quarta-feira, 12 de outubro de 2011

ROLDANAS DA VIDA

Na minha terra viviam dois médicos. Certa vez, estando eu por lá, faltou-me um determinado medicamento. Telefonei para uma das duas opções da cidade para pedir a receita.
- Vem cá!
Fui. Ele simplesmente abriu-me a porta e me esticou a receita, conforme eu a havia pedido.
- Quanto, doutor?
- Ara!

Passou o tempo.

Volto à cidade (ia lá muito naqueles tempos), e, de novo, sem o tal medicamento. Ligo para o mesmo médico. Sem tempo de dizer o que pretendia, ouvi o mesmo “Vem cá!”
Fui, certo de levar uma bronca. Bati à porta e uma mão esticou-me a receita, com as mesmas especificações de anos antes, sem que eu precisasse abrir a boca. Simples assim! Lá, era assim.

Na minha terra vivia um padre, não um padre qualquer, mas um daqueles de antes, que eram padre e só padre, e para quem estava muito bom que fosse assim. Quem pedisse missa, ele celebrava, no dia. Quem pedisse confissão, ele atendia, na hora. E, de bônus, carregava nada mais nada menos que a hóstia consagrada no bolso (é!) para dar a comunhão a quem pedisse. Confessou? Comungasse! Onde? Ali mesmo. Simples assim! Lá, era assim.

Na minha terra havia um prefeito. Até aí... Mas era um prefeito sem gabinete. Atendia na rua, em qualquer uma, a qualquer um. Resolvia na hora.
- Ô Zé, manda um trator pra estrada de Luminosa!
- Ô “Das Dor”, vê se a cobrança foi feita correta!
- Ô fulano, manda um carro buscar a fulana que ela tá na hora! (“Tá na hora”, queria dizer que a criança estava nascendo.) Era assim, lá.

Na minha terra, havia um diretor de colégio que vivia todas as horas do dia ao inteiro dispor dos alunos, e carregava aluno para o hospital no próprio carro, e visitava as Repúblicas barulhentas calmando os ânimos, e até tirava os rapazes da cadeia quando a bebedeira os havia convidado ao pernoite na delegacia. Ah! Ia esquecendo. E providenciava almoço e jantar dentro da escola, para que os alunos, sobretudo, os de fora da cidade, se alimentassem devidamente. E atendia a cada um, um a um. Simples!

O médico, o padre, o prefeito, o diretor, eram acessíveis. Assim!

Ah! E havia também um juiz que despachava na casa dele, um farmacêutico que abria a farmácia à noite para vender um (1) Dorflex, um dono de posto de gasolina que vendia o produto para o cliente ir em casa buscar o dinheiro, um dono de banca de revista que trocava a revistinha que a gente já havia lido, um porteiro de cinema que permitia novamente a entrada gratuita de quem já houvesse visto o mesmo filme. (Pra ver de novo não precisava pagar, né!) Simples de tudo.

Dizer que eles não tinham o quê fazer, não era verdade. Só não tem nada pra fazer quem não quer fazer nada. Eles tinham, sim. Mas tinham disposição e disponibilidade. E havia a simplicidade de disporem de si mesmos, do tempo, da vida.

Quando foi, por que foi, e em troca de quê perdemos essa simplicidade?

Hoje, pra marcar médico, a gente corre o risco de morrer antes. Pra falar com o padre, a gente corre o risco de ir pro inferno antes. Pra falar com o prefeito... nunca falei, não, senhor! Juiz? Isso é coisa de um outro mundo. As roldanas da vida, que existiam para fazer da vida um período de leveza, acabaram tornando-se ainda mais pesadas do que a própria vida. É como dizia papai: O molho saiu mais caro do que o peixe.

E se as coisas fossem mais simples? Ganharíamos todos, não?

Para içar o peso da engrenagem social foram montadas roldanas. Acho que é assim que se chama aquele trem que gira uma cordinha e levanta o peso. A roldana não pode fazer o peso ficar mais pesado nem pode ser mais pesada que o peso. Acho que não! Se ficar... Uai?

Quero aproveitar para agradecer àquele médico, que me arrumou gentilmente as receitas de que precisei. (E ao Gustavo e à Neuza que me atendem prontamente, também). Quero aproveitar para agradecer àquele padre, por ter me ouvido quando precisei, da forma mais gratuita que pude esperar um dia ser ouvido. Quero aproveitar para agradecer aos prefeitos e juízes e delegados e sei-lá-mais-quanta-gente, por viabilizarem tantas soluções encrencadas de tantas vidas encrencadas. E a todos os diretores e diretoras do que quer que seja, de onde quer que seja, e seja lá quem forem, que tenham sob si o cuidado de outrem. E que transformem esse poder em agradável serviço. Não basta só ser serviço. Tem de ser agradável também. Ah, tem!

Aproveito para agradecer a quem tenha o dom de transformar a vida simples numa coisa ainda mais simples. Seja como for, ela vai passar. Pensando bem, já está passando. Quando menos se vir, passou. Não vale a pena que não seja simples. Não vale a pena se ficar pesada. Não vale a pena se as roldanas emperrarem de vez.

Só será bom se for leve, assim. Se em qualquer “lá”, a vida for assim: simples, assim.

Um comentário:

  1. ...e hoje vivemos no complexo, buscando a simplicidade... o simples é melhor, não tenho dúvidas... ! Estou em direção ao simples!
    Lindo texto bjss

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