sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

SAMUEL, SAMUEL!

A palavra “vocação” significa chamado. O conceito “vocação” é um dos fenômenos humanos de mais difícil apreensão. Tanto que toda vez que lidamos com esse fenômeno, a palavra precisa ser escrita entre aspas: “vocação”. Assim. É que a psicologia descarta a idéia de vocação como sendo um “chamado”. A menos, é claro, que se possa dizer que a voz do chamado – aquela que o sujeito ouviu – chegou até ele por meio de todas as contingências e vicissitudes do ambiente. E que ele só conseguiu ouvir essa “voz diferente” em meio a todos os ruídos do dia-a-dia e apesar deles, porque algum canal especial foi construído. “Pamonha, pamonha, pamonha, pamonha de Piracicaba!” Ruído, ruído, ruído... É o que mais a vida tem. E a menos que o sujeito consiga ouvir essa “voz diferente” no meio do barulhão, de outra forma não sei de onde e como ela poderá ser ouvida. A psicologia desconhece que possa haver uma voz de não-sei-onde... chamando-não-sei-quem... pra-não-sei-o-quê. Mas o fato inquestionável é que tem quem ouça. Se tiver quem ouça, nem que seja alucinatoriamente, a voz existe.

Mas, então, que voz é essa? Existe? Não existe? Vem de onde? Como consegue ser ouvida? A quem se endereça e a quem pode interessar?

Você já sabe que eu não sei, né! Eu adoro levantar questões para as quais eu mesmo procuro a resposta. Fica mais honesto assim, do que sair por aí, sem procuração alguma, oferecendo saídas até para quem não quis sequer entrar.

É que meu caso é grave e requer internação. Fui acostumado desde a pré-infância do seminário a entender a “vocação” como um chamado: um “oi!”, um “ó de casa!”. Portanto, não é fácil mudar o rumo da prosa, nessa altura dos acontecidos, e é com certa restrição que me proponho a entender que a voz só exista dentro de quem a ouve e só ganha existência quando alguém se dispõe a ouvir, e só existe para quem se disponha a ouvi-la. Mas, então, existe ou não existe? Existe, uai! Tanto que é ouvida. Acolhida. Tanto que modifica. Ratifica. Retifica. Remove. Reitera. Revigora. Redunda. Renasce.

A questão não é se existe. É como existe.

No contexto religioso, quem chama é Deus. E chama a quem ele quer. Mas como assim? Como saber (do tipo: ter certeza) que é Deus mesmo que chama, em vez da minha imaginação, minhas circunstâncias, minhas necessidades, e a enorme capacidade que tenho de me esconder atrás de mim mesmo para não questionar... a mim mesmo?

A força (e a fraqueza) de toda religião é que ela trabalha com pensamentos essencialistas: é porque é, e acabou. Era a mesma coisa de tomar Emulsão Scott (óleo de fígado de bacalhau, lembra?) na infância: fecha o olho e abre a boca. A falha geológico-mental desse tipo de pensamento é que ele só responde a quem quer que ele corresponda. A resposta está pronta. Só precisa acreditar nela! Sem a amarração inimaginável da crença, e na ausência de um andaime sustentável, esse pensamento desaba que nem arquibancada de show montada às pressas. Para quem quer pensar, o andaime do pensamento precisa ser firme. Pode ser até de bambu: leve, porém, resistente, e, sobretudo, bem amarrado.

É aí que ta! Ao pensamento que rege e mantém o arcabouço religioso falta a leveza e a resistência do bambu. Sem falar da amarração. Ele acaba sendo pesado demais, custoso demais, espaçoso demais, ocioso demais. Acreditar, pura e simplesmente, no fato de que um sujeito foi diretamente chamado por Deus, confere a essa criatura um poder roubado ao Criador. Depois, quando esse poder fica pesado demais, custoso demais, espaçoso demais, ocioso demais, não adianta reclamar do leite derramado. Conferiram ao sujeito prerrogativas e ele as usou. Sorte dele!

Não é difícil entender como a engrenagem funciona. Mas é preciso voltar ao que foi esquecido antes de ter sido conhecido. Por exemplo, à vocação de Samuel. Quem quiser, pode verificar a La Carte, no Primeiro Livro de Samuel capítulo 3. Desde já vou dizendo que Samuel significa “ouvir Deus”.

“Samuel, Samuel!”

