quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

LÁZARO, SAI DESSA, RAPAZ! – 16

E Jesus gritou com voz forte: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo mãos e pés amarrados com faixas, e o rosto envolto num sudário. Disse-lhes Jesus: Desliguem-no e deixem-no ir. (João 11,43-44)

Um caso de melancolia numa casa de Betânia
João 11


Não deixa de instigar um calafrio de sentido o fato de que, justamente, quando me propus a acompanhar Lázaro, em sua ida e volta ao mundo do sem-sentido, fosse também eu enredado nos mesmos sentimentos e no mesmo vazio de significado de Marta e Maria.

“Se o Senhor estivesse aqui, meu irmão não teria morrido”.

Vida esquisita, essa, sô! Há mais estranhezas entre o céu e a terra do que suponha...




Pois é. Depois da conversa entrecortada com Jesus, Marta volta para casa, vai ao encontro de Maria e lhe diz em segredo: “O Mestre está aí, e chama você”.

“Tendo dito isso, foi chamar sua irmã Maria. Falou com ela em voz baixa: O Mestre está aí, e chama você. Quando Maria ouviu isso, levantou-se depressa e foi ao encontro de Jesus” (Jo 11,28-29).

A palavra grega, traduzida por “em segredo” (em algumas versões) ou “em voz baixa” (em outras), é “efónesen”, que significa “disse sem dizer”. O versículo 28 ficaria assim: “Tendo dito isso, foi chamar sua irmã Maria e lhe disse sem dizer: O Mestre está aí, e chama você.”

Há um trocadilho interessante entre o verbo usado para Marta (efónesen) e o verbo usado para o Mestre (fonei). Observe o prefixo “e”. Enquanto Marta diz sem dizer, o Mestre diz, dizendo. O Mestre chama.

É o começo das mutações em Maria. Mas é também o começo das mutações em Marta. Chega a hora na vida em que todos precisam mudar. Um antigo formador dizia que “água parada junta bicho!”

Ter ido ao encontro de Maria, indicar a ela a direção do Mestre – que a chama, realmente, chamando – significou para Marta não guardá-lo exclusivamente para si mesma, não retê-lo, não privá-lo dos outros e nem os outros dele. O Mestre não pertencia nem a ela nem a Maria nem a Lázaro. O Mestre, simplesmente, “não pertencia”. Marta tinha dono. (Quem não tem!) Por isso, dizia coisas sem dizer. Jesus não tinha dono. Quando dizia, dizia. Se chamava, queria. Ele sabia o que queria, sabia querer e podia querer.

Lucas avisou que Maria havia escolhido a melhor parte (Lc 10,42). Se essa Maria de João for a mesma de Lucas, pelo fato de ter escolhido a melhor parte, é provável que já conhecesse esse viés do Mestre. Por isso, pôde ficar onde deveria estar para ocupar o lugar que era só dela e de nenhum outro. Se ela, naquele momento, se encontrava imobilizada pela dor, e se esse era o seu lugar, era ali mesmo que ela deveria ficar, para sentir o que estava sentindo, permitir acontecer o que estava acontecendo, passar por aquele processo e elaborar a frustração. O Mestre chegaria. Não era a hora de sair correndo, desatinada, gritando uma dor que ainda não se havia permitido sentir, por inteiro. O momento era de luto. E o Mestre chegaria. O que Maria fez, nesse momento, era tudo o que precisava ser feito, nada menos, nada mais: passar pelo luto. Esperar pela chegada do Mestre. O Mestre chegaria.

Maria não se faz de vítima. O sofrimento abate? Ela verga. A dor verga? Ela não se quebra. Mas não fica contando com o consolo dos judeus que a foram “consolar”, porque sabe que não é bem consolo o que eles se propiciam a oferecer. Maria se permite sofrer. Ficamos com a falsa impressão dela se ter trancado em sua via dolorosa. Mas não é verdade! Maria só se fecha em si para alcançar a si, sentir até onde vai o sentimento e aprender a se conhecer, lá, onde geralmente todos se escondem em escapismos e evasões. Iludir, no caso, é eludir.

“O Mestre está aí e te chama”.

Só a menção do Mestre, mesmo dita sem dizer, a tira do engessamento da dor. Então, Maria corre e se prostra. Prostração é adoração – proschynesis – o grego não deixa dúvida. Mas o mesmo verbo se presta à demonstração da geografia interior de sua ama. Ela se prostra porque está prostrada. Quem não estaria?

Motivos não lhe faltaram. Lázaro cansou-se, desiludiu-se, frustrou-se, desanimou, morreu. Entregou-se à banalização da vida. Tornou-se apenas mais um. E não era para ser apenas “mais um” que Lázaro havia sido amado. Ninguém que é amado é apenas mais um. Ninguém se é amado consegue ser apenas mais um. Lázaro engordou a estatística das honrosas exceções dos visionários que não enxergam.

Pois é. Maria se dá conta disso. E, quando a ficha cai, ela se encontra à beira de onde Lázaro jaz em sua vida de morte. Daí, não tem jeito, não: ela se prostra e, por que não, morre um pouco, também. E daí, não tem jeito, não: ela repete o mesmo mote de Marta.

“Se o Senhor estivesse aqui, meu irmão não teria morrido.”

O sinal de que Maria morrera um pouco da mesma morte interna de Marta é que ela repete a frase da irmã. E repete, sabe por quê? Por pura repetição. Aquela frase não cabe nos seus lábios nem nos seus sentimentos. Observe que, de repente e sem mais, ela abandona o título íntimo de “Mestre” – Didáskalos – e chama Jesus de “Senhor” – Kyrios – título solene e formal. Esse é o sinal do distanciamento. Sinal de que, nesse momento, mas só nesse momento, Maria havia morrido também. Mas é também sinal de que, na morte, desponta o que vai além da morte. “Senhor” – Kyrios – era o título do Ressuscitado.

Mais um detalhe de suprema importância passa despercebido. Maria se lança aos pés de Jesus (11,32). Marta não fez isso. No capítulo seguinte, no banquete de Lázaro, depois da tsunami, é Maria quem vai ungir os pés de Jesus. Marta não fará isso. É que Maria foi aquela que escolheu a melhor parte. Lembra-se? Lançar-se aos pés, na intimidade de noiva com o noivo, indicava que “a melhor parte” de Maria permanecia sadia.

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