quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A FASE ANAL

Toda criança, entre 1 ano e ½ e 3 anos (aproximadamente), passa por uma fase que a psicanálise clássica chama de fase anal.

Toda criança, antes desse período, passou pela fase oral. Fase oral é aquele primeiro momento da vida em que a sensibilidade do pequeno ser, toda ela, se concentra na boca, e isso é fundamental para a sobrevivência: ele precisa mamar. Logo, logo, o pequeno cidadão descobre que a boca, além de lhe oferecer os recursos necessários para o sugar do leite materno, fonte de toda vida, também lhe oferece recursos extras (bônus, entendeu?) de saborear o contato íntimo com algo maior do que, simplesmente, leite: o seio materno, fonte de todo bem. Tudo o que buscarmos mais tarde, toda ânsia por encontrar o Shangri-La perdido, para sempre perdido, toda fome “não sei bem do quê”, toda vontade de comer “alguma coisa que eu não sei o que é”, toda ansiedade que me faz morder os dedos, tudo isso e muito mais, tudo, tudo, tudo, praticamente, se ancora lá, naquele momento mítico-mágico, quando ao mamar leite, a gente mamou seio e olhar.

É que só encher a barriga é pouco, muito pouco. Gente humana quer mais.

Quando se erra na dose, quando o apelo daquilo que ficou pra trás se torna irresistivelmente forte, então, certas fixações acabam sendo re-vividas de forma doentia. Fumar, beber demais, drogar-se, consumir em demasia, assaltar geladeira, numa palavra, exceder-se além do permitido pelo próprio excesso, são ancoramentos na fase oral que já deveriam ter sido ultrapassados. A não-resolução traz conseqüências psicopatológicas desagradáveis e desastrosas, cujo inventário posso me dispensar de fazer aqui, nesse momento, por não ser esse o escopo da conversa.

Como iniciei dizendo, a segunda fase que se segue, e que abrange de 1 ano e ½ a 3 anos, é a fase anal. Todo investimento até então depositado na região oral é deslocado para as redondezas do perímetro anal. Já viu né! Nenê gosta um bocado de mexer nos próprios produtos. Se a mãe permitir, ele leva à boca. Afinal de contas, foi ele quem fez. Uma vez tendo errado na dose desta fase, as complicações não são nem piores nem melhores, maiores ou menores, do que na fase oral. São, simplesmente, complicações anais.

As fixações orais trazem complicações orais: comer, beber, ansiar..., basicamente tudo que esteja ligado à questão “por pra dentro”. As fixações anais trazem complicações anais: reter, soltar, prender, não saber lidar..., basicamente tudo que esteja ligado à dificuldade do “por pra fora”.

Há complicadores. Na fase oral, por exemplo, o vômito (bulimia) é a recusa em “por pra dentro”. Na fase anal, a constipação intestinal (prisão-de-ventre) é a recusa em “por pra fora”. O vômito pode ser transformado no contrário: recusa em se alimentar (anorexia). A prisão-de-ventre pode virar diarréia.

Seja como for, as duas primeiras fases da vida são assim: aceitar o mundo como ele é, rejeitar do mundo o que ele não pode ser. Gente, o mundo é bom! Então, põe pra dentro. Gente, esse trem não presta! Então, põe pra fora.O objeto oral, via de regra, vira dejeto anal. E assim caminha a humanidade. Pondo pra dentro e pondo pra fora. Pra dentro, pra fora, pra dentro, pra fora... Simples assim!

Algumas espécies engolem o próprio vômito. Não é o nosso caso. Outras, comem o dejeto. Também não é o nosso caso.

A não ser...

Numa raríssima exceção apresentada em horário nobre e apreciada por milhões. Mas aí, não se trata propriamente da espécie humana. Seria uma espécie de sub-espécie, sub-gente. Entende? Uma raça dentro da espécie que engole vômito e se alimenta dos dejetos dos outros.

Realmente, não sei onde classificar essa nova espécie recém descoberta. Cachorro, eu sei, lambe vômito. Galinha, que eu saiba, come dejeto. E outros tantos espécimes catalogados que não teria condição de elencar.

Mas onde catalogar essa nova espécie? Em certos aspectos, ela se apresenta por demais elegante: freqüenta lugares de fina estampa. Em outros aspectos, ela é, sobretudo, refinada: possui paladares de fino aparato. E, no entanto, contemplem o disparate: ei-la, diariamente, fartando-se do dejeto alheio.

Caso isso seja “gente”, onde dependurar essa nova categoria de “gente”? Ainda não foi possível encontrar uma brecha nosográfica (no catálogo de doenças) onde inserir (ou seria enfiar?) essa nova entidade do candomblé humano.

De verdade? Acho que nós é que somos atrasados. Enquanto procuramos respostas para as pequenas e grandes questões existenciais, enquanto nos consumimos de horror diante dos excessos destrutivos, enquanto perguntamos a Deus se é a poluição que não o deixa ver os desmandos cá de baixo, o comando da sub-gente descobriu que nada disso vale a pena. Se existe algo que importe – vamos lá, gente! – é “espiar”. E pensar que um dia levei uma reprimenda, justamente, por olhar por um buraco de fechadura! O condenável de ontem virou o aconselhável de hoje. O mesmo Heráclito de Éfeso estava certíssimo: tudo flui, panta rei! O bife de ontem é o picadinho de hoje e o croquete de amanhã. E, depois de tudo, claro, o vaso sanitário! A felicidade começa na prateleira de supermercado e termina na lata de lixo. Ou além.

Nós é que estamos atrasados. Ao invés de conhecer, espiar. Quem sabe, numa dessas, atrás de um buraco de fechadura côncava ou de uma tela plana, encontremos o que nenhum livro, nenhuma biblioteca, nenhuma universidade, nenhuma fonte de conhecimento nos possa alcançar? Quem sabe se trocando conhecer por espiar, a gente volte a ser macaco, ou um primo distante dele, de onde viemos, e para onde voltaremos se continuarmos... espiando?

A fase anal é o início de uma intensa corrida epistemofílica da criança. Acho que posso traduzir esse palavrão pelo termo “curiosidade”. Quando a criança aprende a falar, ela preocupa-se em compreender o que se passa nessa terra incógnita, onde ela vive experiências dolorosas de abandono, angústia e solidão. Do cocô pro barro, do barro pra massinha, da massinha para o conhecimento. Tai o extraordinário percurso humano! Fazer o trajeto de volta (massinha-barro-cocô) não parece uma boa alternativa, no entanto, é o que se faz, de novo, a cada memorável início de ano, quando falta conteúdo alimentar e sobra resíduo fecal.

É que a fase anal tem o seu irresistível apelo a voltar ao cocô: nosso primeiro orgulhoso produto, nossa primícia dadivosa para o mundo. Mas, vamos combinar que essa sedução excrementícia faz parte de uma fase ultrapassada, OK! Ficou bem lá atrás, numa época em que a gente não conseguia distinguir bem a cor da papinha da cor do cocô. Naquela época, aliás, nem eram muito diferentes. Hoje já bem sabemos definir cores e sabores. E somos até capazes de não mais mergulhar, sequer a ponta do dedo, na m.

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