Pois é. Quem a voz chama é ainda um menino, que dorme, à noite, depois de ter brincado o dia todo: bolinha de gude, futebol, videogame... E o menino, que se chama justamente Samuel, não faz a menor idéia de quem o está importunando no meio da noite. Afinal, naqueles tempos, noite ainda era feita para dormir.

Se você ler direito, vai perceber, aí, a descrição de uma vocação em “câmera rápida”. Já que a gente sabe o que é câmera lenta, pode imaginar o que seja câmera rápida. Ou seja, um relato apresentado de uma maneira muito acelerada, onde os acontecimentos são apertados dentro de um pequeno cubículo de tempo. Com Samuel foi assim. Três vezes na mesma noite o menino escutou uma voz desconhecida chamando seu nome: “Samuel, Samuel!” Só na última vez, e com a ajuda do sacerdote Eli – personal trainer de profetas – foi que ele pode perceber que quem o chamava não era nenhum ninguém, mas um baita alguém.

Os relatos da Bíblia são assim. Eles contam um fato rapidinho, como se tudo tivesse acontecido num estalar de dedos. Isso não deixa de ser perigoso! Acaba levando muita gente incauta a querer que as coisas se desenrolem num estalar de dedos. Na verdade, caso você não sabia ouso informar-lhe que não existe “estalo-de-dedo” para as realidades humanas. As ocorrências humanas apenas conseguem ser percebidas bem depois, e bota bem depois nisso! Nada acontece num passe de mágica. Tudo leva anos e anos em compasso de espera, à espera do que a espera consiga elaborar. Sim. Porque só a espera pode fazer o que a magia não alcança. Porque nem existe, né!

Para perceber em riqueza de detalhes aquilo que é descrito em câmera rápida, a gente precisa desacelerar o compasso, de presto para andante. Mas, aí, quando tiramos a pressa, o que fica? Fica a leveza. Porque a pressa não só é inimiga da perfeição, mas também da leveza.

Não me canso de repetir o que foi carimbado pela guru-master (só conto pra quem perguntar) a respeito do texto bíblico. A Bíblia é um texto em cartaz há 4000 anos e nenhum texto fica em cartaz tanto tempo se não tiver nada a acrescentar. O que me entristece é que a quirera-miúda carregada de piadinhas toscas, espalhada dos púlpitos a guisa de tornar o texto bíblico “interessante”, não faça nada mais do que torná-lo irrelevante, decadente, obtuso e obsoleto. Evito dizer frívolo e leviano. E é um texto em cartaz há 4000 anos, lembre-se! Lembre isso aos “propagandistas” também.

Na história de Samuel, a gente pode ver que geralmente, um chamado não é escutado de primeira. A voz fala, mas eles não escutam, não entendem, não concordam, não discernem, não distinguem entre uma voz e outra. Aliás, nem mesmo precisava ser uma voz. Aliás, sequer era uma voz. Podia ser a experiência de um pôr-do-sol estupendo, de uma noite de lua cheia e estrelada, a sensação inesperada de uma intensa alegria sem estímulo concreto, a intuição de uma grandeza sem fim, uma perda incontornável, a convicção de que a vida não é banal... Tudo isso é “voz”. Tudo isso pode ser “ouvido”. Nem carece ser especial, muito menos ser bancado, pra ouvir essa “voz”.

Quando eu era criança nas Minas, nenhum vereador ganhava pelo trabalho que exercia em beneficio da coletividade. O único bônus residia no fato de que, no final da vida, o tempo em que o sujeito serviu ao bem comum podia ser acrescentado à merreca da aposentadoria oficial. Mas o grande ganho era mesmo o serviço prestado. Esse, não tinha preço.

Nos tempos de Samuel, ser chamado ao bem-comum de Israel também não tinha preço. Tinha encargos, mas nenhum cargo. Naquela época, ministério ainda não vinha, mas já tinha o sentido de ministerium e ministrare, do latim, que significam serviço e servir. Mais tarde, a vocação desses servidores, servos dos servos, foi se revestindo, paulatinamente, de tanto frufru, que se descaracterizou. O pálido reflexo do que era, do que devia ser, perdeu-se no meio das côngruas e garantias oficiais de uma profissão não-oficial.

Vocação, como aprendi, era escutar o próprio nome, a partir de si, do lado de dentro, e responder em primeira pessoa: “Samuel, Samuel!” A resposta era: To nessa!

