, depois da chuvarada, Adão conduziu tio Amarildo ao meio do quintal e lhe mostrou uma galinha bonitona, grandona, vermelhona, com um jeitão meio esquisito no andar, no vestir e no portar.
- Ta vendo – mostrou com o dedo – aquela galinha é “lébisca”.
- Que é isso, Adão?
- “Lébisca” é quando uma galinha não gosta de galo.
- Larga mão de bobagem, homem! Vê se pode?
- Então, pres’tenção, sô Amarirdo. Olha só o jeitão dela.

E não é que a galinha era mesmo... portentosa?

Andava de peito aberto, erguia a crista, não ciscava igual às outras, só dormia no poleiro de cima e tinha até uma pré-espora despontando por detrás do calcanhar. Mas o mais importante não era isso! Era só Tibúrcio, o galo, cantar de manhã, cedinho, que ela também ensaiava um cocoricó desafinado, desajeitado e despossuido. Tentava, pelo menos. Ninguém podia negar.

E tem mais. Não andava atrás de galinha, mas também não enxergava o galo. Tibúrcio, galo índio vaidoso, se passasse perto dela era na desqualidade de sujeito mais invisível e indesfrutável do terreiro. Ela... nem te ligo! Mas, ouça, o curioso era que “nem te ligo” da mesma forma para nenhuma outra criatura do universo emplumado: galináceo, columbáceo, canarinháceo, periquitáceo, papagaiáceo. Nada que em cima do corpo carregasse pena, valia a pena pra interesse dela. E honestíssima: não havia quem tivesse um dedo pra falar dela.

E mais: nenhum ovo. Nunquinha! E nem qualquer desvelo de se aproximar do ninho.

- Eu vou matar ela, Sô Amarirdo. Só pra ver.
- Que matar o quê! Ara seja! Deixe que ela tenha a sina dela, rapaz! – filosofou tio Amarildo.
E a galinha cresceu. Aprontou-se. Embonitou-se. Amadureceu. Virou tia e até tia-avó do restante do galinheiro. Ganhou nome: Marilda, escolhido pelo Adão em homenagem ao Sô Amarildo. De cuja qual, ele esticava bastante o “i” toda vez que a chamava com milho: “Mariiiiirda”. E ela vinha, entre os respeitos da população aviária, mantenedora das prerrogativas do posto e da pose conquistadas.

E foi por causa dessa imunidade, que Adão, praticamente, esqueceu a pesquisa filo-excêntrico-científica a respeito das convicções sócio-sexuais da Marilda, senão impostas pela natureza, contudo, cultivadas pelo approach!

Tempo vem, tempo vai, morreu Marilda. Três dias de luto fechado, clamor geral! Houve velório, café com bolinho e enterro. Só não houve encomendação porque o padre não encontrou menção canônica que embasasse. Mas que a ocasião merecia, ah, merecia!

Porém, naquele mesmo dia, antes dos cacarejos funerários, Adão convocou tio Amarildo pra reunião a portas fechadas. Era a hora. Agora, ou nunca mais. Era preciso saber. Amanhã: tarde demais!

Tio Amarildo autorizou a autópsia. Adão procedeu à necropsia. E veio com o resultado, literalmente, concretamente, em mãos. E de olho arregalado pronunciou o veredicto:

- Sô Amarildo, olha só! Levou um tempão pra gente saber, mas ta aqui a prova dos nove.

E apresentou o material necropsiado com o laudo:
- Não era galinha “lébisca”. Era galo “gâyo”.

Ta explicado!

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