sábado, 31 de março de 2012

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 22

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11

Jesus de Nazaré era homem por inteiro. Alguma dúvida?

Com isso, pretendo dizer – ou lembrar – que nele também residia o mesmo narcisismo que habita todos nós, um narcisismo que, na dose certa, constrói um eu forte, capaz, sadio, bom. Sua presença física havia se tornado fundamental na vida de Lázaro e de suas irmãs. Isso, na certa, era confortável para Jesus de Nazaré. Mas o que ele não podia nem devia era continuar fixado nessa complacência, nesse engodo narcisista, necessário e perigosamente presente em cada sujeito que comande o mundo à sua volta.

Quando Jesus conheceu aqueles três e se tornou amigo deles, Lázaro ainda estava ligado às duas irmãs. Era homem adulto, porém solteiro. Isso não cabia na mentalidade da época: pessoas solteiras não eram bem vistas no mundo judaico. Por outro lado, Lázaro estava ligado a duas mulheres, solteiras, também. Mulheres solteiras eram menos bem vistas em Israel, do que homens solteiros. E os três ainda permaneciam na casa dos pais. Como crianças! Parece que o desmame não fora realizado. Parecem trigêmeos que ainda não nasceram para a vida social. Nenhum deles se assume como ser independente do outro e dos outros. Nenhum deles é capaz de seguir o curso das próprias águas.

Das duas moças, sabemos que uma, Marta, trabalhava para Jesus; a outra, Maria, o bebia com os olhos. Agora, ao que tudo indica, também o rapaz seria capaz de morrer se Jesus não estivesse por perto. O mínimo que se possa dizer daquela constituição é a de que aquele era um trio neurótico. Ou, numa palavra mais amena, infantil.

Jesus sabia disso. Na certa, nunca leu Freud. Mas sabia disso. Por isso, declarou a respeito de Lázaro, que “aquela morte era necessária”. “Aquela”. Aquele rompimento era necessário. Para que ele crescesse. Daí, a demora em partir, a demora em chegar e o choro da constatação de como o amor humano é perigoso e do quanto pode ser (auto) destrutivo.

Depois do choro, a pergunta: “Onde vocês o colocaram?”

Agora, observem o seguinte. O evangelho foi escrito num dialeto grego chamado Koiné. Esse dialeto deixava a pontuação em suspenso. Tanto podia ser um ponto de interrogação, ao final da frase, como qualquer outra pontuação. Se, ao invés de um ponto de interrogação, colocarmos um ponto de exclamação, muda tudo. A frase “Onde vocês o colocaram?”, fica: “Onde vocês o colocaram!” Vê? Mudou tudo.

Perceberam o novo significado? É como se Jesus dissesse: “Vejam o estado dele!” Não existe, ali, nada mais que lembre o que houvera antes, nada mais do ser de antes, nada mais do adulto de antes. Apenas um sujeito infantilizado, regredido, ensimesmado, enrolado ao redor do próprio umbigo. Uma criança assustada! E, justo Lázaro, o amigo que tanto compreendia Jesus, que era “o outro” de Jesus! Cadê Lázaro? Onde foi parar Lázaro? Onde ficaram os ideais? Nada daquilo sobrou? Apenas um sujeito que já nem mais é sujeito da própria vida. Não foi pra isso que Lázaro foi amado. Perceberam o alcance do choro de Jesus? É muito mais doído do que um choro de morte. É um choro de frustração. “Onde vocês o colocaram?” Os judeus respondem, prontamente: “Vem e vê”. Venha ver o que sobrou.

No começo do evangelho de João, dois primeiros pretendentes a discípulos lhe perguntaram: “Onde moras?” Ele respondeu, também, prontamente: “Venham e vejam” (1,35). E eles foram e viram e ficaram com ele.

Nesta cena, no caso de Lázaro, o contexto é o mesmo. O que se inverteu foi a situação. Lá, no começo ele lhes havia mostrado o lugar da vida. Agora, eles lhe indicam o lugar da morte.

“Tirem a pedra”.

Marta intervém. Pra quê? Faz quatro dias. Já cheira mal. Não será difícil imaginar que, no inconsciente de Marta, vigora a tentativa neurotizante de inocular culpa e ressentimento no outro. Culpa dela mesma não ter dado conta do irmão que morria. Ressentimento por Jesus não ter acudido no tempo em que ela havia determinado. Até no último momento, Marta ainda pensa com os conceitos do seu pequeno mundo neurótico, onde os horizontes terminam do outro lado da rua. Marta tenta interceptá-lo. Se ela não fora capaz de cuidar do irmão, quando era tempo, e se ele não fora capaz de mudar sua agenda, enquanto era tempo, agora, pra quê? É tarde! A esperança não é um fio de cabelo louro ao sol? Marta não vê, não quer ver, não deixa ver. Daquela morte, Marta foi a que mais morreu.

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