Não há senão uma única palavra que nos comove totalmente, que consegue unificar toda a nossa atenção, mobilizar o centro do ser numa única direção. Essa palavra é o nosso nome. O fato de o texto apresentar Deus chamando Samuel pelo nome é altamente significativo. O fato de ele ter sido chamado três vezes na mesma noite (câmera rápida, lembra?) não significa que o isso se deu às 23 horas, às 2 e às 4 da manhã. Quantos anos tinha Samuel quando escutou pela primeira vez aquela “inexplicável voz”? E quantos anos levou para escutá-la em sua terceira e decisiva versão? 20, 30, 50 anos? Por sorte, o personal trainer Eli não o abandonou em sua desordenada intuição de escutar vozes.

“Samuel, Samuel!”

O texto bíblico não conta o que foi dito a Samuel naquela noite. Caso realmente Deus fale, nenhum texto escrito será capaz de transmitir sua voz e o que ele pretende quando fala a um coração humano. O que sabemos é que desde aquele momento, Samuel não foi mais apenas Samuel. Não foi cuidar de sua vida, não foi comprar e vender, não foi se dedicar de corpo-e-alma a cuidar de si mesmo e de seus negócios. Não que isso seja errado. Ô! Errado, errado, não é. É sempre a ética que traça o caminho.

Mas o fato é que a partir daquele momento, do evento daquele “Samuel, Samuel!”, o menino que cresceu já era outro. A noite passou. E com ela todos os medos e incertezas. Samuel ungiu Saul rei de Israel. E quando Saul pisou na bola e feio, Samuel voltou atrás e ungiu Davi rei de Israel. E morreu antes de ver Davi pisando na bola, e feio, também. Samuel não suportava ver gente ungida pisando na jaca!

Quando morreu, a Escritura Hebraica fez o necrológio mais econômico da História em apenas duas palavras: “Samuel morreu”. Não parece muito para quem foi grande. Talvez também nisso ele fosse grande: economizou discursos desnecessários de despedida, daqueles em que a gente escuta e chora e sai dali e se encontra na padaria... para um chops.

Por que Samuel? Sim. Ia esquecendo. Por que Samuel? Talvez porque ele seja o protótipo de alguém que ouve o que não foi dito e escuta a partir de dentro. Talvez porque ele tenha experimentado uma espécie de integridade única que o fez merecedor de escutar a voz (“Samuel” = ouvir Deus, lembra?). Talvez porque naquela leva de gente que engrossa o álbum de fotos de família chamado Bíblia, ele tenha sido o mais honesto. Abraão vendeu Sara, Jacó traiu Esaú, Moisés era político (!), Saul, um paranóico bravo, e Davi, ah meu Deus!, Davi: prefiro não comentar! Samuel foi honesto até a raiz da árvore. Não há como ouvir voz alguma se não houver honestidade. Esse é o quesito sine qua non do assim chamado fenômeno humano da “vocação”. Sempre entre aspas, ta.

Se eu não consegui expressar direito o que seja “vocação”, talvez consiga mostrar.

Bem no centro do campus da Universidade de Harvard, existe um edifício ostensivamente europeu, estilo século XVII. É um museu da cultura alemã: o Busch-Reisinger Museum. Ele possui uma coleção esplêndida de arte clássica alemã. Mas o diamante da coroa, sem dúvida, é o órgão de tubos mundialmente conhecido. Toda quarta-feira, ao meio dia, há um concerto com entrada franca.

No entanto, o que mais chama a atenção naquilo tudo é a inscrição no portal do prédio, no original alemão, de Schiller: “Es ist der Geist, der sich den Körper baut”. (Tecla SAP) É O ESPÍRITO QUE CONSTRÓI UM CORPO PARA SI. Talvez seja essa a frase que mais de perto toque a essência do fenômeno da “vocação”, esse sentir vozes na ausência de um delírio. Ou pelo menos dentro de um delírio retocado de beleza humanizada.

Talvez seja por isso que Thomas Merton, monge, disse que “Até a idade de quarenta anos, cada um de nós terá a cara que merece”. Porque nossa cara não nos acontece; é construída dia após dia pela nossa história e pelo espírito dentro de nós. A tal da “vocação”, também.


Devo algumas idéias a Dom Bernardo Bonowitz OCSO – um cara muito bom, mas que corre um risco danado de ficar famoso, e aí se perder.

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