domingo, 4 de setembro de 2011

JINGLE BELL, JINGLE BELL! ACABOU O PAPEL...

Aviso aos navegantes: estamos em setembro e desde agosto há árvores de natal à venda nas boas lojas do ramo.

Mas quem ainda se recorda DO Natal? Há tanto barulho e fogos e lâmpadas coloridas e leitoas e perus abatidos, e tanto gasto acima dos recursos reais, que alguém ainda pode se perguntar se sobra o instante de se dar conta que semelhante desregramento histérico só existe para celebrar uma determinada data, de um determinado nascimento, numa determinada miserável estrebaria a poucas braças de onde nascera, mil anos antes, o rei Davi.

Mais de 1 bilhão de adeptos dizem crer que aquela criança era Deus encarnado. Mas muito poucos o celebram dessa forma, como se na realidade não acreditassem naquilo que professam. Também outros irão celebrá-lo, outros bilhões, que nunca pensaram nele, mas gostam da festança. E sobram outros milhões que, além disso, bem estariam dispostos a virar o mundo de cabeça pra baixo para que ninguém continuasse acreditando. Seria interessante indagar quantos mesmo, do fundo da alma, realmente admitem que o Natal de agora seja só uma festa abominável, mas não se atrevem a dizê-lo por puro preconceito, nem tão religioso mas social.

O mais grave de tudo é o desastre cultural que esses natais pervertidos causam abaixo da linha do equador.

Antes, quando tínhamos apenas costumes herdados da Península Ibérica, os presépios domésticos eram prodígios de imaginação familiar. Na casa da tia Assumpção, Deus Menino era maior que o boi, as casinhas penduradas nas colinas eram menores do que a Virgem, e ninguém se importava com os anacronismos: a paisagem da Judéia era completada com um trem de corda, havia um leão de pelúcia maior que a casa do recém-nascido, e um guarda de trânsito conduzindo rebanhos de cordeiros na estrada de Belém. Tudo isso “naturalmente” emoldurado por um céu de arame e papel-de-seda azul, por onde voavam pendurados em linhas de nylon pequenos aviões de brinquedo. Sobre essa panóplia brilhava uma estrela de papel dourado com uma lâmpada no centro e um rabo de seda amarela indicando aos magos o caminho do sublime encontro.

O resultado, nem preciso dizer, era feio de doer. Mas se parecia com a gente ou, sei lá, a gente se parecia com aquilo, de tal forma que um se enxergava no outro e ficava bom demais. Era... o Natal. Com barraquinhas na rua e música todo final de tarde na torre da matriz.

A desmistificação começou com a idéia de que os brinquedos não eram trazidos pelo Menino Jesus, mas por um gordo balofo que a Coca-cola consagrou como Papai Noel. A gente deitava mais cedo para que os presentes chegassem logo, ôps, para que o presente chegasse logo. Era um só, quando era! Mas o melhor de tudo é que éramos felizes ouvindo as mentiras poéticas dos adultos.

Que naturalmente acabaram. Eu não tinha mais de 7 anos quando decidiu-se que era hora de contar que os brinquedos não eram trazidos por quem quer que fosse. Foi uma desilusão só! Não porque eu acreditasse que era, de verdade, o Menino Jesus quem trazia os brinquedos, mas porque gostaria de continuar fingindo que acreditava. Além disso, por pura lógica de adulto, conclui que os outros mistérios católicos eram também inventados pelos pais para distrair os filhos e mantê-los sob as rédeas.

Caí no limbo. Perdi a inocência. Faltava pouco para que eu descobrisse que as crianças tampouco eram trazidas pelas cegonhas, algo que talvez eu ainda quisesse gostar de continuar acreditando. Resolveria muita coisa!

Tudo isso desabou nos últimos anos, mediante uma operação comercial de proporções mundiais que é ao mesmo tempo uma devastadora agressão cultural. O Menino Jesus foi destronado pelo gorducho Papai Noel dos gringos, que chegou com tudo: desde o trenó puxado por alces carregado de brinquedos até a fantástica tempestade de neve num país de Natal quente.

Na realidade, esse usurpador com nariz de cervejeiro não é ninguém mais do que são Nicolau, um santo a quem a lenda nórdica creditou ter ressuscitado crianças esquartejadas por um urso na neve, e que por isso, foi logo proclamado padroeiro das crianças. A lenda se fez institucional nas províncias germânicas do norte no final do século XVIII, justamente com a árvore e os brinquedos. De lá, passou para a Inglaterra, França, EUA e, por fim, para as províncias abaixo da linha do equador, com toda uma cultura de contrabando: a neve artificial, as lâmpadas coloridas, a comilança e a temporada de consumismo frenético da qual poucos de nós nos atrevemos a escapar.

Tudo isso acontece em torno da festa mais espantosa do ano. Uma noite barulhenta em que ninguém consegue dormir, com a casa cheia de bêbados, que se enganam de porta procurando onde urinar, ou perseguindo a mulher de outrem, que teve a sorte cruel do acaso de acabar dormindo de boca aberta na sala.

É mentira. Não é uma noite de paz e amor. É apenas a ocasião solene das pessoas que se gostam e das que não se gostam terem de se encontrar. É a noite providencial do convite ao pobre cego que ninguém convida, à prima que ficou viúva há 15 anos, à avó paralítica que ninguém se atreve a mostrar. É a alegria por decreto, o carinho por lástima, o momento de presentear porque nos presenteiam ou para que nos presenteiem. A noite de chorar em público sem precisar apresentar explicações. Vez ou outra, a festa termina em briga. Não se admire que as crianças, vendo tanta coisa esquisita que ronda o Natal, acabem supondo que o Menino Jesus não nasceu em Belém, mas nos EUA.

É o Natal! Não vou dizer que não gosto. Gosto, sim. Até gosto! Claro que não tem mais nada do que havia antes, sobretudo, a missa do galo no embalo do coral da matriz, e nem o padre que descia solene os degraus do altar, antes do início da celebração, para depositar o divino infante no berço de palha esperançoso de tão vazio desde o início de dezembro, quando o presépio era armado. Tem coisa bonita, hoje, sim. Mas o que não há mais, talvez, seja a capacidade de encontrar a beleza. Paciência! Passamos.

Aviso aos navegantes: daqui a pouco é dezembro. Quem não armar a árvore em novembro, corre o risco de passar sem ela. Quem não desarmar a árvore até fevereiro do outro ano, não desarme mais. Não dá tempo. Guarde pronta nalgum armário como andam fazendo com as lampadinhas das árvores, que apenas se desligam e ficam lá, à espera da nova temporada de esperança.

Um comentário:

  1. Ótima reflexão Renato,nesta sociedade de "felizes p/sempre" em que encontramos no natal,nos faz trocar o verdadeiro sentido desta data,por presentes dados por obrigação.Nos esquecemos de olhar o próximo que esta realmente próximo com atenção,respeito e carinho.Nos tornamos figurantes de nossa própria noite de natal.
    Grande abraço: Alessandra Pizani

    ResponderExcluir