sábado, 29 de outubro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 9

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11



“Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”.
(Jo 11,23)
A sua presença, por si só, o arrancaria da escuridão da melancolia, das trevas interiores de todos os amores que ficaram pela metade, dos apegos e preocupações materiais, da luta ingrata por conforto e bem-estar. Porque o sentido da vida não pode estar nessa engrenagem louca que humilha a nossa existência. Assinado: Marta.

“Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”.
(Jo 11,32)
Nem teria experimentado qualquer apelo sedutor de matéria, onde o que sobrou de alma se perde. Não teria conhecido nem ouvido as mentiras com cara de cheque-frio que nos passam. Se o Senhor estivesse aqui, Lázaro não estaria sozinho. É que a solidão – não sei se o Senhor sabe – é a pior e a mais pesada de todas as cargas humanas. Não há ombros... Não há ombros... Peço desculpas; decerto o Senhor sabe! Assinado: Maria.

Marta e Maria têm um caminhão de razão ao repetirem a mesma frase: “Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”. Jesus era o mapa do tesouro para Lázaro. Lázaro cavou no lugar do X. E encontrou o vazio.

Tão logo, as duas sabem da chegada de Jesus, saem em abalada correria com o grito na garganta de uma frase obsessiva, repetida para si mesmas e muitas vezes e o tempo todo: “Se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido.”

Marta provoca Jesus para que ele lhe dê respostas. E o leitor se espanta ao ver que Jesus entra no jogo dela, e começa a lhe dar respostas. Curioso é que Jesus nunca foi de dar respostas. Em certas horas, que resposta responde? Que sentido faz sentido? Marta está atuando todas as defesas de um ego frágil que passou pelo rolo compressor dos últimos acontecimentos. Ela não tem escolha e se defende da maneira que pode. Marta racionaliza.

A racionalização é um mecanismo semi-consciente pelo qual interpretamos o que está sendo dito de forma a não ser ouvido, e, caso seja, não tenha nenhuma conseqüência para nós. A racionalização é um filtro mental pelo qual transformamos o profundamente revolucionário e radical no totalmente irrelevante.

Marta racionaliza. Mas, afinal, racionaliza o quê?

Racionaliza o fim, o vazio, o sem palavra, o sem sentido, o buraco negro da vida, o impensável da morte.

Marta racionaliza. Mas, afinal, racionaliza para quê?

Racionaliza para dar conta da angústia, para fugir da dor que a comprime, para fazer alguma coisa que lhe impeça de pensar a questão impensável. Afinal, Lázaro morreu porque abandonou Jesus ou porque Jesus o abandonou? Qual resposta seria preferível, quando até a pergunta é difícil de fazer? O texto diz que Jesus se demorou a ir ao encontro do amigo astenon. Demorou? Que demora foi essa? E por que se demorou? Diante daquilo no qual nem se pode pensar, Marta busca refúgio nos arcaicos mecanismos de defesa com os quais construiu e manteve um ego, agora, fragilizado.

Lázaro... Marta... Maria... O desespero pegou todo mundo por lá. Na traseira, veio a depressão.

Na verdade, seria melhor falar em melancolia. Pra quem olhar de fora, a diferença pode ser sutil. Mas para um olhar de dentro, a diferença é grande. A princípio, o que se nota, seja na fala dos deprimidos seja na fala dos melancólicos é uma relação muito próxima e dolorosa com a falta e a perda, ambas, insuportáveis. Já, naturalmente, insuportáveis. Mas ainda mais insuportáveis para um deprimido melancólico. Perda e falta abrem o chão debaixo dos pés e não permitem nem andar nem viver.

Na depressão, algo foi perdido, e há a denúncia de uma perda. Com muita freqüência, o deprimido se lastima daquilo que teve e não tem mais. Ele repete: “Tive e perdi, não tenho mais!”

Na melancolia, algo que deveria estar lá, não está, e a falta sequer é denunciada. O melancólico pouco ou quase nada fala. Se falar, será algo como: “Eu nunca tive!” A melancolia é uma situação complexa, ainda mais do que a depressão. Daquilo que foi perdido resta a chance e a espera de que seja encontrado. Mas ao que nunca foi tido, que chance e expectativa restam de que possa vir a ser? Se eu nem sei onde está, se nem sei se esteve, se nunca saberei onde estará, para onde olhar? Que rumo tomar?

À noite, o fantasma da depressão fica maior. No escuro da noite, o monstro sem cabeça mostra garras agressivas. Para um deprimido, sobreviver a uma noite de vazio, só mais uma, é uma vitória. Ele sabe que haverá ainda outra e ainda outras noites sem dormir. Mas, essa, pelo menos, foi atravessada em paz.

“Não são doze as horas do dia? Se alguém caminha de dia, não tropeça, porque vê a luz. Mas quem caminha de noite, tropeça, porque nele não há luz. O nosso amigo Lázaro adormeceu. Vou despertá-lo” (Jo 11,11-12).

Lázaro se apagou. É noite.

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